Zbigniew Herbert, Marco(s) Aurélio(s) e a mão estendida entre a herança e a deserção – Piotr Kilanowski
Zbigniew Herbert, Marco(s) Aurélio(s) e a mão estendida entre a herança e a deserção[1]
Piotr Kilanowski[2]
Zbigniew Herbert (1924-1998) foi um poeta polonês, considerado um dos mais importantes representantes da poesia do século XX. A sua obra, além de dialogar de um modo especialmente significativo com a história da Polônia e do mundo no século XX, guarda grande significado no quadro atual. Os maiores problemas do humano desnudados pelos acontecimentos que se deram na terra do poeta encontram um claro reflexo na sua obra. Diz sobre ele Nelson Ascher:
“Filho de um país situado na pior vizinhança possível, entre a Rússia e a Alemanha, Herbert viveu no palco de batalhas sangrentas e conviveu com um amplo leque de tiranias. A história, para ele, era inescapável. Se ser polonês a tornava mais terrível, nem por isso sua perspectiva se reduz à de seu país, pois este foi apenas o lugar no qual ele assistiu ao suicídio da civilização europeia. Condizentemente, é da memória desta, dos mitos gregos à queda do Muro de Berlim, que seus versos se ocupam. Como Kaváfis, ele é capaz de estar em casa em qualquer época como se fosse a sua. Como Pessoa, ele criou uma espécie de heterônimo (ou talvez alter ego), o sr. Cogito.Seus poemas estão igualmente na contracorrente. Não há vanguardismo em seu estilo, que é ilusoriamente simples e direto. E a política, onipresente em sua obra, não se confunde com o panfletarismo fácil. Seu programa consiste na defesa do que resta da civilização contra a desagregação interna e a barbárie externa. Muitos ignoram que habitamos um mundo frágil e ameaçado (embora não pelo aquecimento global). Ele o sabia e, a cada releitura, seus versos se revelam mais assustadores e atuais”.[3]
Seja pelo fato de poetas gozarem de uma posição privilegiada nos países da Europa Central e Oriental, seja pela qualidade de sua poesia, Herbert conseguiu se tornar na Polônia sob o domínio soviético um poeta nacional, cujos versos eram citados por multidões e a muitos traziam ao mesmo tempo um consolo e uma possibilidade de refletir sobre si mesmos, o sistema e o mundo. Embora a Polônia, uma terra de poetas[4], exiba o privilégio de ter dois entre os quatro grandes nomes de sua poesia da segunda metade do século XX laureados com prêmio Nobel – refiro-me a Czesław Miłosz e Wisława Szymborska – no próprio país era Herbert que contava com maior apelo popular[5]. Depois da queda do comunismo, a sua poesia foi (e ainda está sendo) utilizada politicamente pelos partidos que constroem a sua imagem como defensores da polonidade e da resistência nacional no mundo globalizado. Com a morte do poeta em 1998, este procedimento tornou-se até mais abusivo, pois ele já não podia protestar. Diante do uso político da poesia de Herbert, o seu apelo popular diminuiu e a sua face universal ficou em evidência nos estudos e na percepção do universo letrado polonês. Este aspecto universal, que fez com que Herbert ficasse conhecido fora das fronteiras do país, é o testemunho do ser humano preso nas malhas da história, refletindo sobre a própria humanidade e as posturas que podem e devem ser tomadas diante do avanço da desumanização.
Considerando este o aspecto essencial da poesia do autor, podemos olhar para a sua obra nos contextos tanto dos totalitarismos e globalização, quanto no da experiência humana ao longo da história, que era o tema de muitas reflexões de Herbert. As suas constantes alusões ao mundo clássico, à herança cultural do Ocidente e à experiência histórica do ser humano foram expressas num estilo que foi assim resumido por Marcelo Paiva de Souza: “um traço formal limpo e sóbrio, por sobre um denso palimpsesto em que se depositam múltiplos estratos da memória cultural do Ocidente”[6]. Este estilo atípico para o lugar e a época, característico de Herbert, lhe valeu a classificação de um poeta classicizante, separado da realidade. Curiosamente, tal rótulo lhe foi atribuído ao mesmo tempo por parte de uma vertente de crítica da época comunista e por parte de poetas da geração mais jovem, que postulavam que, na poesia, a voz de protesto contra o sistema deveria aparecer de modo não velado. A obra herbertiana contém uma reflexão profunda sobre o ser humano diante de situações extremas, que é provocada pela vivência do poeta e é uma tentativa de resposta à frase de Adorno, que colocava em xeque a possibilidade de haver poesia depois das experiências totalitárias. A obra de Herbert por um lado dialoga com o legado clássico, por outro, enxerga a condição universal do ser humano nas suas dimensões trágicas e tenta posicioná-lo diante dos desafios do mundo moderno, sendo assim uma tentativa da análise existencial, histórica e filosófica do fenômeno humano e uma reflexão profunda sobre as suas possibilidades no mundo do presente.
Entre os vários temas que a obra do poeta descortina, um dos mais importantes é a questão do sofrimento inerente à vivência do ser humano, independentemente da época ou lugar. Para o autor, a experiência do sofrimento provoca a empatia e a solidariedade com os outros seres sencientes. A poesia torna-se uma ponte para o outro e ajuda a superar a deserção do mundo dos valores humanistas e da herança da civilização, oriunda da vida diante do extremo dos totalitarismos e igualmente presente no mundo globalizado. Mais ainda: a poesia que gira em torno de uma das mais viscerais experiências humanas – o sofrimento – transforma-se em uma das formas de resistência do humanismo, um exercício contínuo de empatia. A poesia compreendida assim volta a ter a função de doadora de sentido, volta a ser uma arte que aproxima os seres humanos deles mesmos e dos outros, suprindo os abismos da indiferença por recontar a vivência que é comum a todos.
Entre os temas centrais da obra de Herbert devemos mencionar a necessidade do mapeamento de antinomias que marcam a sua produção. Um dos maiores estudiosos da obra de Herbert, o também poeta e exímio tradutor Stanisław Barańczak, no seu livro Fugitivo da Utopia (Uciekinier z Utopii), vê o protagonista de Herbert como o deus Jano, olhando simultaneamente para os dois lados, sendo ao mesmo tempo “A” e “não-A”, negando assim a lógica binária. A poesia de Herbert, de acordo com Barańczak, é baseada na contraposição da tradição da cultura Ocidental com a experiência da vida no Leste comunista, do passado com o presente, do mito cultural com a concretude material da vida. Esta confrontação do tempo, espaço e fonte de experiência mostra um dos problemas centrais da obra de Herbert: ao mesmo tempo que sente como sua a herança cultural do Ocidente, sente-se dela deserdado, tanto pela situação política que impede o seu livre acesso a ela, quanto pela vivência em um mundo no qual houve a queda dos valores delimitados pela tradição cultural. Se por um lado o autor busca a sua herança e peregrina pelo mundo à sua procura, por outro vê, além do lado utópico de uma herança, proposto pelo ensino tradicional, o seu lado marcado pela crueldade, medo, violência e absurdo.
A releitura dos clássicos com os olhos do sobrevivente de uma guerra, que vive num país totalitário, resulta em uma visão que relativiza a visão paradisíaca em detrimento de uma leitura da experiência humana marcada pelos horrores da história e glórias e tristezas da humanidade. O diálogo com uma tradição revista num mundo no qual os valores estão turvados, ou líquidos, como propõe Bauman[7], constitui um tema importante para o estudioso contemporâneo. A desilusão provocada pela queda dos grandes mitos, a dificuldade de estabelecer novos parâmetros, novos valores, por fim, a indefinição do bem e do mal, a relativização das verdades são problemas do nosso mundo do século XXI, que já foram vistos, refletidos e expressos na obra de Herbert. A construção antinômica da sua obra e de seus personagens permite perceber a ilusoriedade da cultura criadora de mitos, mostrando ao mesmo tempo a miséria do ser humano deserdado do mundo de mitos e valores. A contraposição na sua obra de elementos da luz e da sombra, do branco e do cinza, do ar e da terra, da tradição mediterrânea e do presente da Europa do Leste, da realidade mítica e da realidade empírica, do abstrato e do concreto, do perfeito e do errôneo, por fim, do mundo divino e do mundo humano permite que as duas esferas desmascarem continuamente uma a outra. Para fins deste desmascaramento o autor vale-se do recurso mais característico da sua obra: a ironia.
Chamado pelo conterrâneo, poeta e seu tradutor Czesław Miłosz de “poeta da ironia histórica”, Herbert “consegue uma espécie de equilíbrio precário atribuindo sentido aos padrões oferecidos pela civilização, apesar de todos os horrores que ela traz”[8]. O estudo do processo irônico em Herbert é também feito por Barańczak, que mostra como a criação do protagonista desta poesia, uma espécie de imagem do intelectual do século XX, com vários traços autobiográficos, o senhor Cogito, é um recurso que permite ao mesmo tempo o distanciamento e a aproximação. Estes elementos de construção do senhor Cogito que têm entre seus correspondentes nas obras dos outros poetas, por exemplo, o Monsieur Teste de Valéry, Un certain Plume, de Michaux, o Mauberley de Pound, o Sweeney de Eliot ou o Herr K. de Brecht, sem falar do(s) caso(s) particular(es) de Fernando Pessoa, fazem com que seja possível tanto trazer a antinomia para dentro do mesmo indivíduo quanto, por meio disso, possibilitar o surgimento da ironia e da autoironia.
O protagonista de Herbert, conclui Barańczak, homem deserdado da cultura, expulso do paraíso, é dolorosamente consciente da sua perda e recusa-se a aceitar a sua deserção. Apesar desta consciência da irrecuperabilidade dos sonhos míticos da herança, da infância e da inocência, é preciso tentar o impossível: tentar recuperar a herança do humano.
Se uma das maneiras de desmascarar mutuamente os dois lados da antinomia onipresente na criação de Herbert é a ironia, uma das formas mais eficientes de tentar recuperar a herança é a empatia, o profundo conhecimento e solidariedade com a condição humana expressos pela cultura ao longo dos séculos.
Para o poeta Adam Zagajewski, a poesia de Herbert é sobre
“a dor do século vinte, sobre aceitar a crueldade de uma época desumana, sobre um extraordinário senso da realidade. E o fato que, ao mesmo tempo, o poeta não perde nada do seu lirismo ou do seu senso de humor – esse é o segredo, difícil de decifrar, de um grande artista”[9].
Mais adiante nessa direção vão os escritos de Andrzej Franaszek, no livro Ciemne źródło (A fonte escura) que aponta como o tema central da obra de Herbert a condição de sofrimento, à qual é condenada toda a criação. Diante da percepção do sofrimento como o elemento central da experiência humana, o poeta percebe a poesia como um exercício de compaixão. Sentir junto com os outros seres, independentemente da separação física ou temporal, encontrar as experiências semelhantes nos outros seres vivos, possibilita ao autor um original enfoque no estudo da arte, da história e das ciências naturais. Todo o estudo transforma-se em encontro com o outro, com a sua sensibilidade e sua humanidade. O outro como o reflexo do eu, o eu como o reflexo do outro – esta visão faz com que caiam as barreiras e se dê um encontro. Encontro o outro dentro de mim, dentro da minha experiência – uma visão da arte como diálogo e solidariedade, como um ato de sentir junto – seria esta a leitura do fazer poético de Herbert por Franaszek.
A visão de Barańczak sobre a poesia de Zbigniew Herbert, tida como um perfeito exemplo de uma dramática cisão entre o espaço da herança e da deserção, e a visão de Franaszek, a meu ver, se complementam. Os espaços definidos por Barańczak referir-se-iam por um lado à herança da cultura, da antiguidade clássica, dos valores e do humanismo e, por outro lado, à deserção deste espaço de herança provocado pelos acontecimentos do cruel século XX, que assolaram a pátria do poeta, junto com os dois totalitarismos, nacional-socialista e comunista. No mundo de hoje, poderíamos acrescentar a este espaço de deserção a transformação da cultura em mercadoria e a hibridização cultural do mundo capitalista, que fazem com que o espaço da cultura e dos valores esteja em contínua retirada. Por mais que possamos entender o problema apresentado por Herbert como uma vertente da antiga luta entre o idealismo e a realidade, é preciso observar a intensificação desta luta no mundo de hoje, e a aplicabilidade da universalidade dessa poesia, apesar de suas particularidades, na compreensão da contemporaneidade.
Refletindo sobre a colocação de Andrzej Franaszek a respeito da obra herbertiana, entendemos que, se por um lado o sofrimento é mal, por outro, ele é inerente à condição humana e pode provocar a abertura para a compassividade. Assim, no estudo de Franaszek, vemos efetivamente a poesia de Herbert como “uma mão estendida entre as trevas” da distância histórica e interpessoal num gesto de lembrar da dor alheia e se solidarizar com ela, por meio do reconhecimento da condição humana, sofredora, dos dois lados. Poderíamos dizer que este estender da mão se dá a partir do espaço da deserção, definido por Barańczak, espaço do poeta na direção do espaço da herança, tentando resgatar desta maneira tanto a herança, quanto a si mesmo da condição de deserdado. Herbert cria assim a sua própria maneira de lidar tanto com a herança que acaba se mostrando fria e longínqua na sua perfeição, quanto com a deserção, árida e privada dos mitos fundadores de sentido e valores, mas cálida com a identificação com o outro ser senciente, com a sua condição sofredora, semelhante à nossa. Como este processo se dá na poesia de Herbert? Tentaremos mostrar usando como exemplo um dos seus poemas.
No poema A Marco Aurélio proveniente de seu primeiro livro poético publicado, Struna światła (A corda de luz) (1956), Herbert tenta estabelecer o diálogo com o filósofo antigo. Ao mesmo tempo, o poema é dedicado ao professor Henryk Elzenberg, tido pelo poeta como um de seus mestres. Elzenberg dedicou o seu trabalho de pós-doutoramento à filosofia de Marco Aurélio (Marco Aurélio. Da história e psicologia da ética), o que permite identificar sua pessoa, um renomado filósofo, especialista em filosofia da antiguidade, como a de um possível destinatário do poema. Elzenberg, como vários outros professores, durante os tempos mais negros da ditadura comunista na Polônia, foi impedido de lecionar na universidade (a única filosofia que podia ser ensinada então era a que não poderia ser classificada como “superstição burguesa” – o marxismo tratado como dogma). Elzenberg, banido da universidade, em 1950, por “idealismo incorrigível”, só pôde voltar a lecionar no final de 1957. A primeira versão conhecida do poema está numa das cartas dirigidas por Herbert a Elzenberg, datada de 16 de dezembro de 1951, e apresenta diferenças mínimas em relação à versão publicada em livro. Elzenberg, na sua resposta de 29 de dezembro do mesmo ano, chega a fazer comentários sobre o poema, com os quais Herbert posteriormente concorda, mas não altera, em sua versão final, os pontos percebidos como problemáticos por Elzenberg.
A leitura das cartas permite também saber que aquilo que poderia ser visto como um erro do poeta (que fala do latim usado por seu protagonista, enquanto Marco Aurélio escrevia em grego), foi uma opção deliberada, no entanto, não se menciona o motivo de tal opção. Na sequência, apresentamos o poema em tradução filológica e numa tentativa de tradução poética, para comentá-lo posteriormente.
A Marco Aurélio
Para o professor Henryk Elzenberg
Boa noite Marco apaga a lâmpada
e fecha o livro Já sobre a cabeça
ergue-se o alarma argênteo das estrelas
este céu fala uma língua estrangeira
é o grito bárbaro de terror
que o teu latim desconhece
é o medo eterno o escuro medo
que contra a frágil terra humana começa
a bater E vencerá Escutas o marulho
é a preamar Demolirá tuas letras
a corrente inestancável de elementos
até ruírem as quatro paredes do mundo
e quanto a nós – tremer ao vento
e de novo bafejar nas cinzas turvar o éter
morder os dedos buscar palavras vãs
e arrastar atrás de si a sombra dos que tombaram
então Marco melhor te despir da calma
e estender a mão pela escuridão
que trema quando percutir nos cinco sentidos
como numa lira tênue o universo cego
nos trairá o universo a astronomia
o cálculo das estrelas e a sabedoria do capim
e sua grandeza demasiadamente imensa
e meu impotente Marco choro
A Marco Aurélio
Para o professor Henryk Elzenberg
Boa noite Marco apague a luz
e feche o livro Já inicia
dos astros o brado prateado
este céu fala a língua alheia
é o grito bárbaro de pavor
que é estranho ao seu latim
é o eterno escuro medo
que no humano chão sutil
bate E vence Ouça o som
é a maré O curso infindo
dos elementos – as letras suas
cantos do mundo estão ruindo
o que nos resta – tremer ao vento
soprar as cinzas o éter turvar
roer as unhas catar vãs palavras
a sombra dos mortos arrastar
pois melhor Marco da calma se dispa
dê a mão às trevas encimando
que trema quando nos sentidos
qual em tênue lira percute o mundo
nos trairá o cego cosmos
o cálculo astral o saber da grama
sua grandeza por demais enorme
e o pranto meu desamparado
Utilizar essa dupla dedicatória (do título e da dedicatória em si) nos permite observar um dos procedimentos típicos da poética herbertiana, que, aparentemente simples, inscreve-se em camadas múltiplas, sobrepostas, formando um palimpsesto cuja leitura exige muita atenção. O poema e a construção do(s) seu(s) destinatários são um claro exemplo da capacidade herbertiana de juntar os tempos passados com o presente. Usando de roupagem histórica, o autor fala sobre o tema que se refere não apenas aos tempos da antiguidade e do momento da sua criação, mas que pela sua universalidade consegue permanecer atualíssimo na contemporaneidade, cerca de 65 anos após ter sido escrito.
Herbert junta entre os destinatários: Marco Aurélio, Henryk Elzenberg, o homem culto da época dos totalitarismos e o homem culto da nossa época pós- moderna. Todos eles vivem nos tempos das invasões bárbaras. Os bárbaros históricos, que atormentavam o governo de Marco Aurélio, homem com ambições de levar uma vida calma, destinada à leitura e à escrita, com uma postura crítica diante da política e da vida pública, são simultaneamente os bárbaros que impedem Elzenberg de lecionar, e também os que nos espreitam diariamente pela janelinha da televisão, num incessante carnaval de diversões, e também os que permitem e incitam tal situação, investindo em tecnocratização do ensino e emburrecimento da sociedade. A semelhança une também os destinatários: todos eles creem que é sua obrigação ética lutar contra as invasões bárbaras, mesmo sem acreditar numa eventual vitória final. Se por um lado as catástrofes naturais, o apocalipse descrito no poema, podem ser lidos como um reflexo das pragas que assolaram o reinado de Marco Aurélio (tanto as naturais: as inundações provocadas pelas cheias do rio Tibre, a fome por elas causada, o incêndio de Roma, os gafanhotos, a peste negra, quanto as de ordem histórica: as revoltas e as guerras que se seguiram umas às outras ao longo de seu governo), podem também ser símbolos dos apocalipses vividos no século XX, ou da midiocracia, repleta dos gritos bárbaros provenientes de todos os aparelhos eletrônicos existentes, que impera nos dias de hoje.
O espaço da herança, o espaço da cultura, é atacado pela preamar do espaço da deserção. O remetente e o destinatário do poema compartilham a situação de deserção, do exílio do mundo dos valores idealistas ao serem confrontados com o mundo da realidade circundante. No caso de Marco Aurélio e de Elzenberg, podemos dizer que, diante dessa situação, eles conscientemente tentam seguir os preceitos dos estoicos, que por meio do uso da razão tentavam atingir a indiferença (apathea) a tudo o que é externo ao ser. A virtude é atingida por meio da libertação das emoções negativas e da aceitação da realidade, como o efeito da predestinação. Isto não significa de modo algum a inatividade: o homem virtuoso dos estoicos deve cumprir suas obrigações (familiares, profissionais), aceitar os bens ou o poder, caso os receba, mas não deve procurá-los ou utilizá-los para seus fins pessoais. A almejada indiferença, estado sem desejos e sem medos, deve ser conseguida por meio da adoção de um olhar racional. Os dois filósofos em questão, mesmo seguindo esses preceitos, não foram dos mais indiferentes e impessoais entre os estoicos. Comprova isso o tom muito pessoal das Meditações, que em algumas de suas partes eram uma espécie de diário ou memóriasde Marco Aurélio, e o mesmo tom encontrado no diário ou nas reflexões de Henryk Elzenberg O problema com a existência (Kłopot z istnieniem),[10] que podem ser contrastados com obras de outros filósofos estoicos de tom muito mais impessoal e indiferente.
Já o próprio poema de Herbert, citado acima, faz questão de estabelecer com os seus destinatários um diálogo que de modo algum poderia ser qualificado de impessoal. Ao longo das três estrofes temos um tom intimista, dirigindo-se três vezes ao destinatário pelo nome próprio, de modo direto, com o pronome de tratamento na segunda pessoa do singular, que em polonês indica muita familiaridade e proximidade, diferentemente do tratamento com o pronome na terceira pessoa do singular, que indicaria distância e deferência.
O poema se inicia com as imagens que simbolizam a civilização, a cultura, o espaço da herança – a lâmpada e o livro. O eu lírico convida o destinatário do poema a apagar a luz e deixar o livro de lado, diante da invasão do espaço da deserção. O fim do mundo que se aproxima ao som do grito de bárbaros e do “alarma argênteo das estrelas”, ao som do céu que, despertando o medo, fala num idioma que, no original polonês, é adjetivado como obcy, que tanto pode significar estrangeiro como estranho.
O contraste dos símbolos do espaço da herança cultural (lâmpada, livro, latim, letras, palavras, lira, astronomia, cálculo das estrelas) e da deserção (escuridão, língua estranha, grito dos bárbaros, medo) define os espaços do mundo do eu lírico e do mundo ao redor dele. A invasão do espaço bárbaro é enorme, inédita. Provoca até o alarme argênteo, soado pelas estrelas, normalmente longínquas dos assuntos humanos. A seguir observamos o apocalipse da guerra, marcado pela presença dos quatro elementos (ou cinco se considerarmos a presença do éter, o quinto elemento aristotélico) no poema: água (preamar), terra (frágil terra humana), fogo (soprar as cinzas) e ar (tremer ao vento). Estes elementos demolem as letras e as quatro paredes do mundo. Presenciamos a destruição da cultura e do mundo dos valores simbolizados pela casa (quatro paredes) e da concepção do mundo como a casa. Presenciamos a crise da linguagem e dos valores, por séculos expressados por meio da palavra escrita, provocada pelos acontecimentos apocalípticos (destruição das letras). O mundo como conhecido até então está sendo arrasado. Os seus quatro cantos, as suas letras, estão sendo devorados pela ira dos elementos, pelo medo que vence junto com os bárbaros de todas as espécies. É o fim do mundo que, pelo fato de ser descrito no tempo futuro, está acontecendo sempre, a cada momento, é um acontecimento eternamente iminente. Esse procedimento, que eterniza a iminência do apocalipse, também contribui para tornar o poema universal, pois nada mais universal que o fim do mundo que acontece a cada segundo.
E o que resta ao ser humano diante da catástrofe? O poeta responde:
e quanto a nós – tremer ao vento
e de novo bafejar nas cinzas turvar o éter
morder os dedos buscar palavras vãs
e arrastar atrás de si a sombra dos que tombaram
Tremer ao vento pode simbolizar a necessidade de assumir a condição do caniço pensante de Pascal – frágil e efêmero. Bafejar nas cinzas pode ser lido como tentar reacender o fogo acalentador após o incêndio que destruiu o mundo, restituir a fonte de luz e calor, a lareira. Turvar a quintessência, o éter, por sua vez se refere a tentar mudar a matéria cósmica da qual são compostas as almas na busca do restabelecimento dos valores. Morder os dedos é o sinal universal de desespero pelas perdas ocasionadas pelo fim do mundo, enquanto as palavras vãs são o símbolo da impotência da cultura diante da realidade, que mesmo com a consciência da sua impotência não deve ser deixada de lado. A sombra dos que tombaram, foram mortos, é o peso que não pode ser esquecido e precisa ser arrastado pelos que sobreviveram pela vida afora – este tema volta em vários outros poemas de Herbert, como um dever para com os que pereceram nos apocalipses totalitários. Ao ser humano resta, portanto o dever de tentar reconstruir o espaço da cultura, mesmo sabendo da sua impotência diante da realidade. Mesmo sabendo que será em vão e que não tem sentido, mas entendendo que a tentativa de construir o sentido, já é o sentido em si. Esta estrofe está particularmente conectada com a ética pregada por Henryk Elzenberg, que a chamou de “um comportamento corajoso diante do ser” (ELZENBERG, 1994. p. 148) e da “guerra declarada ao mundo pelo sujeito”(ELZENBERG, 1986, p. 130). A oposição ao mundo, mesmo que este mundo e a oposição careçam de sentido, dá um sentido ao ser humano.
A resposta, ou melhor, o acréscimo de Herbert a esta ética, que ele mesmo professava, é despir-se da armadura, ou da máscara da calma[11] racional proposta pelo estoicismo e estender a trêmula mão pela escuridão, no intuito de encontrar o outro. No meio das trevas da deserção, no meio da escuridão da história e da política, só o contato humano pode ser uma tentativa de se opor. Despindo-se da calma, da grandeza demasiadamente imensa, portanto desumana, o eu lírico revela o seu impotente e desesperado choro. E, despindo assim a couraça, revela-se humano, por meio da revelação da sua vulnerabilidade, do seu sofrimento. Este ponto de sofrimento, comum a todos os seres humanos, é uma tentativa de restabelecer-se numa outra herança, maior que a perdida herança da cultura – a herança do humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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ZAGAJEWSKI, Adam. Poeta rozmawia z filozofem. Warszawa, Fundacja Zeszytów Literackich 2007.
[1] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. Autor agradece leituras, correções e sugestões sobre o artigo e sobre as traduções dos poemas a Eneida Favre.
[2] Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC, tradutor.
[3]ASCHER,Nelson. O sr. Cogito. Folha de São Paulo. São Paulo. Ilustrada. 14.04.2008. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1404200820.htm>. Acesso em 19.09.2013.
[4] Denominação usada por Roberto Barros de Carvalho na entrevista com Marcelo Paiva de Souza, publicada na edição 307 de Ciência Hoje. Disponível em: <http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/sobrecultura/2013/08/pais-da-poesia>. Acesso em: 19.09.2013.
[5]Um pouco mais sobre este fenômeno pode ser lido em artigo de Marcelo Paiva de Souza (SOUZA, Marcelo P. Ao vivo, direto do vale de Josafá – algumas reflexões sobre a poesia e a tradução da poesia de Zbigniew Herbert. Tradução em Revista (Online), v. 1, p. 7, 2011), que traz as palavras de Stanisław Barańczak a respeito desta popularidade local e universal.
[6]SOUZA, Marcelo P., Ob.cit.
[7] O sociólogo Zygmunt Bauman em vários de seus escritos apresenta o conceito de incerteza, a liquidez do mundo moderno. O mais conhecido e o primeiro entre os que tratam do tema da liquidez é Modernidade líquida. Traduzido por Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
[8]Fragmento da introdução de Czesław Miłosz aos poemas de Zbigniew Herbert na antologia Postwar Polish Poetry. Selected and translated by Czesław Miłosz. Garden City, New York, Doubleday 1965, p. 89.
[9]Adam Zagajewski, Herbert dla Amerykanów Em: Zagajewski A. Poeta rozmawia z filozofem. Warszawa, Fundacja Zeszytów Literackich 2007, p. 108. A tradução do trecho, sem referências bibliográficas e créditos do tradutor, foi disponibilizada no blog Questões cinematográficas de Eduardo Escorel no artigo Cosmopólis o poeta traído, que trata do uso do poema de Herbert em filme de Cronenberg. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/cosmopolis-o-poeta-traido>. Acesso em 19.09.2013.
[10] Cito um fragmento das anotações de Elzenberg, de antes da guerra (20 de fevereiro de 1938), proveniente de seu livro O problema com a existência, cuja leitura, além de dar ideia do estilo do filósofo, pode também ser interessante no contexto deste poema: “Guerra diante da porta. Guerra se aproximando, se aproximando, eclodirá a qualquer momento, sem anúncio prévio. É preciso preparar-se psicologicamente. Esta guerra vai alcançar a vida muito mais profundamente que aquela. Será um corte generalizado, tirará de sob os nossos pés todo o fundamento. Não nos deixará tanta tranquilidade quanto antes, quando nos tempos de guerra podia-se amar, brigar e fazer as pazes, escrever tratados filosóficos, palestrar sobre eles na Academia, viajar com uma bolsa para Viena e dedicar semanas para visitar as galerias de arte e ler obras sobre Rembrandt. Não nos trará esperança alguma: será ótimo se trouxer só mudanças para o pior e não a ruina total. Pois pode nos transportar para o mundo em que de maneira alguma será possível respirar. Para as pessoas que apostaram na carta do pensamento, na carta da arte, da criação isto pode ser o fim – literalmente. Restará então apenas manter o equilíbrio e a firmeza do caráter, e com o intelecto vigilante abarcar este sui generis magnífico espetáculo de mundos a ruir. E se optar por trabalhar e escrever, então com a consciência total de que ninguém nunca será capaz de usufruir disso. Isto exigirá o cumprimento de duas condições que, a bem da verdade, se excluem mutuamente: apegar-se a alguns assuntos da vida e ao mesmo tempo desapegar-se, transportar-se com toda a bagagem espiritual para um vazio total.” (ELZENBERG, 1994 p. 264-265)
[11]Esta foi a leitura do próprio Elzenberg na sua resposta à carta de Herbert: “Penso que no [poema do] Senhor está aqui a imagem da máscara, mas para o leitor se impõe com uma força pelo menos igual à imagem da armadura (…). (HERBERT, ELZENBERG, 2002, p. 22)