Uma breve conversa sobre As coisas da vida, de António Lobo Antunes – Aurora Bernardini

Uma breve conversa sobre As coisas da vida,  de António Lobo Antunes 

Aurora Bernardini*

Lobo Antunes livro

 

 I – Preliminares

Concordando com  quem diz ( lembro, por exemplo Sérgio Paulo Rouanet ,numa  de suas numerosas entrevistas na TV ) que o Google é o  que de melhor a Internet nos trouxe, não só pela informação instantânea , mas pela possibilidade de cruzar os dados, aqui vão as duas pesquisas que fiz em data  28 de dezembro de 2015, retiradas diretamente do Google, sobre António Lobos Antunes:  alguns dados biográficos, que servem a situar o leitor quanto à  sua época, à sua ambiência e a seus feitos, e a bibliografia do autor , onde está cronologicamente inserida a obra que iremos comentar.

I.1 Biografia

António Lobo Antunes – CITI

www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes/ala16.html

António Lobo Antunes, escritor que leva já quinze obras publicadas, nasceu em 1942, em Lisboa, na zona de Benfica, onde cresceu. “Tive a sorte de ter uma infância muito boa, passada em Benfica que, na altura, era um microcosmos, das várias classes sociais, tudo aquilo misturado, larguinhos, pracinhas.”

É o mais velho de seis irmãos. São eles João, que se dedica à medicina, Pedro à arquitectura, Miguel à jurisprudência, Manuel à diplomacia e Nuno à neurologia pediátrica.

De todos os irmãos, foi com João que estabeleceu uma relação mais forte: “… sobretudo com o João, porque vivíamos dois a dois, em cada quarto, e o João era o meu companheiro.”

No que concerne à sua relação com a família, Lobo Antunes tem a dizer: “Talvez por na família haver uma grande contenção e uma grande austeridade, ainda hoje falo com o meu pai mais de literatura do que dos nossos sentimentos pessoais… Sou capaz de falar de emoções e sentimentos com os meus amigos, mas, com os meus pais, há um enorme pudor, não sei se estão bem afectivamente, em que partido é que eles votam.” (cfr. crónicas)

Relativamente à educação, diz: “Nós somos seis rapazes e tivemos a sorte de os meus pais serem extremamente estimulantes, no sentido de nos fazerem interessar por tudo, desde de cálculo integral até à literatura. Havia uma enorme curiosidade intelectual da parte do meu pai, sobretudo, mas também da minha mãe.”

António Lobo Antunes licenciou-se na Faculdade de Medicina, em Lisboa – afirmou ter ido para medicina por acaso. Isso acontecia à maior parte de filhos dos médicos. “Na verdade, nunca quis ser médico. Mas eu era o mais velho e, naquela altura, quando se chegava ao quinto ano, tínhamos de escolher entre ciências e letras. Ora, eu tinha treze anos – o meu pai perguntou-me o que é que eu queria fazer, eu disse que queria ser escritor e, portanto, queria ir, naturalmente para a Faculdade de Letras.(…)lembro-me de o meu pai me dizer, na altura, que, se eu queria ser escritor, o melhor seria tirar um curso técnico, que isso me daria uma preparação melhor. Eu penso que ele estava preocupado com a ideia de eu ter de ser professor de liceu e que tivesse uma vida mais ou menos difícil e triste, e achava que a medicina poderia ser uma via melhor para mim.”

Especializou-se em psiquiatria por pensar que era parecido com literatura.

Parte da sua experiência clínica foi praticada em Angola, durante a Guerra Colonial. “Quando fui para África, ainda que contasse com pouca experiência cirúrgica, tinha de fazer amputações, tinha que fazer essas coisas tramadas que há a fazer em tempo de guerra… Então, levava o tratado de cirurgia, o furriel enfermeiro, que não podia ver sangue, ia-me lendo aquilo tudo, os procedimentos, e eu ia operando. Felizmente nunca nos morreu ninguém assim. Portanto, a minha relação com a medicina era essa.”

Posteriormente, veio para Portugal: “Depois quando voltei de África, fazia ‘bancos’ em vários sítios porque ganhava pouco dinheiro como interno e, depois chegava a casa e continuava a escrever sempre. Por um lado, funcionava como anti depressivo e, por outro, tinha a sorte de estar com o Ernesto Melo Antunes, que era meu capitão. Recebíamos imensos livros. O relacionamento com Melo Antunes foi decisivo para mim e é uma amizade que ainda hoje dura.”

No que concerne à política, apenas uma vez foi militante da APU (1980). No entanto, em relação à questão do poder, afirma estar um pouco distanciado, talvez por formação e herança do seu pai que era anarquista. Lobo Antunes caracterizou numa entrevista o pai da seguinte forma: “Ele é realmente um homem de uma grande visão, de superior inteligência, de grande sensibilidade.”

Foi, sensivelmente, a partir de 1985 que Lobo Antunes se dedicou quase exclusivamente ao ofício da escrita. Referiu apenas ter conhecido pessoas do meio artístico depois de se tornar escritor. Entre elas José Cardoso Pires, um dos seus melhores amigos. Embora não directamente ligado ao meio artístico, é de referir Daniel Sampaio, que foi fundamental para a publicação das suas primeiras obras, uma vez que foi ele que se preocupou em falar com as editoras – nomeadamente, a sua primeira obra, Memória de Elefante, datada de 1979.

Os temas abordados nas suas obras são a Guerra Colonial (essencialmente nas primeiras); a morte; a solidão; a frustração de viver/não amar. Numa entrevista em 1992 ao Público, afirmou ter começado a abordar um tema que até então não tinha feito parte dos seus romances: a ternura – “No fundo nos sentimentos, nas emoções, no fundo em face dos grandes temas que acabaram por ser sempre os mesmos ao longo dos livros todos: a solidão, a morte, necessariamente também a vida, depois o amor ou a ausência dele, e penso que cada vez mais a ternura.”

A sociedade urbana da média burguesia é a mais retratada nos seus livros, uma vez que esta sociedade caracterizou o seu próprio ambiente familiar. Deste modo, o autor tem necessidade de partir duma base real para a criação das suas obras.

Quanto a publicações, Lobo Antunes tem várias no estrangeiro e quanto a Portugal diz “não ter necessidade de as publicar cá: porque o meu nome não aparece em parte nenhuma, porque recuso tudo: entrevistas, convites. Às vezes pergunto-me porque o faço, julgo que, por um lado, é porque tenho tido lá for a uma aceitação que não encontro cá; depois, porque me aparecem existirem muitos equívocos ao nível da Literatura neste país.

Aludiu numa entrevista à Visão, em Setembro de 96, que as principais influências nos seus livros foram o cinema norte-americano, o cinema italiano, os andamentos da música, e também alguns escritores que o encantaram na adolescência, como sejam: Céline, Hemingway, Sartre, Camus, Malraux, Júlio Verne e Emilio Salgari; mais tarde foi a descoberta de Simenon e posteriormente a descoberta dos russos com Tolstoi e Tchekov. “A minha família tem pouco sangue português: sou meio brasileiro, meio alemão. Fui formado, sobretudo, pela literatura dos estrangeiros, norte-americanos em particular: Faulkner, Scott Fitzgerald, Thomas Wolf.” – declarou Lobo Antunes ao Jornal de Letras, em Novembro de 85.

A propósito de numa entrevista ao Jornal Record, em Dezembro de 1996, ter referido a mudança que tudo sofre, nomeadamente a terra onde viveu a sua infância, afirma que o mesmo acontece com as suas filhas que vão crescendo, mas que a imagem delas na infância perdura na memória. O escritor tem três filhas: uma de 27, outra de 25 e outra de 15. Quanto à sua relação com elas, diz: “Actualmente, julgo que é boa. Mas eu nunca pergunto nada, não lhes faço perguntas pessoais. Como a mim nunca me fizeram. O meu pai só me dizia: nunca faças nada de que te possas arrepender. E o facto de haver liberdade obrigava-nos, naturalmente a um maior auto-controle e auto-responsabilização.”

Embora dedique a sua vida à escrita, costuma ir muitas vezes ao hospital: “vou ao hospital trabalhar só para não me sentir maluco, porque escrever é uma coisa muito solitária e às vezes, é preciso ver outras pessoas.”

Escrever todos os dias é já uma necessidade de Lobo Antunes. “É sempre igual: começo a escrever às duas da tarde, quando posso, às dez da manhã, mas nem sempre é possível, e trabalho até às duas, três da manhã, com uma pausa para almoçar e outra para jantar. ” É no seu escritório, uma pequena sala de duas assoalhadas junto do Cemitério do Alto de S. João, que Lobo Antunes escreve. Quanto a mobiliário, apenas uma pequena mesa de tampo de mármore partido, dois ou três sofás de napa sem braços, duas cadeiras, uma cama, um guarda-fato, um cabide de pé e um televisor sobre a alcatifa; uma das paredes está decorada com minúsculas fotografias e cromos de jogadores de futebol, essencialmente do Benfica e da década de 60.

Sobre a escrita, Lobo Antunes diz: “Eu escrevo livros para corrigir os anteriores, E ainda tenho muito para corrigir.” Numa outra entrevista afirmou também: “no fundo, a nossa vida é sempre uma luta contra a depressão e, em relação a mim, escrever é uma forma de fuga ou de equilíbrio… Por outro lado, há a sensação de qualquer coisa que nos foi dada e que temos obrigação de dar às outras pessoas: quando não trabalho sinto-me culpado. Há ainda a sensação do tempo, ou seja, ter na cabeça projectos para 200 anos e saber que não vamos viver 200 anos…

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I.2 Bibliografia do autor

https://pt.wikipedia.org/wiki/António_Lobo_Antunes

 

Obras publicadas

 

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I.3 Opinião sobre Cartas da Guerra

À  obra de Lobo  Antunes havia eu sido introduzida por minha  colega portuguesa Celeste  Marquês  Ribeiro que me  familiarizou com  a crueza e a denúncia  de Memória de Elefante, dizendo-me que  só com Lobo Antunes  ela havia entendido o que foi a guerra colonial portuguesa.  O segundo livro dele que li foram as Cartas da Guerra, escritas à primeira mulher , quando ele tinha 28 anos,  e  recorro novamente ao Google para  uma análise  temática sucinta:

D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO – António …

www.citador.pt/biblio.php?op=21&book_id=137

Opinião

Ao permitir a publicação destas cartas, Lobo Antunes abre-nos, descaradamente, a porta à sua privacidade. Muitas vezes, ao longo do livro, o leitor sente-se um intruso na intimidade do autor. É impressionante a forma como o grande escritor exprime de forma honesta e comovente os seus sentimentos mais íntimos, uma intensa vida interior que só a solidão proporciona. O amor e a saudade são os temas gerais das cartas.
O subtítulo do livro (“Cartas da guerra”) é, de certa forma, enganador. A guerra é sentida como um monstro estúpido e absurdo, do qual se evita falar. Por dois motivos: porque era vedado ao soldado transmitir informações relevantes e porque, para Lobo Antunes, falar da guerra era algo doloroso. É como se as cartas funcionassem como uma forma de escapar ao monstro e não para dar notícia dele. São desabafos íntimos e, acima de tudo, uma imensa manifestação de amor.
Um dos aspectos mais surpreendentes das cartas é a manifestação dos gostos literários do autor. Surpreendente a forma como revela um certo criticismo em relação a
 escritores muito conceituados, como se o auto-conceito de Lobo Antunes como escritor superasse todas as estrelas da literatura universal. Mas não; trata-se apenas de momentos de euforia que, em breve, são substituídos por fases de depressão em que se considera o mais fracassado dos escritores.
Ao longo das cartas, vai-nos dando conta, a par e passo, da escrita da sua primeira grande obra: ”Memória de Elefante”. Aqui reside um dos maiores motivos de interesse destas cartas: o relato do sofrimento do escritor, dos seus momentos de euforia e de crises de inspiração. Interessante também a forma como se esforça por recusar influências, se bem que nunca esconda a sua admiração por escritores como Faulkner, Céline ou Garcia Marquez.
Intimamente, Lobo Antunes vagueia entre uma modéstia exagerada, deprimida, e um convencimento entusiasmado. Talvez essas oscilações sejam o reflexo do momento depressivo que vivia. Mas são também, sem dúvida, traços característicos da genialidade do grande escritor; um escritor que sonhou com o Nobel e que, cada vez mais, o merece.
Mas para lá da genialidade do escritor, da sinceridade das suas confissões, da bravura do soldado/médico, sobressai a grandeza do homem: um homem bom, delicado, sensível,
 altruísta, generoso – um homem comoventemente bom.

O que me impressionou particularmente, após a leitura dessas cartas, foi ficar sabendo que a dolorosa  ruptura com a primeira mulher, que se deu três anos após seu retorno da guerra em Angola, marcou-o indelevelmente e contribuiu  – creio eu –  para acentuar seu ceticismo também  quanto às relações amorosas, que se nota, em particular, em As coisas da vida. Mas não é esse tipo de ceticismo que vou comentar.

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2. Comentários

Passemos  pelas 60 crônicas que compõem As coisas da vida. Organizadas em sete grandes temas – diz a contracapa -: infância, literatura, relacionamentos amorosos, humor, cenas do cotidiano, guerra em Angola e memórias  ( Seleção de crônicas das que compõem  Livro de Crónicas e Segundo Livro de Crónicas . Em tempo: felizmente a edição brasileira conserva a grafia não globalizada que lhes deu o autor) e passemos a dizer o porquê dessa escolha.

Além do estilo direto, contundente, e da autenticidade salutar da escrita de Lobo Antunes que , às vezes, quase que necessariamente raia a brutalidade ( basta ver, no Google, para quem interesse, os exemplos retirados  de sua entrevista a El País) há, no meio dessas crônicas, uma delas,  importantíssima que se chama “ Receita para me lerem” sobre a qual vou me deter por seu ineditismo.

“ Aquilo a que por comodidade chamei romances, como teria podido chamar poemas, visões, o que se quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. A pessoa  tem de renunciar à sua própria chave, aquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a alheia, e  utilizar a chave que o texto lhe oferece.”

Até aqui, a concordância do leitor que sabe que, para entender um romance, um conto, uma narrativa qualquer , tem que aceitar as regras do jogo que o texto propõe, é automática.

Mas o autor continua:

De outra maneira  torna-se incompreensível, dado que as palavras são apenas signos

de sentimentos íntimos,  e as personagens, situações e intriga, os pretextos de superfície

que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma”.

“Fundo da alma” tudo bem, mas o que  significará esse adjetivo “ avesso”? Há algo como “ danoso”, “contrário” , antagônico”, “ maléfico”, “enganador”, nas acepções que o dicionário (Houaiss) dá ao termo.  Esse “ fundo avesso da alma” aparece em muitos escritos autobiográficos  como um meio de épater le bourgeois , raros são os autênticos e—justamente por isso – os integrados à obra. Veja-se, por exemplo, Entrevistas com Francis Bacon – A Brutalidade do Fato de  David Sylvester. Continuemos:

“A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao

negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana (…) Exijo que o leitor

tenha uma voz entre as vozes do romance (…) O livro ideal seria aquele em que todas as

páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos

dois somos”.(Grifos meus)

Tolstói tinha como um dos pontos altos de seu O que é a Arte?  justamente aquilo que ele chamava de “ contaminação”, ou seja como que uma transfusão do estado físico-intelectual do narrador, para o leitor, no momento em que aquele escrevia determinado texto.

Quem não entender isto aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares,e menos

importantes dos livros: o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da

procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc., temas se calhar muito

importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver

com meu trabalho.

 ( Geralmente, é  a esses temas que se atem a crítica literária hodierna de cunho  especialmente culturalista.)

Mas:

“O mais que,em geral, recebemos da vida é um conhecimento dela que chega demasiado

tarde.”Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas:

são somente símbolos materiais de ilusões fantásticas, as racionalidade truncada, que é a

nossa.”

Se o conhecimento da vida, na vida, nos chega  demasiado tarde, a literatura , em algumas obras privilegiadas, nos fornece indícios para que ele chegue mais cedo, até adiantado, nos diz Ricardo Piglia em seu importantíssimo livro O  laboratório da escritura. ( Em português , traduziram o original castelhano “ escritura” como “ escritor”). Uma boa  narrativa  é aquela em que há , embaixo da linearidade dos fatos que acontecem, um após ( ou antes) o outro, uma outra camada, como um lençol subterrâneo que em alguns momentos extravasa pelos interstícios da trama  revelando indícios da raiz da história, do seu verdadeiro significado, do que é realmente importante para entendê-la.

Curiosamente,   et   pour cause, Heidegger em sua Carta sobre o Humanismo, tem uma fraseque diz  ( reproduzo de memória):  “ a arte penetra pelos interstícios do ente”.

Voltemos  a Lobo Antunes, para concluir:

“ É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva página a página, que a nossa

enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não possui e todavia lhe

dávamos, para que outra ordem nasça desse choque (…)”

“ Assim que conhecemos as respostas, todas as questões se tornam inimportantes”.

Muitas  teses universitárias, em particular, mas também de ensaística e de narrativa  ocupam páginas e páginas para dizer o óbvio. O óbvio – já foi dito e comprovado – adormece o cérebro. O cérebro torna-se preguiçoso, as mentes deixam de procurar e se acomodam no que é sem surpresas. Mesmo a narrativa “ bem escrita”, ou seja, aquela em que o autor domina a língua, acaba frustrando  o leitor por sua “inimportância”. Salva-se a poesia,  quando o poeta consegue concentrar  universos nas  poucas palavras que se autoconstroem. Mas é coisa rara.

 

* Professora titular de Teoria Literária e Literatura Russa na Univiversidade de São Paulo (USP).