A Casa Velha na Alameda Vauxhall The Old House in Vauxhall Walk De Charlotte Riddell – Tradução de Elis Maria Cogo e Taís Cristina Veeck

A Casa Velha na Alameda Vauxhall

The Old House in Vauxhall Walk

De Charlotte Riddell*

 

Tradução de:

Elis Maria Cogo

Taís Cristina Veeck

 

CAPÍTULO 1

 

— Sem casa – sem lar – sem esperança!

Muitos daqueles que haviam percorrido antes dele a mesma rua devem ter pronunciado as mesmas palavras – os exaustos, os desolados, os famintos, os desamparados, os marginalizados e errantes de uma humanidade em luta, sempre indo e vindo, miseráveis, com frio e mortos de fome, nas calçadas do distrito de Lambeth. Mas provavelmente nenhum deles falou sobre a sua verdade com maior convicção, ou com um sentimento de autopiedade mais intenso do que o jovem que passou apressado pela Alameda Vauxhall em uma noite chuvosa de inverno, sem um sobretudo para cobrir seus ombros ou um chapéu para proteger sua cabeça.

Uma frase estranha para um jovem de vinte e um anos pronunciar – e ainda mais estranha por sair da boca de uma pessoa que parecia, e que de fato era, um cavalheiro. Ele parecia não ter caído nas boas graças da sorte. Mas não havia nenhum sinal que pudesse levar alguém a perceber que ele estava na pior das situações após se defrontar com a calamidade. Suas botas não tinham o salto desgastado ou as pontas danificadas, como era o caso de muitas, muitas botas que eram arrastadas e arranhadas naquelas calçadas. Suas roupas eram boas e elegantemente cortadas, sem manchas, rasgos ou remendos, como eram as roupas daqueles que se esgueiravam desiludidos, agachados em frente às portas, suplicando por caridade. Seu rosto não estava marcado pela fome nem pelas rugas, nem tampouco maltratado pela bebida ou devassidão, mas ainda assim ele pensava e dizia que não havia mais esperança para ele e, em seu recente desespero, quase pronunciou tais palavras em voz alta.

Era uma péssima noite para ter o coração tomado por tais sentimentos. A chuva estava fria e aumentava impiedosamente. Um vento forte e úmido, vindo do rio, soprava pelas ruas. A fumaça das fábricas parecia cair juntamente com a chuva. A rua estava cheia de lama; a calçada parecia oleosa; havia pouca luz; e aquele bairro sombrio de Londres parecia ainda mais desagradável e sinistro.

Certamente não era uma boa noite para estar na rua, sem uma casa para a qual voltar, ou dinheiro no bolso, embora essa fosse a condição do jovem cavalheiro que, sem chapéu, andava pela Alameda Vauxhall, com a chuva batendo em sua cabeça.

Ele olhava com inveja as casas, tão grandes e boas, as quais uma vez haviam sido habitadas por cidadãos bem-sucedidos, mas que agora em grande parte tinham seus andares alugados para inquilinos semanais. Ele daria tudo para ter um quarto, ou mesmo parte de um. Ele estava andando havia muito tempo, desde que havia anoitecido, na verdade, e a escuridão inconveniente cai cedo em dezembro. Ele estava cansado, com frio e com fome, e não tinha qualquer perspectiva a não ser andar pelas ruas a noite toda.

Ao passar por um dos postes da rua, a luz caindo em seu rosto revelou feições jovens e bonitas, uma boca expressiva e delicada, e aquela formação particular de sobrancelhas, frequentemente relacionada à inteligência, mas que na verdade acompanha pessoas impulsivas, que se alegram com facilidade e se deprimem com igual facilidade, capazes de se deleitar plenamente e de sofrer profundamente. Durante sua curta vida, não havia desfrutado muito, e havia sofrido bastante. Aquela noite, enquanto caminhava na chuva, chegou ao seu limite. Até onde ele, em seu desespero, era capaz de compreender, a melhor coisa que poderia fazer era morrer. O mundo não o queria… seria melhor que partisse.

A porta de uma das casas estava aberta e ele podia ver alguns móveis no corredor mal iluminado. Um furgão estava parado junto ao meio-fio e dois homens colocavam uma mesa dentro dele quando, por um segundo, ele fez uma pausa.

— Ah — pensou —, até aquelas pobres pessoas têm um lugar para ir, um abrigo, enquanto eu não tenho nem um teto para cobrir minha cabeça, ou uma moeda para pagar por uma noite de hospedagem.

E ele continuou andando rapidamente, como se suas memórias o estivessem impulsionando, tão rapidamente que um homem que vinha correndo teve dificuldade para alcançá-lo.

— Senhor Graham! Senhor Graham! — O homem exclamou ofegante. E, ao ser chamado dessa forma, o jovem parou como se uma bala o tivesse atingido.

— Quem é você que sabe o meu nome? — perguntou, encarando o sujeito.

— Eu sou o William; não se lembra de mim, Sr. Graham? E pelo amor de Deus, senhor, o que está fazendo na rua em uma noite dessas sem o seu chapéu?

— Eu esqueci — foi a resposta —; e não me importei em voltar para buscá-lo.

— Então por que não compra outro? O senhor vai morrer de frio! E, além disso, desculpe-me, mas é estranho sair sem chapéu.

— Eu sei disso — lamentou o jovem Graham —; mas eu não tenho nem sequer um centavo.

— Então você e o patrão… — O homem começou a falar, mas hesitou e parou.

— Tivemos uma briga? Sim, e uma que vai perdurar por toda a vida — finalizou o outro, com um sorriso amargo.

— E para onde está indo agora?

— Indo! A nenhum lugar, exceto buscar o calçamento menos duro ou o abrigo de um arco.

— Você só pode estar brincando, senhor.

— Eu certamente não estou com disposição para brincadeiras.

— Você iria comigo até a minha casa, Sr. Graham? Nós estamos finalizando nossa mudança, mas ainda há um pouco de fogo na lareira, e seria melhor conversar em um lugar seco. O senhor vem?

— Ir? Claro que irei! — disse o jovem sujeito e, retornando, refizeram seus passos em direção à casa que ele havia visto anteriormente.

Uma casa bem, bem velha, com um corredor comprido e largo, escadaria baixa, fácil de subir, com grandes molduras no teto, piso de carvalho e portas de mogno, que ainda silenciosamente falavam da riqueza e da estabilidade do antigo dono, que vivera muito antes das antigas famílias Tradescant e Ashmole, e há muito mais tempo do que eles descansam no cemitério de St. Mary, próximo ao palácio do arcebispo.

— Entre, senhor — convidou o inquilino que estava prestes a partir —; está frio aqui, com esta porta aberta.

— Você alugava toda a casa, então, William? — perguntou Graham Coulton, surpreso.

— Toda ela, e lamentavelmente tenho que deixá-la, mas nada mais aqui agrada a minha esposa. Essa sala, senhor… — E com certo orgulho, William, fazendo as honras de sua antiga residência, convidou o visitante a entrar em um cômodo espaçoso que ocupava todo o primeiro piso da casa.

Embora estivesse cansado, o jovem homem não conseguiu reprimir uma exclamação de espanto.

— Ora, não temos um cômodo tão grande como este em nossa casa, William — disse ele.

— É uma boa casa — respondeu William, juntando as brasas enquanto falava e jogando um pouco de lenha sobre elas —; mas tal como acontece com muitas famílias abastadas, ela decaiu.

Havia quatro janelas na sala, fechadas com venezianas; elas tinham assentos baixos e amplos, que sugeriam um passado de dias aprazíveis. Na época, com cortinas e almofadas, deveriam ser um recanto aconchegante para as crianças, e algumas vezes também para os adultos. Não havia mais nenhum móvel, apenas um banco de carvalho ao lado da lareira e um grande espelho na parede oposta, com um aparador de mármore negro abaixo dele. Mas era justamente a ausência de cadeiras e mesas o que permitia que as magníficas proporções do cômodo fossem percebidas por completo, além de não haver nada para desviar a atenção do teto ornamentado, das paredes revestidas, da chaminé do velho mundo tão singularmente esculpida, e da lareira forrada de azulejos, cada um contendo uma gravura de algum tema bíblico ou místico.

— Se você ainda estivesse morando aqui, William — disse Coulton, jogando-se cansado sobre o banco —, eu pediria que me deixasse passar a noite.

— Se for somente por essa noite, não vejo problema, senhor — respondeu o homem, tentando manter viva a chama da lareira. — Eu devolverei a chave ao senhorio somente amanhã e pelo menos aqui é melhor para você do que as ruas frias.

— Você tem certeza disso? — perguntou o outro avidamente. — Eu ficaria muito grato por poder repousar aqui. Sinto-me exausto.

— Então fique, Sr. Graham, e seja bem-vindo. Vou pegar uma cesta de carvão e fazer um bom fogo, para que você possa se aquecer. Depois eu precisarei ir até a outra casa por alguns minutos, mas não é longe, e voltarei assim que puder.

— Obrigada, William, você sempre foi bom comigo — disse o jovem rapaz, agradecido. — Isso é maravilhoso — E ele estendeu as mãos, adormecidas pelo frio, sobre a lenha em chamas, e olhou a sua volta com um sorriso de satisfação.

— Eu não esperava entrar nessa casa — comentou, quando seu amigo reapareceu, carregando uma cesta cheia de carvão, que ele usou para fazer uma fogueira flamejante. — A última coisa que eu poderia imaginar seria encontrar algum conhecido na Alameda Vauxhall.

— De onde você estava vindo, Sr.  Graham? — perguntou William, curioso.

— Da casa do velho Meldfield. Eu frequentei a sua escola, você sabe, e ele agora está aposentado, vivendo dos lucros de anos de roubo do estádio Kennington.  Eu pensei que talvez ele pudesse me emprestar uma libra, ou me oferecer uma noite de hospedagem, ou mesmo uma taça de vinho; mas ah, meu querido, não. Ele usou um tom moralista e falou que não tinha nada a dizer a um filho que havia desafiado a autoridade de seu pai. Ele me deu muitos conselhos, mas nada além disso, e me levou até a porta, com uma cordialidade que me fez sentir vontade de bater nele.

William murmurou algo que não uma bênção e acrescentou em voz alta:

— Em todo o caso, eu acho que o senhor está melhor aqui. Estarei de volta em menos de meia hora.

Sozinho, o jovem Coulton tirou o casaco e, arredando um pouco o banco, pendurou-o para secar. Com o lenço, esfregou seus cabelos, na tentativa de secá-los; então, absolutamente exausto, deitou-se diante do fogo e, apoiando a cabeça no braço, adormeceu rapidamente.

Ele foi acordado quase uma hora depois pelo som de alguém mexendo cuidadosamente o fogo e andando silenciosamente pela sala. Sentando-se, olhou em volta, ainda desorientado por um instante, e então, reconhecendo seu humilde amigo, disse rindo:

— Eu estava perdido. Não sabia onde estava.

— Lamento vê-lo aqui, senhor — foi a resposta —; mas ainda é melhor do que estar na rua. A noite não está nada agradável. Eu trouxe uma manta de volta para que o senhor possa se enrolar.

— Eu gostaria, no entanto, que você tivesse me trazido algo para comer — disse o jovem, rindo.

— O senhor está com fome? — perguntou William, em tom de preocupação.

— Sim, desde o café da manhã que não como nada. Meu pai e eu começamos a brigar no minuto em que nos sentamos para almoçar, então me levantei e saí da mesa. Mas a fome não importa. Ao menos estou seco e aquecido, e posso esquecer a outra questão durante o sono.

— E é muito tarde para comprar algo — pensou alto o homem — o comércio está fechado há muito tempo.O senhor acha — acrescentou ele, animado — que poderia comer pão e queijo?

— Se eu acho? Eu chamaria isso de um perfeito banquete. Mas não se preocupe com comida essa noite, William. Já lhe dei trabalho demais e você deveria descansar.

A única resposta de William foi correr para a porta e descer as escadas. Logo reapareceu carregando em uma mão pão e queijo embrulhados em papel e na outra uma caneca cheia de cerveja.

— Foi o melhor que pude fazer, senhor — desculpou-se William. — Tive que pedir à proprietária da outra casa.

— Então à saúde dela! — exclamou alegremente o jovem sujeito, tomando um grande gole de cerveja. — Está melhor do que o champanhe da casa de meu pai!

— Ele não ficará preocupado com você? — aventurou-se a perguntar William, que, nesse momento, já havia esvaziado a cesta de carvão e, sentado sobre ela, assistia melancolicamente o filho do antigo patrão deleitar-se ao comer pão e queijo.

— Não — respondeu ele, convicto. — Quando ele perceber que está chovendo torrencialmente, ele apenas desejará que eu esteja sob esse dilúvio, e dirá que a água há de esfriar meu orgulho.

— Não acho que o senhor esteja certo — observou o homem.

— Pois eu tenho certeza que estou. Meu pai sempre me odiou, assim como odiava minha mãe.

— Perdoe-me, senhor, mas ele gostava muito da sua mãe.

— Se você tivesse escutado o que ele disse sobre ela hoje, teria razões para pensar diferente. Ele disse que eu era muito parecido com ela, tanto fisicamente como em personalidade; que eu era um covarde, um simplório e um hipócrita.

— Ele certamente não quis dizer isso, senhor.

— Sim, ele quis. Cada palavra. Ele realmente acha que sou um covarde, porque eu…eu… — e o jovem começou a chorar desesperadamente.

— Eu não gosto nem um pouco da ideia de deixá-lo aqui sozinho — disse William, olhando a sua volta com um ar de preocupação —, mas não tenho um lugar adequado para você ficar, e infelizmente preciso ir porque meu trabalho de vigilante noturno começa às doze horas.

— Eu ficarei bem — foi a resposta. — Só não devo falar mais do meu pai. Conte-me sobre você, William. Como você conseguiu uma casa tão grande e por que você a está deixando?

— O proprietário me encarregou de cuidar dela, senhor.  Mas minha esposa não gostou da casa.

— E por que ela não gostou?

— Ela se sentia muito sozinha à noite com as crianças — respondeu William, desviando o olhar. E acrescentou rapidamente:  — Agora, senhor, se não há nada mais que eu possa fazer por você, é melhor eu ir andando, porque já é tarde. Eu retorno amanhã cedo.

— Boa noite — disse o jovem, estendendo a mão, que o outro apertou da mesma forma espontânea como lhe havia sido oferecida. — O que teria sido de mim essa noite se eu não o tivesse encontrado?

— Não acredito em coincidências, Sr. Graham — foi a resposta serena. — Espero que esse lugar sirva para você descansar e se secar.

— Com certeza servirá — respondeu Coulton. E no minuto seguinte o homem estava sozinho na velha casa da Alameda Vauxhall.

 

CAPÍTULO 2

 

Deitado no banco, com o fogo da lareira já apagado e a sala em total escuridão, Graham Coulton teve um sonho estranho. Pensou que houvesse acordado de um sono profundo e visto um tronco ardendo na lareira e o espelho do outro lado da sala refletindo feixes inconstantes de luz. Ele não conseguia compreender como, mesmo estando tão longe do espelho, podia ver tudo nele; mas aceitou o inusitado sem espanto, como as pessoas geralmente fazem nos sonhos.

Ele tampouco se sentiu surpreso ao contemplar a silhueta de uma figura feminina sentada ao lado do fogo, empenhada em pegar algo que estava em seu colo e logo soltá-lo em um gesto de desalento.

Escutou o suave som de ouro, e percebeu que ela estava erguendo e soltando moedas. Ele se virou um pouco para ver a pessoa envolvida em uma atividade tão singular e sem sentido, e descobriu que, onde não havia cadeira na noite anterior, havia uma cadeira agora, na qual estava sentada uma bruxa velha e enrugada, suas roupas feias e esfarrapadas, um gorro que mal cobria seus poucos cabelos brancos, sua face magra, seu nariz curvado, seus dedos, mais parecidos com garras do que qualquer outra coisa, mergulhavam no monte de ouro, erguendo uma parte, somente para depois espalhar tudo, pesarosamente.

— Ah! Minha vida perdida! — ela se lamentou em tom de amarga angústia. — Ah! Minha vida perdida – por um dia, por uma hora novamente!

Da escuridão – do canto da sala onde as sombras eram mais profundas – da eterna escuridão que ficava próxima à porta – da noite sombria, com seus pés encharcados e água escorrendo de suas cabeças, surgem os velhos e as crianças, as mulheres exaustas e os corações cansados, cuja miséria aquele ouro poderia ter aliviado, mas de cujo infortúnio ele zombava.

Ao redor daquela figura mesquinha, que uma vez ali se sentou a regozijar, da mesma forma como agora se senta a lamentar, eles se aglomeraram – todas aquelas formas pálidas e tristes – os idosos de dias, as crianças de horas, o marginal em prantos, o miserável honesto, o viciado arrependido; mas um grito contido veio de um daqueles lábios pálidos – um grito por ajuda que ela poderia ter dado, mas que reprimiu.

Eles se aproximaram dela, todos juntos, como já haviam feito isoladamente durante suas vidas; eles oraram, choraram, suplicaram; com os olhos abatidos, a figura olhou os pobres que ela havia repelido, as crianças para cujos gritos ela havia fechado os ouvidos, as pessoas idosas que ela havia permitido passar fome por falta do que teria sido mera ninharia para ela; depois, com um grito terrível, ela ergueu os braços magros acima da cabeça e foi escorregando, escorregando da cadeira; o ouro se espalhando ao cair do seu colo, e rolando pelo chão, até que o seu brilho se perdeu na escuridão.

Então Graham Coulton despertou completamente, com suor escorrendo de cada um de seus poros, com um medo e uma agonia que ele nunca havia sentido em toda a sua existência, e com o som dos gritos aflitos — Ah! Minha vida perdida! — ainda ressoando em seus ouvidos.

Associado a tudo aquilo parecia haver alguma lição endereçada a ele, a qual havia esquecido, e que, por mais que tentasse, escapava a sua memória, havendo desaparecido no exato momento de despertar.

Ele ficou ali deitado, pensando sobre tudo aquilo, e então, ainda pesado de sono, refez o seu caminho de volta à terra dos sonhos.

Era natural, talvez, que, misturando-se às estranhas fantasias que viajam no trem da noite e das trevas, a visão anterior se repetisse, e o jovem logo se viu observando novamente aquelas cenas nas quais a figura da mulher, sentada ao lado do fogo quase apagado, ocupava lugar de destaque.

Ele a viu caminhando lentamente pela sala, mastigando uma casca seca – ela que poderia ter todos os luxos que a riqueza pode comprar; ao lado da lareira, contemplando-a, estava um homem de presença marcante, vestido de acordo com os costumes de muito tempo atrás. Ele tinha nos olhos um olhar sombrio de raiva, na boca lábios contorcidos em sinal de repulsa e, de alguma forma, mesmo em seu sono, Coulton compreendeu que era o ancestral da descendente que ele havia visto – a casa agora modesta na qual ele se encontrava nunca havia decaído tanto como aquela mulher possuidora de tão miserável alma, contaminada pelo vício mais desprezível e traiçoeiro que a humanidade conhece, já que todos os outros vícios parecem ter conexão com a carne, mas a ganância do avaro devora a sua alma.

Pessoa asquerosa, repulsiva de se olhar, de coração endurecido como ela era, ele ainda viu outro fantasma, que, entrando na sala, encontrou-a quase na porta e, tomando-a pela mão, implorou, ao que parecia, por ajuda. Ele não conseguia escutar tudo o que estava acontecendo, mas uma palavra ou outra chegava aos seus ouvidos. Algo sobre o passado; alguma menção a uma bela e jovem mãe – uma referência, ao que parecia, a um tempo em que eles eram apenas pequenos irmãos e a cobiça maldita por dinheiro ainda não os havia separado. Tudo em vão; a bruxa só lhe respondeu como ela havia respondido às crianças, às meninas e aos idosos em sua visão anterior. Seu coração era tão resistente ao afeto quanto provou ser à compaixão humana. Ele implorou, ao que parecia, por ajuda para evitar algum infortúnio amargo ou terrível desgraça, mas até na intransigência ele teria encontrado maior sensibilidade a sua súplica. Então a figura que estava parada ao lado da lareira transformou-se em um anjo, que fechou suas asas pesarosamente sobre o rosto, e o homem, com a cabeça baixa, saiu lentamente da sala.

No mesmo instante, a cena mudou novamente. Era noite mais uma vez, e a figura avarenta subia as escadas. De baixo, Graham Coulton a via se mover com dificuldade, de degrau em degrau. Ela havia envelhecido estranhamente desde as cenas anteriores. Ela se movia com dificuldade; parecia o maior esforço para ela se arrastar de degrau em degrau, sua mão magra percorrendo os balaústres com lenta e dolorosa determinação. Fascinado, os olhos do homem seguiram o caminhar daquela mulher débil e decrépita. Ela estava solitária em uma casa deserta, com uma escuridão mais profunda do que a escuridão da noite esperando para engoli-la.

Pareceu a Graham Coulton que, após isso, ele dormiu um sono tranquilo e sem sonhos, do qual despertou e se viu entrando em um quarto tão sórdido e sujo em suas instalações quanto a mulher de sua visão anterior. A esposa do mais pobre operário poderia reunir mais conforto a sua volta do que aquele quarto continha. Uma cama com quatro colunas sem decoração alguma, uma cortina mal instalada, um tapete velho coberto de pó, um lavatório caquético com a pintura toda desgastada, uma penteadeira antiga de mogno e um espelho trincado e cheio de manchas – foram todos os objetos que ele pôde identificar de início, observando o quarto naquela penumbra que geralmente existe em sonhos.

Pouco a pouco, no entanto, ele distinguiu a silhueta de alguém deitado, encolhido sobre a cama. Aproximando-se, ele descobriu que era a mesma pessoa cuja presença parecia impregnar a casa.

Que visão terrível era ela, com suas mechas finas e brancas espalhadas pelo travesseiro, com o que eram meros restos de cobertores acumulados sobre seus ombros, com seus dedos em forma de garras agarrando suas vestes, como se mesmo dormindo ela estivesse protegendo seu ouro.

Um espetáculo horrível e repugnante, mas que não tinha nem a metade do terror que viria em seguida. No momento em que o jovem contemplava aquilo, escutou passos furtivos na escada. Então ele viu primeiro um homem e, em seguida, o seu companheiro, entrarem cautelosamente no quarto. No segundo seguinte, os dois pararam ao lado da cama, com um desejo por sangue em seus olhos.

Graham Coulton tentou gritar, tentou se mover, mas o poder impeditivo que existe em sonhos prendeu sua língua e paralisou seus membros. Ele não podia fazer nada, a não ser escutar e ver, e o que ele escutou e viu foi o seguinte: subitamente despertada de seu sono, a mulher deu um pulo, mas somente para receber um golpe de um dos malfeitores, cujo companheiro seguiu seu exemplo e cravou uma faca no peito da mulher.

Então, com um grito abafado, ela caiu de volta na cama e, no mesmo instante, também com um grito, Graham Coulton despertou para dar graças a Deus por aquilo haver sido somente uma ilusão.

 

CAPÍTULO 3

 

— Espero que tenha dormido bem, senhor. — Era William, que, entrando na sala com a luz do sol de uma manhã radiante fluindo atrás dele, perguntou: — Você teve uma boa noite de sono?

Graham Coulton riu, e respondeu:

— Bem, na verdade, tive muitos sonhos. Eu dormi bem o suficiente, creio, mas não sei se por causa da briga com meu pai, a cama dura ou o queijo – muito provavelmente por causa do pão e do queijo tão tarde da noite – sonhei a noite toda, os sonhos mais extraordinários. Uma velha continuava a aparecer em todos eles e eu acabei por vê-la assassinada.

— Não me diga, senhor! — respondeu William, aflito.

— Sim, de fato — foi a resposta. — Mas isso tudo já passou. Eu fui até a cozinha e me lavei. Estou revigorado e morto de fome; e, ah, William, você me conseguiria algo para o café da manhã?

— Certamente, Sr. Graham. Eu trouxe uma chaleira, e vou ferver a água imediatamente. Eu presumo, senhor — disse cautelosamente — que retornará para casa hoje?

— Casa! — repetiu o jovem. — Definitivamente não. Eu não voltarei para casa até que tenha alguma medalha afixada a meu casaco, ou uma perna ou braço amputado. Já pensei em tudo, William. Vou me alistar. Estão comentando sobre uma guerra; e, vivo ou morto, meu pai terá razões para deixar de pensar que sou um covarde.

— Eu estou seguro que o almirante nunca pensou nada disso a seu respeito, senhor — disse William. — Você tem a coragem de dez homens!

— Não é o que ele pensa — respondeu o jovem melancolicamente.

— Não seja precipitado, Sr. Graham. Você não pode se alistar ou qualquer coisa do tipo em um momento de raiva.

— Se eu não fizer isso, o que será de mim? — perguntou. — Eu não sei trabalhar no pesado, e pedir esmolas seria muito vergonhoso. Se não fosse por você eu não teria tido um teto sobre a minha cabeça na noite passada.

— Eu receio que não seja exatamente um teto, senhor.

— Não é exatamente um teto? — repetiu o jovem. — Quem poderia desejar algo melhor? Essa sala é ótima — ele continuou, olhando a sua volta, enquanto William fazia fogo.  — Umas vinte pessoas poderiam jantar aqui facilmente!

— Se você gosta tanto do lugar, Sr. Graham, você pode ficar aqui por um tempo, até decidir o que vai fazer. O senhorio não fará objeções, tenho certeza.

— Ah! Mas isso é um disparate! Ele iria querer um contrato longo de aluguel por uma casa como esta.

Se ele conseguisse, eu ouso dizer — foi a resposta enfática de William.

— O que você quer dizer com isso? Ele está com problemas para alugar o local?

— Sim, senhor. Eu não quis lhe contar na noite passada, mas houve um assassinato aqui, e as pessoas temem a casa desde então.

— Um assassinato? Que tipo de assassinato? Quem foi assassinado?

— Uma mulher, Sr. Graham – a irmã do senhorio; ela vivia aqui sozinha, e supostamente tinha dinheiro. Se ela tinha ou não, o certo é que ela foi encontrada morta, vítima de uma facada no peito, e se alguma vez houve dinheiro, ele deve ter sido levado naquele mesmo momento, já que nada foi encontrado na casa desde então.

— Foi por isso que a sua esposa não quis ficar aqui? — perguntou o jovem homem, apoiando-se na lareira, e olhando pensativo para William.

— Sim, senhor. Ela não podia mais suportar. Ela ficou tão magra e nervosa como ninguém poderia acreditar. Ela nunca viu nada, mas dizia escutar passos e vozes, e quando ela caminhava pela sala, ou subia as escadas, sempre parecia que alguém a estava seguindo. As crianças dormiam naquele quarto grande em que você dormiu na noite passada, e elas frequentemente viam uma velha sentada ao lado da lareira. Nada nunca cruzou o meu caminho — terminou William, rindo —; eu sempre dormia no minuto em que minha cabeça tocava o travesseiro.

— Os assassinos não foram identificados? – perguntou Graham Coulton.

— Não, senhor. O senhorio, irmão da Srta. Tynan, sempre foi considerado suspeito – injustamente, tenho plena certeza – mas ele nunca será totalmente inocentado. Soube-se que ele havia vindo até a casa e pedido ajuda a ela um ou dois dias antes do assassinato, e também que ele teria conseguido solucionar todos os problemas que o estavam perturbando. Então, veja você, o dinheiro nunca foi encontrado e, em geral, as pessoas nem sabiam o que pensar.

—Hum! — disse Graham Coulton, enquanto andava para cima e para baixo, dando voltas na sala. — Posso ver esse senhorio?

— Certamente, senhor, se você tivesse um chapéu — respondeu William, com tamanha seriedade que o jovem desatou a rir.

— Isso certamente é um problema. E eu devo enviar uma mensagem a esse respeito. Eu tenho um lápis em meu bolso, então aqui vai.

Após meia hora do envio da mensagem, William estava de volta com uma gorjeta; os cumprimentos do senhorio, e a mensagem de que ficaria muito grato se o Senhor Coulton pudesse passar lá.

— Não faça nada precipitado, senhor — pediu William.

— Ora, homem — respondeu o jovem sujeito —, você pode ser atacado tanto por um fantasma como por uma bala. O que há para temer?

William apenas balançou a cabeça em sinal de reprovação. Ele não achava que seu jovem patrão era o tipo de pessoa que ficaria sozinho em uma casa mal-assombrada e resolveria o mistério que ali havia unicamente com seus esforços. E, ainda assim, quando Graham Coulton deixou a casa do senhorio, parecia ainda mais alegre e radiante do que o habitual, e subiu a Rua Lambeth até o lugar onde William o aguardava, cantarolando enquanto andava.

— Nós resolvemos o assunto — disse ele. — E agora, se o pai quiser o filho dele no Natal, será difícil encontrá-lo.

— Não diga isso, Sr. Graham, não!  — suplicou o homem, com um arrepio —; talvez, no final das contas, teria sido melhor se você nunca tivesse me encontrado na Alameda Vauxhall.

— Não fique resmungando, William. Se isso não foi o melhor que me aconteceu, então não sei o que teria sido.

Ao longo de todo aquele dia, Graham Coulton se empenhou em procurar o tesouro que o Sr. Tynan lhe assegurara nunca ter sido encontrado. A juventude é confiante e acredita ser dona da verdade, e esse novo explorador estava convencido de que, apesar de outros haverem falhado, ele conseguiria alcançar seu objetivo. No segundo andar, encontrou uma porta trancada, mas não prestou muita atenção a tal fato no momento, pois acreditava que, se houvesse alguma coisa escondida, era mais provável encontrá-la no piso inferior do que no piso superior da casa. Mais tarde naquela noite ele continuou sua investigação na cozinha, e em adegas e armários antigos, dos quais o porão estava cheio.

Eram quase onze horas quando, empenhado em vasculhar entre as latas vazias de uma adega tão grande quanto um jazigo familiar, ele repentinamente sentiu uma corrente de ar frio em suas costas. Ao se mover, a sua vela imediatamente se apagou e, no exato momento em que ficou na escuridão, viu, parada na entrada da adega, uma mulher, parecida com aquela que havia assombrado seus sonhos na noite anterior.

Ele correu para tentar agarrá-la, mas não pegou nada além de ar. Então acendeu novamente a vela e examinou cuidadosamente o porão, fechando, antes disso, a porta que dava acesso ao térreo. Tudo em vão. Ele não encontrou nenhum sinal de criatura viva – nenhuma janela aberta, nenhuma porta destrancada.

— Isso é muito estranho — pensou ele, após fechar a porta no alto da escada e procurar por toda a parte superior da casa, com exceção daquele cômodo trancado.

— Preciso pegar a chave desse quarto amanhã — ele decidiu, enquanto se encontrava parado ali com ar de desânimo, de costas para o fogo e seus olhos vagando pela sala de visitas, a qual ele havia transformado novamente em sua moradia.

No momento em que esse pensamento cruzou sua mente, ele viu parada junto à porta aberta uma mulher com cabelos desgrenhados, vestindo roupas velhas, esfarrapadas e sujas. Ela levantou a mão e a moveu em direção a ele de forma ameaçadora, e então, justamente quando ele corria em direção a ela, algo impressionante aconteceu.

No espelho havia uma segunda figura feminina e, ao avistá-la, a primeira se virou e fugiu, soltando gritos estridentes, enquanto a outra a seguia de um andar a outro da casa.

Totalmente aterrorizado, Graham Coulton observou aquela dupla pavorosa subindo as escadas e passando pela porta do cômodo trancado em direção ao topo da casa.

Demorou alguns minutos para que ele recuperasse seu autocontrole. Quando isso aconteceu, vasculhou os cômodos do piso superior, e os encontrou completamente vazios.

Naquela noite, antes de se deitar diante da lareira, trancou cuidadosamente a porta da sala de visitas; e ainda fez mais que isso: colocou o banco pesado na frente da porta, de maneira que, se a fechadura fosse forçada, ninguém entraria sem que houvesse muito barulho.

Ele ficou acordado por algum tempo, depois caiu num sono profundo, do qual foi despertado repentinamente por um ruído como se algo se arrastasse sorrateiramente por trás do lambril. Apoiou-se sobre o seu cotovelo e escutou, e, para a sua consternação, viu sentada no lado oposto da lareira a mesma mulher que havia visto antes em seus sonhos, lamentando-se por seu ouro.

O fogo não estava completamente apagado e naquele momento subiu a última labareda. Pela luz, por mais fugaz que essa fosse, pôde ver que a figura pressionava um dedo espectral em seus lábios e, a julgar pela virada de sua cabeça e pela postura de seu corpo, parecia estar ouvindo algo.

Ele também estava ouvindo – na verdade, ele estava muito assustado para fazer qualquer outra coisa. Cada vez mais nítido, o som que o havia despertado aumentava… um ruído sorrateiro que se aproximava mais e mais – parecia cada vez mais alto, por detrás do lambril.

— São ratos — pensou o jovem sujeito, embora, na verdade, seus dentes estivessem batendo de tanto medo. Mas logo em seguida ele viu algo que o fez mudar de ideia com relação aos ratos – o brilho de uma vela ou uma lâmpada através de uma rachadura no revestimento da parede. Ele tentou se levantar, se esforçou para gritar – tudo em vão; e, enfraquecido, não se lembrou de mais nada até acordar e ver a luz acinzentada da madrugada passando através de uma veneziana que ele havia deixado entreaberta.

Por horas depois do café da manhã, que ele mal tocou, bem depois de William tê-lo deixado ao meio-dia, Graham Coulton, que havia feito uma longa e minuciosa inspeção na casa pela manhã, sentou-se pensativo diante da lareira. Então, aparentemente tendo tomado uma decisão, colocou o chapéu que havia comprado e saiu.

Quando retornou, as sombras da noite estavam caindo, mas as calçadas estavam cheias de gente fazendo compras, pois era véspera de Natal, e todos aqueles que tinham dinheiro para gastar pareciam inclinados a fazê-lo.

A velha casa estava terrivelmente macabra naquela noite. Pelos cômodos desertos, Graham Coulton podia sentir que a figura fantasmagórica vagava sombria. Quando ele virou as costas, percebeu que ela estava voando do espelho para a lareira, da lareira para o espelho; mas ele não estava com medo dela agora, estava com muito mais medo de outro assunto que ele havia tomado para si naquele dia.

O silêncio terrível da casa crescia mais e mais sobre ele. Podia ouvir a batida do seu próprio coração na quietude absoluta que reinava ali, desde o porão até o sótão.

Por fim, William chegou. Mas o jovem homem não disse nada daquilo que estava em seus pensamentos.  Falou de forma alegre e otimista – perguntou aonde o seu pai acharia que ele tinha ido parar, e disse esperar que o Sr. Tynan lhe tivesse dado um bolo de Natal. Então William disse que era hora dele ir e, quando o Sr. Coulton desceu as escadas até a porta principal, comentou que a chave não estava ali:

— Tirei-a hoje para lubrificar.

— Eu queria lubrificá-la — concordou William —, pois estava bastante enrijecido. — Depois de haver dito tal banalidade, partiu.

Muito lentamente, o homem refez seus passos até a sala de estar, onde parou apenas para trancar a porta do lado de fora. Então, tirando suas botas, foi até o sótão, onde esperou pacientemente na escuridão e no silêncio.

Foi um longo tempo, ou pelo menos pareceu longo para ele, antes de ouvir o mesmo som que o havia despertado na noite anterior – um arrastar-se furtivo, depois uma corrente de ar frio, seguida por passos cautelosos e a abertura silenciosa de uma porta no andar de baixo.

Foi tudo muito rápido. Em um instante o jovem estava no topo da escada e fechou com uma tábua um buraco na parede. Silenciosamente, rastejou de volta para a janela do sótão, destrancou-a e lançou um chocalho, cujo som ecoou longe e próximo às ruas desertas. Então, descendo as escadas rapidamente, encontrou um homem que passou correndo por ele e chegou até o patamar da escada; mas percebendo a rota de fuga fechada, desceu as escadas e encontrou Graham lutando desesperadamente com seu companheiro.

— Dê uma facada nele, vamos! — disse ele, violentamente; e no instante seguinte Graham sentiu algo como um ferro quente atravessando o seu ombro, e então ouviu uma batida, quando um dos homens, atrapalhando-se em seu rápido voo, caiu do topo da escadaria.

Naquele momento, houve um estrondo, como se a casa estivesse caindo, e o jovem Coulton, fraco, cansado e sangrando, desfaleceu no limiar do quarto onde a Srta. Tynan fora assassinada.

Quando recuperou a consciência, estava na sala de jantar e um médico examinava o seu ferimento. Próximo à porta, um policial formalmente fazia a guarda. A sala estava cheia de gente; todos os miseráveis e vagabundos que havia nas ruas naquele momento se aglomeravam ali para ver o que havia acontecido.

Em meio a eles, dois homens estavam sendo levados à delegacia. Um deles, com a cabeça muito machucada, em uma maca; o outro algemado, proferindo impropérios terríveis enquanto saía.

Depois de um tempo, a casa foi esvaziada, a polícia tomou posse dela e o Sr. Tynan foi chamado.

— O que foi aquele barulho terrível? — perguntou Graham, ainda fraco, agora sentado no chão, com as costas apoiadas na parede.

— Eu não sei. Houve algum barulho? — perguntou o Sr. Tynan, deixando-se levar pela fantasia do hóspede, enquanto pensava.

— Sim, na sala de visitas, eu acho; a chave está no meu bolso.

Ainda concordando com o rapaz ferido, Tynan pegou a chave e subiu as escadas. Quando abriu a porta, que visão ele teve! O espelho havia caído – estava no chão, quebrado em mil pedaços. Com o peso do espelho, o aparador também havia caído, despedaçando a placa de mármore. Mas não foi isso que chamou a sua atenção. Centenas, milhares de moedas de ouro estavam espalhadas, e uma abertura atrás do espelho escondia caixas cheias de títulos, ações e escrituras, cuja posse custara a vida de sua irmã.

***

— Bem, Graham, e o que você deseja? — perguntou o almirante Coulton naquela noite, quando seu filho primogênito apareceu diante dele, um pouco pálido, mas sem nenhum problema aparente além desse.

— Não quero nada — foi a resposta —, somente pedir perdão. William me contou toda a história que eu nunca soube e, se você me permitir, vou tentar compensá-lo pelo problema que você teve. Eu tenho dinheiro —, prosseguiu o jovem, com um riso nervoso. — Eu fiz a minha fortuna desde que saí de casa, e a fortuna de outro homem também.

— Você só pode estar fora de si — disse rispidamente o almirante.

— Não, senhor. Estou em perfeito juízo — foi a resposta — e eu pretendo fazer algo melhor da minha vida do que eu teria feito se não tivesse ido àquela casa velha na Alameda Vauxhall.

— Alameda Vauxhall!  Do que você está falando?

— Vou lhe contar, senhor, se eu puder me sentar — foi a resposta de Graham Coulton, e então ele contou sua história.

 

*Charllotte Riddell (1832-1906), também conhecida como J.H. Ridell (e assim escondida sob o nome do marido, o engenheiro Joseph Hadley Riddell), foi uma das mais renomadas autoras de histórias de fantasmas na língua inglesa. Seu primeiro conto, “The Moors and the Fens”, foi publicado em 1858, sob o pseudônimo de F.G. Trafford, o qual ela abandonou  apenas em 1864. Algumas de suas principais histórias de terror podem ser encontradas no volume “Weird Stories”, de 1882.