Cúmplices e vítimas, de François Mauriac – Tradução de Rodrigo Conçole Lage

Cúmplices e vítimas, de François Mauriac

                                                                 Tradução de Rodrigo Conçole Lage[1]

François Mauriac

 

Um do muitos artigos de jornal publicados pelo ganhador do Nobel de Literatura de 1952, François Mauriac, no semanário de inspiração cristã Temps présent, do dia 17 de dezembro de 1937. O texto trata dos assassinatos cometidos por Eugen Weidmann (1908-1939) e seus cúmplices; e de como o que aconteceu devia ser visto como um exemplo do que estaria acontecendo por todo o mundo. Weidmann havia sido preso por roubo e, na prisão, conheceu Roger Million e Jean Blanc, que se tornaram seus cumplices em seis assassinatos. Preso em 1937, ele foi condenado a morte no dia 17 de junho de 1939. Ao refletir sobre o assassino, o autor analisa a sociedade dentro da ótica cristã, a partir de dois princípios: o da perda da graça de Deus e o de como o pecado nos cega.

 

Cúmplices e vítimas[2]

Por François Mauriac.

 

Um Weidmann, que coloca o absoluto no mal e não atribui nenhum limite ao crime tem um poder quase sobrenatural sobre os pobres bandidos cujos rastros cruzaram o seu. Ele os atraiu, os absorveu, os tragou. Impôs, por sua própria abordagem, aos pequenos ladrões, aos pequenos chantagistas, um papel em que o horror passou do limite.

Mal tocaram a mão de Weidmann… Ei-los acorrentados ao crime. Mais nenhuma ajuda esperando da sociedade; nenhum socorro humano. Um mestre os mantém, que não tem mais nada a perder. E sua obediência, mesmo aos seus piores desígnios, não os põe ao abrigo de seus socos. Sua submissão não os absolve do crime de saber, do delito de ter visto… O mestre tem interesse em abatê-los e eles sabem disso.

Resta-lhes fugir. Mas seu destino está para sempre preso ao seu. Assim que tiverem Weidmann, os terão apanhado também. A polícia não tinha que se preocupar: bastava puxar a corda.

Exemplo inútil: as grandes cidades, ainda esta noite, serão povoadas de cumplices e de vítimas. Como se a história de Weidmann não preenchesse as colunas de todos os jornais do mundo, maus rapazes receberão horríveis palavras; as mulheres jovens e belas seguirão um estranho, subirão com ele em um automóvel, o coração tão leviano que poderia ser o de Joan de Koven[3], a pequena dançarina… Não, nenhum exemplo serve, nenhuma ajuda vem de fora. A graça perdida é o escudo rejeitado, é a armadura[4] que não nos protege mais. O pecado, um determinado pecado, sobretudo, aniquila o instinto de conservação, apressa a pobre carne a cair na armadilha. Que o crime possa ter um rosto jovem e belo, um olhar terno, de mãos carinhosas, as vítimas de Weidmann talvez tivesses visto; eles tinham esquecido: não é amor que é cego, mas o desejo. O pecado nos cega.

 

Complices et victimes

Par François Mauriac.

 

Un Weidmann qui met l’absolu dans le mal et n’assigne plus de limite au crime bénéficie d’un pouvoir presque surnaturel sur les gredins médiocres dont la piste coupe la sienne. Il les attire, les absorbe, les engloutit. Il impose, par sa seule approche, à des petits voleurs, à des modestes maîtres-chanteurs, un rôle dont l’horreur les dépasse.

A peine ont-ils touché la main de Weidmann… Les voici enchaînés au crime. Plus aucune aide à attendre de la société; nul secours humain. Un maître les tient qui n’a plus rien à perdre. Et leur obéissance même à ses pires desseins ne les met pas à l’abri de ses coups. Leur soumission ne les absout pas du crime de savoir, du délit d’avoir vu… Le maître a intérêt à les abattre et ils le savent.

Il leur reste de le fuir. Mais leur destin est à jamais rivé au sien. Dès qu’on a tenu Weidmann, on les a tenus aussi. La police n’a pas eu à se déranger: il lui a suffi de tirer sur la chaîne.

Inutile exemple: les grandes villes, ce soir encore, seront peuplées de complices et de victimes. Comme si l’histoire de Weidmann ne remplissait pas les colonnes de tous les journaux du monde, de mauvais garçons recevront d’affreux mots d’ordre ; les femmes jeunes et belles suivront un inconnu, monteront avec lui dans une auto, le cœur aussi léger que pouvait l’être celui de Joan de Koven, la petite danseuse… Non, aucun exemple ne sert, aucun secours ne vient du dehors. La grâce perdue, c’est le bouclier rejeté, c’est l’armure qui ne nous défend plus . Le péché, un certain péché surtout, annihile l’instinct de conservation, précipite la pauvre chair dans le piège tendu. Que le crime puisse avoir un visage jeune et beau, un tendre regard, des mains caressantes, les victimes de Weidmann l’avaient vu peut-être; elles l’avaient oublié: ce n’est pas l’amour qui est aveugle, mais le désir. Le péché nous crève les yeux.

 

 

[1] Graduado em História (UNFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL).

[2] O artigo, acompanhado de notas que serviram de base para nosso prefácio e nossas notas, está disponíveis na internet no site Œuvre journalistique de François Mauriac 1937-1938, que disponibiliza esses textos. O texto aqui reproduzido é o do site, com a eliminação dos espaços existentes entre parte da pontuação. Disponível em: <http://mauriac.ex.ac.uk/complices_victimes_TEMPS_PRESENT_1937-12-17_p1.html>.

[3] Jovem dançarina americana que foi a primeira vítima de Weidmann, após ter sido seduzida por ele. Foi levada no dia 21 de julho de 1937 e morta por estrangulamento, no dia 26.

[4] Mauriac utiliza algumas imagens da metáfora bíblica da armadura de Deus, que está em Efésios 6:11-17:

11 Vistam toda a armadura de Deus, para poderem ficar firmes contra as ciladas do Diabo,

12 pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais.

13 Por isso, vistam toda a armadura de Deus, para que possam resistir no dia mau e permanecer inabaláveis, depois de terem feito tudo.

14 Assim, mantenham-se firmes, cingindo-se com o cinto da verdade, vestindo a couraça da justiça

15 e tendo os pés calçados com a prontidão do evangelho da paz.

16 Além disso, usem o escudo da fé, com o qual vocês poderão apagar todas as setas inflamadas do Maligno.

17 Usem o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus.