O teatro do absurdo de Daniil Kharms – Aurora Bernardini

O teatro do absurdo de Daniil Kharms

Aurora Bernardini*

Daniil Kharms

Muito se tem falado do russo Daniil Kharms ( 1905-1942) desde a década de 1970, quando seus escritos começaram a ficar conhecidos no ocidente e tanto mais hoje, quando ele passou a ser considerado precursor de “gigantes” como Ionesco e Beckett. De Ionesco, por suas obras da primeira fase, de um absurdo paradoxal e hilariante que sugerem o de “ A cantora careca”; de Beckett, pelo riso estridente e vazio de sua segunda fase, e finalmente de Antonin Artaud e de Fernando Arrabal, pela crueldade explícita de seus textos. Filho muito cuidado de pais amorosos, apesar de idosos, sua infância esteve a cavalo entre o czarismo e o comunismo: do renomado Ginásio Alemão de Peterschule, em São Petersburgo, onde ele nasceu, ( a mãe era de ascendência nobre) à escola comunal soviética, e mais tarde,  do Instituto Eletrotécnico de São Petersburgo,  ao exílio em Kursk em 1931(graças à intervenção do pai reduzido a menos de um ano),  da volta a Leningrado à detenção em 1941, à prisão e à morte ( dizem, de fome) em 1942, no Hospital Psiquiátrico de Leningrado.
Até o exílio em 1931,desterrado junto com um colega por suas obras  literárias infantis “antissoviéticas” ele manteve sua alegria de viver , imprimindo  seja em poesia, seja em prosa,  um tom tão  hílare que fazia com que o leitor lesse quanto escrevia com um sorriso nos lábios e as crianças o idolatrassem.

Bem preparado, criativo , muito lido pelas crianças que adoravam seus poemas e suas mágicas ( os livros para crianças foram seu ganha-pão até sua prisão), fundador da OBERIU – Associação para uma arte real, para a cuja abertura escreveu a famosa peça Elizaveta Bam, amigo do pintor Kazimir Malévitch  que gostava dele e que cedeu-lhe (e a seus colegas da seção literária e teatral da OBERIU) um espaço em sua Escola de Pintura ( enquanto durou), amigo do filósofo Jákov Drúskin , admirador de Púchkin, Gogol e Khlébnikov,  estudioso de ocultismo e numerologia, leitor voraz e … escritor de diários completamente sinceros, ( salvos pelo amigo Drúskin que os tirou de sua casa logo após a detenção) e graças aos quais conhecemos hoje grande parte de seus escritos.
Porém, a partir de 1931 passou a se dedicar quase que só à prosa. Mas uma prosa toda especial, tão sintética e essencial como sua poesia  e como as muitas pequenas peças das quais apresentaremos alguns exemplos.Antes , porém, falaremos um pouco sua poética ligada,  direta ou indiretamente, à dramaturgia.
Tal como propôs  Malévitch com o suprematismo  na pintura ( rechaço do aspecto relativo e convencional do objeto e valor maior atribuído à sua “ posição” do que à sua essência), Kharms – na literatura – sabia que retirando uma palavra de sua distribuição normativa e introduzindo-a num contexto não convencional provocaria um choque de significado e diferentes semantizações das palavras que, como os objetos sem contornos definidos se espalham no macrocosmo, voam e ressoam, vivem livres a sua realidade. P

Entre parênteses, a realidade que interessava a Kharms já era, de partida, insólita: Vejam-se  umas poucas   passagens de seu diário para se ter uma idéia:

“A única coisa que me interessa é o “nonsense”: apenas aquilo que não tem sentido prático. A vida só me interessa em suas manifestações absurdas. Heroísmo, pathos, ousadia, ética, higiene, moralidade, ternura e fervor são para mim odiosos, como palavras e como sentimentos. Entretanto eu compreendo perfeitamente e respeito: êxtase e exultância,inspiração e desespero, paixão e obsessão, devassidão e castidade, tristeza e pena, riso e alegria”.
(31 de outubro de 1937)

O QUE [ MAIS] ME INTERESSA [ Facultativo]

Poemas.
Juntar pensamentos em poemas.
Tirar pensamentos dos poemas.
Novamente, juntar pensamentos nos poemas.
Prosa.
Iluminação, inspiração, clarificação, transformação.
Caminhos de obtenção das coisas.
Descobrir seu próprio sistema de obtenção.
Vários tipos de conhecimento desconhecidos à ciência.
AS leis gerais de vários fenômenos.
Zero e nada.
Números.
Signos.
Cartas.
Escrita manual
Tudo o que não tem sentido lógico e o que é absurdo.
Tudo o que faz rir.
Bobagens.
Humor.
Pensadores naturais.
Presságios.
Superstições idiossincráticas.
Milagres.
Prestigiditação, mas sem aparatos.
Relações humanas privadas.
Bom ton.
Rostos humanos.
Beleza feminina.
Fisiologia sexual da mulher.
Cheiros.
Liquidação do enfado.
Lavar, banhar. O banho.
Limpeza a sujeira.
Comida.
Preparo de certos pratos.
Servir comida à mesa.
Fumar cigarro e cachimbo.
Decoração de interiores.
Roupas masculinas e femininas.
Saber o que interessa às pessoas.
O que fazem as pessoas quando sozinhas.
Sono e sonhos.
Cadernos de anotações.
Escrever no papel, a lápis, a tinta.
Anotar fatos do dia.
Cachorros de pelo curto.
Mulheres, mas só do meu tipo.
Formigueiros.
Bengalas.
Água.
Rodas.
Meteorologia.
Velhas damas.
Fases da lua.
Meteorologia.
Relógios.
Passear por Petersburgo.
Andar na praia. Passear sozinho.
A companhia de gente refinada.

( 17 de julho de 1937)

Quase no fim do mesmo ano, ele anota:
Aqui estão meus escritores favoritos:
1.Gógol
2. Prutkóv
3.Meyrink
4.Hamsun
5.Edward Lear
6. Louis Carroll

(14 de novembro de 1937)

Sabendo-se, de suas leituras passadas, de quanto havia gostado  também de Swift e da comédia Greco-latina, faremos agora uma rápida incursão em

 O nonsense de Kharms

A partir de seus diários, e – principalmente de suas obras –  pode se deduzir uma série de procedimentos de seu nonsense, alguns dos quais terão, obviamente, eco nos humoristas  por ele amados e de outros dos quais ele será o precursor. A título didático, aqui vão algumas características que conseguimos levantar: 

Relação das características do nonsense de Daniil Kharms
1. Sua poética gira em volta do problema da relação entre mundo e conhecimento.
2. Tensão para o absurdo como resultado de indagação sobre o conhecimento.
Definição do absurdo de Kharms: um procedimento cognoscitivo (poético-gnoseológico) da vida, que se realiza na literatura e tem como resultado a representação da substância da existência. Ele pode realizar uma paródia gnoseológica
3. Poesia como estilização do diálogo filosófico
4. Fragmentariedade da estrutura e contaminação dos gêneros: em Elizaveta Bam, colagem de gêneros; fim da visão unitária do mundo.
5. Impasse: mundo sem sentido e violento e  aspiração a uma fé salvadora.
6. Ausência de emocionalidade. Humor negro. Ausência de narrador. Riso gogoliano. Dimensão onírica.
7. Serialidade. Repetição. Gesto mecânico, afasia, redução da comunicação. Diálogo enquanto estrutura vazia. Absurdo tautológico que exprime apenas a si próprio.
8. Valor encantatório da repetição e dos sons.
 9. Concentração nos elementos factuais do narrado que redundam no oposto: relatos em que nada acontece.
10. Circularidade: caminho para a destruição.
11. Desenvolvimento regressivo da ação. Rebaixamento do gênero conto.
12. Estética negativa: miséria e miniaturização. Não-acontecimentos.
13. Acontecimentos extraordinários tratados como banais e vice-versa. Justaposição mecânica. Falta de motivação. 
14. Anulação/manipulação das categorias causais.
15. Embora no início lembrasse o impulso do pintor Filónov e do poeta Khlébnikov para a fragmentação e a recomposição, depois há a cisão irremediável.
16. Anulação da história.
17. Anulação estilística e narracional. Ex: fim do conto “A velha”.
18. Paródia ( Ex.de Dostoiévski e Púchkin).
19. Aproximação ao expressionismo (O Grito).
20. Cômico-trágico: Piscadela e Humour.
Evitar “ literatura “ no palco: as palavras no teatro são outras.
21. Com Dürrenmatt: Tragicómedia: forma de uma ausência de forma. Rosto de um mundo sem rosto.
22. Multiplicidade de planos.
23. Mazoquismo.
24. Indiferença perspicaz do homem absurdo.
25. Absurdo situacional.
26. Fatos tanto gratuitos como inexplicáveis: conseqüência da privação de legitimidade do principio causal.
27. Queda dos pressupostos do conhecimento lógicos do mundo.
28. Mundo como caos.
29. Insensatez.
30. Ausência de sentido como mistério e milagre: manifestação do divino no mundo.
31. Mortificação e mutilação da fantasia.
32. Miséria dostoievskiana (culpa e castigo): não há culpa nem graça: apenas castigo.
33. Crueldade das coisas: homem inerte.
34. Aspiração à fé.
35. Desesperação em Deus. 
     
Foi justamente em fins de 1937  que aconteceu o golpe mais duro. Por ter escrito um poeminha-cantiga , novamente considerado “antissoviético”,

Saiu de casa um sujeito
Com seu saco e seu bastão
E para longe
E para longe
Foi começando a andar.
 
Ele foi andando para frente
E para frente olhou.
Não dormiu, não bebeu,
Não bebeu, não dormiu,
Não dormiu, não bebeu, não comeu.
 
E eis que uma vez ao alvorecer
Ele entrou num bosque escuro.
E desde então,
E desde então,
De vez desapareceu.
 
Mas se a alguém acontecer
De por acaso o encontrar,
Então logo,
Então logo,
Venha logo nos contar.
 1937

As  editoras de livros infantis para as quais trabalhava como autor e tradutor o despediram sumariamente. Por um ano passou fome, juntamente com a mulher. A partir daí apenas sobreviveu e seus escritos passaram a refletir o cerceamento, a opressão, o medo  e o vazio que o acompanharam até a morte.

Aqui vai o último texto de seu “ caderno azul” : um caderno de textos selecionados que ele mesmo ordenara (sem data, contrariamente aos outros de seus diários) e que foi salvo na maleta guardada por seu amigo Drúskin.

Impedimento

Pronin falou:
A senhora tem umas meias bem bonitas.
Irina Mazer falou:
– Gostou de minhas meias?
Pronin falou:
– Oh, sim. Muito.
E esticou as mãos para tocá-las.
Irina falou:
– E por que gosta de minhas meias?
Pronin falou:
– São superlisas.
Irina levantou a saia e falou:
– Dá para ver como elas são compridas?
Pronin falou:
– Ooh, sim, sim.
Irina falou:
– Mas veja, aqui elas terminam. Aqui já aparece a perna nua.
-Ooh, que perna – Pronin falou.
 – Minhas pernas são grossas, – Irina falou.
– As cadeiras também, são bem grandes.
– Deixe eu ver, – Pronin falou.
– Não pode, – Irina falou, – estou sem calcinhas.
Pronin ajoelhou-se à frente dela.
Irina falou:
– Por que se ajoelha?
Pronin beijou-lhe a perna, logo acima da meia e falou:
– Eis porquê.
Irina falou:
– Por que levanta ainda mais minha saia? Não disse ao senhor que estou sem calcinhas?
Mas Pronin ia levantando a saia assim mesmo e dizendo:
– Não faz mal, não faz mal.
– Como assim, não faz mal? – Irina falou.
A essa altura alguém bateu na porta. Irina baixou a saia depressa. Pronin levantou-se e foi até a janela.
– Quem é? – Irina perguntou.
– Abram; – falou uma voz aguda.
Irina abriu a porta e no quarto entrou um sujeito de casaco preto, de botas altas e atrás dele entraram dois milicianos de grau inferior, com fuzil na mão e atrás deles o zelador. Os dois graus inferiores ficaram do lado da porta e o sujeito com o casaco preto aproximou-se de Irina Mazer e falou:
– Seu nome?
– Mazer, – Irina falou.
– Seu nome? – perguntou o sujeito com o casaco preto, dirigindo-se a Pronin.
– Me chamado Pronin, – Pronin falou.
– Vocês têm armas? – perguntou o homem com o casaco preto.
– Não, – Pronin falou.
– Sente-se aqui, – falou o homem com o casaco preto para Pronin, indicando a cadeira.
Pronin sentou-se.
– E a senhora, – falou o homem com o casaco preto, dirigindo-se a Irina, – vista seu casaco. Deve nos acompanhar.
– Por quê? – Irina falou.
O homem com o casaco preto não respondeu.
– Preciso mudar de roupa, – Irina falou.
– Não, – falou o homem com o casaco preto.
– Preciso vestir mais alguma coisa, – Irina falou.
– Não, – falou o homem com o casaco preto.
Irina vestiu sua peliça sem falar nada.
– Adeus, – falou ela a Pronin.
– As conversações são proibidas, – falou o homem com o casaco preto.
– E eu, tenho que ir também? – perguntou Pronin.
– Sim, – falou o homem com o casaco preto. – Vista-se.
Pronin levantou-se, pegou do cabide o casaco e o chapéu, vestiu-os e falou:
– Estou pronto.
– Vamos, – falou o homem com o casaco preto. Os graus inferiores e o zelador começaram a arrastar os pés no chão, fazendo barulho com as solas.
– Todos saíram para o corredor. O homem com o casaco preto trancou a chave a porta do quarto e a selou com dois selos cinza-marrom.
– Vamos, para a rua, – falou. E todos saíram do apartamento, batendo forte a porta de fora. 
       
Tradução de Aurora Bernardini

Na janela “Teatro na praia”, duas peças curtas de Kharms, como ilustração das características de seus veios criativos.
 
Referências Bibliográficas:

ANEMONE, Anthony e SCOTTO, Peter ( org. e introdução). I am a phenomenon out of the ordinary- The notebooks, diaries and letters of Daniil Kharms. Boston: Academic Studies Press, 2013. (KHARMS:2013)
CHARMS , Daniil ( org. trad. e posfácio Rosanna Giaquinta). Casi.Milão: Adelphi, 1990. ( GIAQUINTA, 1990)
  
CHARMS , Daniil ( org.  trad. e posfácio Paolo Nori). Disastri.Turim: Einaudi  2003.(NORI: 2003)
JACCARD, Jean-Philippe. Daniil Harms et la fin de l’avant-garde russe.Berna : Peter Lang, 1991.

ЖАККАР,  Ж. Ф. Даниил Хармс и конец русскрово  авангарда. São Petersburgo:  Академический проект, 1995.

ХАРМС, Даниил.  Cобрание сочинений.  В2Т.  São Petersburgo:  Зебра E, 2010.

*Tradutora, ensaísta, ecritora e professora da USP.