As contradições em O Rinoceronte de Eugène Ionesco – Marina Veshagem

As contradições em O Rinoceronte de Eugène Ionesco

Marina Veshagem*

 

"O Rinoceronte", de Eugène Ionesco, Théâtre de La Ville – Paris

“O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco, Théâtre de La Ville – Paris

A companhia parisiense Théâtre de la Ville apresentou nos dias 5, 6 e 7 de junho, em São Paulo, O Rinoceronte, do dramaturgo absurdista Eugène Ionesco. A primeira montagem da peça realizada pela companhia aconteceu em setembro de 2004, também com direção de Emmanuel Demarcy-Mota, e quase dez anos depois o diretor propõe uma encenação que renova e atualiza as possíveis leituras do texto.

A peça Rhinocéros (O Rinoceronte) foi escrita em 1959 e estreou em Paris no ano seguinte. Ionesco [1909 – 1994], que começou a escrever textos dramatúrgicos apenas na década de 50, viu em O Rinoceronte o nascimento de sua aceitação internacional como grande figura do teatro. Na trama, em três atos, os habitantes de uma pequena cidade do interior estão reunidos em um domingo no terraço de um café. Chegam Bérenger e seu amigo Jean, opostos em seu modo de vestirem-se e portarem-se, e, em meio à discussão dos dois e de conversas paralelas banais, a cena é invadida por um ruído estrondoso que faz o chão estremecer. São vistos um, ou dois – não se sabe ao certo -, rinocerontes que passam em disparada pelas ruas da cidade. Aos poucos são vistos mais rinocerontes. Os moradores da cidade foram contaminados por uma doença, a “rinocerontite”, que os transforma em rinocerontes e os faz até mesmo desejarem se tornar o animal.

O texto é visto por muitos como uma parábola da invasão da Europa pelo fascismo, principalmente relacionada ao sentimento de Ionesco antes de deixar a Romênia em 1938, quando seus conhecidos aderiam cada vez mais ao movimento totalitarista. “Lembrei-me de que no curso de minha vida tenho ficado muito impressionado pelo que podemos chamar de correntes de opinião, sua rápida evolução, seu poder de contágio, que é o mesmo de uma epidemia de verdade.  Repentinamente as pessoas se deixam invadir por uma nova religião, uma nova doutrina, um novo fanatismo… Em tais momentos testemunhamos uma verdadeira mutação mental. (…) temos a impressão de estarmos vendo monstros – rinocerontes, por exemplo. Ficam com essa mesma mistura de candura e ferocidade, e se tornam capazes de nos matar com a consciência tranquila”.[1] No entanto, texto e montagem apontam para diversos outros caminhos.

Na montagem do Théâtre de la Ville, antes mesmo de as cortinas se abrirem, o público conhece seu herói daquela noite, Bérenger. Com roupas amassadas, pouco alinhado e aparentemente cansado, talvez embriagado, ele discorre um texto que foi extraído do romance de Ionesco intitulado Solitaire: “Eu fui lançado ao mundo e tomava consciência como que pela primeira vez… É como se nós estivéssemos no espetáculo… Cercados pelo mundo, mas não no mundo”. Esse preâmbulo, intimista, que não fazia parte da peça de Ionesco, traz uma nova possibilidade de leitura do espetáculo, que trata da questão da liberdade, individual e coletiva, de como permanecer individual na coletividade. Para além disso, a encenação proposta pela companhia francesa sugere uma leitura da contradição percebida em Ionesco: ao mesmo tempo vemos o protesto contra a sociedade, sua perda de valores, de sua individualidade, e uma busca de um conceito poético da vida.

A solidão e a desumanização aparecem principalmente nas duas cenas de grupo. Na primeira, no café, quando é avistado o primeiro rinoceronte, inúmeras cadeiras tomam o palco vazio. Esta possível referência à peça As Cadeiras (1952), também de Ionesco, instaura uma proliferação de objetos e anuncia a transformação que vem a seguir. Os atores, ao se assustarem com a besta que corre pela cidade, deslizam de um lado a outro do palco de maneira precisa, cronometrada, como de um dançarino que calcula tempo e espaço em seu deslocamento. Neste momento o indivíduo atua em coletivo, assim como quando gritam em uníssono, quase mecanicamente, seis vezes: “Ça alors? Ça alors? ”. O trabalho coreográfico é ainda mais preciso na cena seguinte, na qual trabalhadores de um escritório discutem a notícia de que a população estaria se transformando em rinocerontes. Os atores estão agora sobre uma espécie de praticável que se dobra, o centro se abre e as extremidades se elevam gradativamente. O cenário móvel obriga os artistas a se lançarem a um balé absurdo, enquanto discutem o quanto a situação pela qual a cidade passa também é absurda.

A mistura de candura e ferocidade, citada anteriormente por Ionesco, sintetiza a característica da peça O rinoceronte de fazer coexistir elementos aparentemente opostos. Na versão apresentada em São Paulo, mais de dez anos depois da primeira estreia, tal dispositivo se torna evidente. Os rinocerontes são animais fortes, agressivos, insensíveis, que causam tremores de terra e pavor entre os humanos, mas a imagem do animal ao fim do espetáculo representa um ser dócil, que causa até mesmo empatia. São doces cabeças de rinocerontes que flutuam lentamente no fundo da cena poética e que são irregularmente iluminadas, deixando ver partes diferentes de cada face desses animais. O isolamento e a solidão de Bérenger se contrapõem ao seu desejo de pertencimento a uma comunidade, expressa em sua paixão pela jovem com quem trabalha, Daisy, desejada por todos. Ela mesma não suporta a ideia de ser diferente da maioria e acaba se conformando e se entregando à doença. “A rinocerontite não é só a doença dos totalitários tanto da direita quanto da esquerda, mas é também a força do conformismo”[2], sustenta Martin Esslin em O Teatro do Absurdo.

O diretor do Théatre de la Ville de Paris e encenador deste espetáculo, Emmanuel Demarcy-Mota, caracteriza o dramaturgo com a seguinte narrativa: “houve uma vez um homem chamado Eugène Ionesco que, levantando sua solidão como uma bandeira, transformou-a numa espécie de força secreta, nem heroica, nem tirânica. É assim como um palhaço triste no meio do picadeiro, criando desconforto nas arquibancadas ansiosas por saudar a supostamente tranquilizadora figura do palhaço alegre”. Na montagem do diretor, uma das características que fez Ionesco ser identificado como representante do Teatro do Absurdo está presente em diversos momentos da encenação. “Se há uma coisa que é absurda, são as contradições dentro do mundo. A alternância entre espanto e encantamento”, explica Demarcy-Mota em entrevista à Globo News. Há uma mistura de burlesco e trágico, o que leva a um riso perplexo; um riso que nunca toma por inteiro a plateia, mas que parece resultar do constrangimento gerado pela situação absurda e contaminar aos poucos um vizinho e, sem seguida, outros, como a própria “rinocerontite”. É o que acontece diante do discurso do Lógico, personagem que aparece na primeira cena, e que ao explicar o sentido de silogismo, exemplifica: “Todos os gatos são mortais. Sócrates é mortal. Logo, Sócrates é um gato”. A linguagem que se propõe ser lógica, civilizada e que usa de elementos do cotidiano, acaba por demonstrar seu absurdo.

A fala de Ionesco em ocasião da primeira leitura pública de O Rinoceronte, em Paris, aponta mais uma vez para a contradição. Ionesco disse que a peça foi escrita para ser representada e não lida, “se eu fosse os senhores, não teria vindo”, declara ele. A contradição aparece quando pensamos que ler e representar podem se revelar práticas significantes diferentes, porém não dependentes ou mesmo excludentes. No entanto, a encenação, como no caso desta feita por Demarcy-Mota, é capaz de produzir novos diálogos e evidenciar que não há verdade na intenção para a qual foi produzida, ela depende da leitura que faz cada espectador.

 

[1] ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968, p. 163.

[2] ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968, p. 163.

 

*Mestre em Estudos da Tradução (UFSC). Doutoranda em Estudos da Tradução (UFSC)