A CRIATURA QUE NADAVA EM CÍRCULOS – Péricles Prade

A CRIATURA QUE NADAVA EM CÍRCULOS

Péricles Prade

 

 

Meus pais, quando eu tinha sete anos, levaram-me a um parque de diversões. Puxado por ambos, fui conduzido aos brinquedos escolhidos por eles. Até hoje não sei o motivo de agirem desse modo. Seria muito mais simples se me consultassem. Diria, simplesmente, que não agradavam.

 

Naquela época estava mais interessado nos movimentos da multidão que se acotovelava perto da piscina central. Por isso, desvencilhando-me de suas mãos, corri até o local. Ao chegar, soletrei a placa em que, com letras enormes, constavam estas palavras: ÚLTIMA VIAGEM DO HOMEM-PEIXE.

 

Passei por baixo de três pernas abertas e acompanhei, com os olhos atentos, as braçadas rítmicas e ligeiras de alguém que, nadando em círculos, para mim não era um peixe. Assim concluí porque não vi escamas, cauda e tampouco parecia qualquer hóspede do mar.

 

Fiquei frustrado.

 

Quando completei vinte anos recebi de mamãe, no dia do aniversário, além do presente, uma revista esportiva com a foto dele na capa.

 

— Lembra do parque de diversões?

 

— Lembro.

 

— Acho que as informações podem ser úteis.

 

Cortei a conversa.

 

Após a leitura, mudei por completo o sentimento e a visão sobre a criatura que nadava em círculos.

 

Peço permissão para reproduzir os tópicos principais da reportagem, valendo-me de síntese que mais se aproxima de seu conteúdo:

 

Pelo menos em parte, podia considerar-se peixe. Filho de domador de golfinhos e baleias, na Praia do Rosa, teve, ao nascer, de ser jogado dentro de um aquário, apropriado ao seu tamanho, pois abaixo do pescoço guelras salientes se mexiam.

 

Sofria muito, sempre que o retiravam do recipiente, respirando com dificuldade.

 

No aquário ficou durante dois anos e cinco meses. Rejeitava carnes. Comia folhas de inhame e minhocas selecionadas, excelentes iguarias para degustar vinho tinto ou cerveja gelada.

 

Mudou de ambiente. Com ajuda financeira de vizinhos piedosos foi construído, em casa, novo e maior poço artesiano para o seu melhor conforto.

 

Acontece que, considerado fenômeno, curiosos chegavam a todo instante, vindo de lugares próximos e remotos, perturbando-o. Não se limitavam a olhar. Jogavam frutas, guloseimas, e restos de comida, causando-lhe repulsa.

 

Numa tarde de setembro, a situação piorou. Havia gente até nos telhados, espionando-o. Riam alto, às gargalhadas, quando, constrangido, defecava ao fazer a curva para reiniciar o movimento circular.

 

Não mais suportando a humilhação, gritou:

 

—  Chega!

 

Perplexidade geral. Falava, e ninguém sabia, a não ser o seu criador, que há tempo guardava o segredo por compaixão.

 

Envergonhados, todos abandonaram os telhados, os muros e o entorno do poço.

 

Revelado o segredo, o pai do homem-peixe, sentindo a oportunidade de ganhar dinheiro, resolveu procurar, com urgência, os donos de circos na região. Pensou: se o filho é um espetáculo, onde mora, será ainda mais aplaudido noutros sítios.

 

Recusaram a oferta de trabalho. Deram mil desculpas, deixando-o amargurado. Compadecido, um amigo recente sugeriu:

 

— Fale com Don Francisco Socorro. Ele dará um jeito.

 

Solícito, o recomendado arrumou emprego num Parque de Diversões, cujo proprietário é exímio tocador de flauta doce. O homem-peixe, envelhecido, ainda lá se encontra, habitando a piscina. 

 

Dobrei a revista, colocando-a na pasta com extremo cuidado. Engoli o café da manhã e fui à pé à Universidade de Melbourne, onde frequentava a Faculdade de Biologia Marinha.

 

Terminei o curso neste ano e retornei à cidade natal com ideia fixa: estudar a origem, a natureza e os costumes do híbrido ser que continua me encantando.

 

Procurei-o na segunda-feira, certo de que nesse dia é mínimo o número de visitantes.

 

Para agradá-lo, imitei suas braçadas. Parei, cansado e ofegante, assim que o meu relógio marcou duas horas de exercício contínuo.

 

Simpatizou-se comigo, tenho certeza. Sorrindo, disse estar disposto a dar a entrevista.

 

— Entrevista?

 

— É o que pretende.

 

— Pretendo?

 

— Leio pensamentos. Quer saber por que não nado na vertical, horizontal ou perpendicular.

 

— Telepatia?

 

— Isso é coisa do passado.

 

— Coisa do passado?

 

— Sim. Possuo dom muito maior, o de substituir o seu cérebro pelo meu.

 

—  Troca de cérebros?

 

— Troca de cérebros.

 

— Acertou.

 

— Acerto sempre.

 

— “Meu deus, o que houve?

 

Encontro-me n´água. Vejo um jovem perto da saída do Parque, eufórico, abanando com as duas mãos. Imagino estar em frente de um grande espelho. Logo percebo que o corpo é meu.

 

O homem-peixe me enganou. Encarcerado, aqui estou à espera da última viagem, aquela que não se realizou na infância.