Duas ou três coisas que eu sei dela (pequeno oratório lírico-dramático – Cláudio Cruz

Florianópolis, 28 de agosto de 2011

DUAS OU TRÊS COISAS QUE EU SEI DELA

pequeno oratório lírico-dramático

Por Cláudio Cruz *

Quando a luz do palco abre, ele e ela já estão em cena, frente a frente.

ELE

Eu te amo.

ELA

Não entendo.

ELE

Eu te amo.

ELA

Não entendo.

ELE

Estou dizendo que te amo.

ELA

(Fica em silêncio. Depois faz um pequeno movimento com a cabeça.)

ELE

Estou dizendo que.

ELA

( Passa a mão no cabelo e o olha.)

ELE

(Aproxima-se e a beija.)

Corte.

Música: Bach, allegro. Ruídos de construção. Escutam-se falas, todas em off.

JULES

Eu gosto dela ao crepúsculo.

JIM

Eu gosto dela na aurora.

JULES

Eu gosto dela no centro.

JIM

Eu gosto dela na periferia.

JULES

Eu gosto dela quando se esconde.

JIM

Eu gosto dela quando me encontro.

Corte.

Continua música e ruídos de construção.

Entra engenheiro e mestre-de-obra, que carrega algumas plantas, enroladas. Os dois usam capacetes protetores e estão no alto de um edifício em obras.

ENGENHEIRO

(Gesto com o braço) Toda esta parte deve ficar à vista. Quando os olhos dela quiserem ver bastará abri-los.
MESTRE-DE OBRAS

À tarde?

ENGENHEIRO

E à noite, e manhã e sempre.

Corte.

Eles saem de cena.

Desaparece os ruídos de construção.

Continua apenas a música.

Ela entra e fica de costas para o público, no centro do palco. Escutam-se vozes gravadas.

VOZ UM

Eu gosto dela de costas.

VOZ DOIS

Eu gosto dela de lado.

Ela vira e fica de lado.

VOZ UM

Eu gosto dela de frente.

Ela vira e fica de frente.

VOZ DOIS

Eu gosto dela quando estou dentro dela.

Luz cresce nela.

VOZ TRÊS

O que mais você gosta?

ELA

O que eu mais gosto é de ser visitada?

VOZ TRÊS

Como?

ELA

O que eu gosto mais é de ser visitada.

VOZ TRÊS

Quando?

ELA

Mais por fora (se  abraça) do que por dentro.

Corte.

Sai música. Ruído de metrô em movimento. Homem e mulher sentados frente a frente.

Estão de perfil para o público e conversam enquanto o metrô avança.

HOMEM

O que você mais gosta?

MULHER

Que ele me enxergue.

HOMEM

O que você espera?

MULHER

Que ele me enxergue.

HOMEM

O que você deseja?

MULHER

Que ele me enxergue.

Luz em penumbra. Continuam no metrô. Aparece apenas a silhueta dos dois.

Regularmente passam fachos de luz por eles. Seus corpos balançam levemente. Escutam-se vozes em off.

JULES

Ela prá mim é um pouco paulistana.

JIM

Ela prá mim é um pouco portenha.

JULES

Mas eu gosto dela assim, pequena.

JIM

Mas eu gosto dela assim pequena.

O metrô chega na estação.

HOMEM

Quando posso falar com você?

MULHER

Sempre.
HOMEM

Onde?

MULHER

Quando.
Saem de cena homem e mulher. Ruído do metrô deixando a estação. Depois que ele se distancia entram em cena Jules e Jim. Atravessam o palco caminhando normalmente.

Enquanto isso comem uma maçã. Dizem as suas falas com ar filosófico, sempre olhando para a maçã e passando-a de um para outro.

JULES

Eu quero comer a maçã.

JIM

A maçã quer ser comida por mim.

JULES

Não. Eu quero comer a maçã.

JIM

Não. A maçã quer ser comida por mim.

JULES

Não. Eu quero comer a maçã.

JIM

Não. A maçã quer ser comida por mim.

Vão saindo de cena, repetindo as falas. A seguir o palco fica numa semi-penumbra.

Ao fundo duas mulheres nuas sentadas sobre um lençol branco:
uma de frente para a outra e de perfil para o público.
Comem uma maçã, em silêncio.
Acariciam-se.
Uma delas levanta e abre uma janela.
Ruído forte vindo da rua.
Elas reagem com desprazer.
Ela torna a fechar a janela.
Assim que o ruído cessa olham-se, satisfeitas, sorriem.
Voltam à posição inicial e, depois de um tempo, se beijam. Escutam-se vozes em off.

JULES

Eu quero comer a maçã.

JIM

Não. A maçã quer ser comida por mim.

JULES

Eu quero comer a maçã.

JIM

Não. A maçã quer ser comida por mim.

JULES

Eu quero comer a maçã.

JIM

Não. A maçã quer ser comida por mim.

Enquanto eles ficam repetindo as falas a luz vai baixando nelas e subindo num canto oposto do palco. Jules e Jim jogam xadrez. Refletem muito antes de cada jogada. Sofrem por cada movimento de peça. Suam.

JULES

A gente nasce dentro dela.(Faz uma jogada).

JIM

Mas só começamos a conhecê-la quando nos separamos dela. (Joga).

Ruído forte de avião decolando.

JULES

Em quem você está pensando agora?

JIM

Nela. E você? Em quem está pensando agora?

JULES

Nela.

Tempo.

JIM

Quem de nós ela prefere?

JULES

Ela.

Ruído de avião aterrisando.

JULES

Quem a criou? (Joga ).

JIM

Um deus. (Joga ).

JULES

Uma mulher. (Joga ).

Ela entra com uma valise em uma das mãos e um casaco na outra. Dirige-se para a mesa e senta-se em uma terceira cadeira, entre os dois. Eles não a vêem. Ela acende um cigarro, dá uma baforada, para cima, e passa a observá-los. Com um sorriso nos lábios.

JIM

Você sabe quando ela chega?

JULES

Não.

JIM

E se ela já chegou?

JULES

Ela nunca saiu.

JIM

Como?

JULES

Ela nunca saiu de todo, eu quero dizer. (Joga). Xeque mate.

Ela senta-se entre os dois, acompanhando o movimento do rei, mantendo ainda o mesmo sorriso de quando entrou. Black-out súbito.

* Escritor, professor e pesquisador. Tem textos publicados no país e no exterior (Estados Unidos, Argentina, Holanda, França, Venezuela, Paraguai, Chile). Atualmente é Coordenador do Núcleo de Estudos de Literatura Oral e Outras Linguagens (NELOOL) da UFSC. Publicou, entre outros livros, “Marcos IV,23” (Porto Alegre:Instituto Estadual do Livro, 1988) – adaptação de um conto de Jorge Luis Borges, “Literatura e Cidade Moderna” (Porto Alegre:Editora da PUCRS, 1994) e o romance “Arrabaleros” (Porto Alegre:Instituto Estadual do livro, 2006). Em 2000 adaptou para o palco o romance “Os Ratos”, de Dyonélio Machado, com temporadas no Teatro Gláucio Gil (Rio de Janeiro) e Teatro do Sesi (Porto Alegre). Em 2010 publicou “Poesia herege” (Florianópolis:Editora da UFSC, 2010) – poemas traduzidos de Evaristo Carriego. Prepara para 2012 uma edição comemorativa ao centenário de publicação de “Contos Gauchescos” (João Simões Lopes Neto) para a Editora da UFSC.