FÁBULA – Josely Vianna Baptista
FÁBULA
Josely Vianna Baptista
Você vê?
No alto dessa escarpa há conchas,
restos de sal nas brechas,
asteróides marinhos.
Um canto não se forja
como uma rocha incandescente
que se dobra sobre si mesma,
sem artifícios.
Uma sílaba não guarda em si
sedimentos de mares extintos.
Que águas filtra, por exemplo,
a palavra chulun?
Vê o enorme arco de pedra
que se vergou sob o peso do basalto?
Sedimentos de marés inumeráveis
estão na origem desses afloramentos
de arenitos castanho-avermelhados.
A palavra mais leve
não se pulveriza em arenitos arcaicos.
Nem se arvora em caçadora,
sempre de lança em riste
para arpoar argila
em margens férteis de formas.
Tente marcar com uma lasca
de giz, de creta, de greda – ou barro branco –
o caminho de retorno de um labirinto
que nunca para de mudar seu traçado.
Não vê o roteiro dos rios
correndo para o oeste?
O sol sombrio arborescendo avessos
no burburinho dos arroios?
Por acaso a palavra llaillai
guarda o murmúrio dos rios em treliça
que correm em desfiladeiros, sobre lajeados?
Vê esses relevos onde afloram
escarpas e veios pétreos?
Grão por grão, de areia,
pólen, poeira ou matéria fóssil,
surgiram sobre deltas criados
pelo acervo de muitos rios entrelaçados.
Ouve o vento nas fendas,
entre as falhas da furna?
O vento não fala nenhuma língua.
Sol crestado. Chuva árida.
Cürëv.Solo ríspido.
Faz sua ronda, obscuro,
entre fronde e fronde, muro e rochedo,
como um eco que tentasse
corroer o silêncio.
E a rajada que espalha sementes
e faz dançar as bagas,
as favas de cores quase mudas
antes da chuva?
As letras que o acaso reúne
em suas fieiras não significam nada
para si mesmas; nem ao menos se vêem
como enigmas, em sua cegueira.
E esses frutos com pigmentos
azuis, vermelhos,violetas,
e essas flores que oscilam
de um fulvo turvo a um ouro velho,
aglomeradas em torno de seu caule?
Pequenos globos prudentes, chod,
sem a beleza instável dos pecíolos
nem hastes leves que sob o temporal
as lancem à dança.
Sem pétalas lancinantes,
sem lances de alegria.
Como descrever o veludo dessa flor
– desse novelo feito de minúsculos velos
em tons de seco que é essa flor?
Traços, sílabas, sons são reféns
e órfãos de coisas não-nomeadas.
Que língua pode abrigar um broto
em seu instante de surto,
e significá-lo?
Sob o Sol o rio ascende em nuvem,
que descende em chuva,
que mergulha na Terra
(em suas grutas fundas)
e depois sobe em neblina,
propícia para semeaduras.
Percebe essa pressa dispersa na relva?
O cheiro de onça na aragem,
na brisa e até na ventania?
O cinza esparso nas asas do sanhaço?
Vozes e línguas não se juntam em roda
para uma dança rupestre
inscrita na sombra de uma lapa.
Pedra polida, pedra lascada – pedra.
Antes de ser cerâmica
a argila não se imagina corrugada,
nem urna funerária.
De que lugar você fala?
Sob esse solo raso e arenoso
hibernam bulbos,
sob esse charco podre
se emaranham gemas de rizomas,
lugares onde tudo pode ser um começo,
frutos de futuros.
Da fumaça da fogueira,
dos papéis de casca de figueira
onde arde o sangue da língua ferida
por uma corda farpada
poreja em espirais
a visão de tudo o que inspira
e do que não se pode ver.
Vejo os vestígios
de um guará que se esgueira entre touceiras,
suas pegadas recentes
sobre o magma antigo.
Um ar alvoroçado roçou a pelagem do jaguar.
Rimas são como armadilhas
primitivas. Escamas de granizo,
simetria de prismas pobres,
sem nitidez, bordas borradas
– apenas desenhos de devaneios,
rios de delírios, ritos vazios.
A pedra, a água, o vento,
tudo tem seu espírito.
O tempo mudou de lugar?
Vejo na borda do itaimbé o ninho embaraçado
de um andorinhão-de-coleira.
E na várzea o refúgio vulnerável do inhambu
– as penas de seu dorso
de um cinza-oliváceo quase andaluz.
Como a memória.
Do alto da cordilheira andina
onde vivem os pewenche, o povo da araucária,
migra a águia-chilena
para fazer aqui sua invernada,
nas relíquias vegetais desses campos,
entre os pinheiros-do-paraná.
Não vê o poente que cobre de cores
aquela ave com penas rajadas
de vermelho e preto,
ou aquela com penas de um verde- bronze
profundo, suas pernas anegradas
e o dorso estriado de branco?
Certos pássaros têm penas
que se alteram conforme a cor
da terra de que se impregnam.
Sinto o rumor nas fraturas da rocha,
o lençol de organza sanguínea
sob as pálpebras cerradas.
No alto dessa escarpa há conchas,
restos de sal nas brechas,
asteróides marinhos.
Rios e abismos não demarcam fronteiras.
São caminhos.
No céu as constelações se movem como águias,
onças-pintadas, pássaros nômades.
Nada está fora do lugar.
Você vê?