Grande Sertão: A adaptação Cinematográfica da obra de João Guimarães Rosa – Diogo Berns

GRANDE SERTÃO: A adaptação Cinematográfica da obra de João Guimarães Rosa

 

Diogo Berns[1]

As adaptações cinematográficas estão presentes em nossa sociedade, possibilitando que diversas narrativas de outros meios de comunicação possam ser contadas através da imagem, som e outros recursos que o cinema possui para conduzir o enredo ao público. Elas são a força vital do cinema e da televisão (SEGER, 2007, p. 11), sendo uma estratégia que, em muitos casos, oferece um expressivo retorno financeiro às produtoras, especialmente aos estúdios de Hollywood, que costumam investir milhões de dólares em um único filme. As adaptações são definidas como traduções intersemióticas, em que se interpreta uma narrativa, fato ou qualquer outro evento de um signo verbal por meio de um signo não-verbal, como uma obra literária contada pelo cinema (JAKOBSON, 1969, p. 65). Para que isso seja possível, realiza-se uma passagem da narrativa de um signo para outro em que diversas mudanças são realizadas devido às diferenças na forma utilizada pelos signos para contar a narrativa ao público.

No Brasil, as adaptações cinematográficas também são produzidas com frequência. O romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956, é um exemplo de uma obra literária que foi adaptada para o cinema. Ela é uma das obras mais importantes e influentes da literatura do país, que consagrou o autor como um dos maiores escritores brasileiros, ocupando lugar de destaque com Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Nelson Rodrigues, Ferreira Gullar e Lêdo Ivo, os chamados “Geração de 45” (ALMEIDA e MARUCCI, 2013, p. 18). Esses autores buscavam por meio da escrita uma nova expressão literária, utilizando experimentações e inovações estéticas, temáticas e linguísticas. A escrita do romance de João Guimarães Rosa, por exemplo, apresenta diversos neologismos ao longo das seiscentas páginas, o que faz com que, em certos momentos, o leitor tenha dificuldade em compreender trechos da narrativa. No entanto, é essa característica que faz com que o enredo seja aclamado pela crítica em razão da construção utilizada pelo autor na composição das palavras e frases. É esse estilo que faz Grande Sertão: Veredas ser uma narrativa densa de sentidos que instiga a imaginação do leitor, que faz com que ele tenha de refletir acerca da construção das frases e de toda a composição que o autor utilizou na escrita da obra.

Grande Sertão: Veredas foi adaptada para o cinema pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira em 1965, nove anos após a publicação do livro. O filme, sonoro e em preto e branco, é pouco conhecido pelo público e pela crítica. Nessa adaptação, é possível ver que os diretores, e também roteiristas, recriaram a obra com significativas mudanças na narrativa através de alguns recursos cinematográficos. O desvio de atenção do enfoque principal da obra –  o relacionamento dos jagunços Riobaldo e Reinaldo que na verdade é uma mulher chamada Diadorim que se passa por homem –  efetivou-se, entre outras coisas, devido à rigidez da censura na época (HARDT, 2015, p. 36). Constata-se também que foram utilizados diversos trechos do livro de João Guimarães Rosa na obra cinematográfica, narrados por Riobaldo, com a intenção de descrever ao público o Sertão sem necessitar mostrar todos os detalhes.

 

1. A OBRA LITERÁRIA GRANDE SERTÃO:VEREDAS

A obra literária de João Guimarães Rosa apresenta o relato do personagem Riobaldo acerca da juventude que passou no Sertão mineiro, um ambiente em que ocorrem disputas por poder entre coronéis e jagunços. O personagem narra como conheceu Reinaldo e o forte sentimento que teve por ele durante muito tempo até a morte e revelação da identidade que o último ocultara ao longo da vida. Os conflitos que enfrentou quando era um dos jagunços de Joca Ramiro, o contato com Zé Bebelo, a relação com Otacília, os prazeres com Nhorinhá, o fascínio e o medo do Sertão são mencionados por Riobaldo que não identifica a quem está contanto a própria história.

A narrativa é apresentada de forma não linear evidenciando a paixão proibida entre ele e o personagem Reinaldo, que se chama Diadorim e esconde a verdadeira identidade das pessoas. Diadorim, filha de Joca Ramiro, líder dos jagunços, se passa por homem para auxiliar o pai nos negócios. Além disso, na trama, observa-se a religiosidade do povo do Sertão, os costumes, o modo de falar e de agir perante os conflitos ocorridos na região no início do século XX. Através desses detalhes, João Guimarães Rosa expôs características daquele ambiente e dos desafios cotidianos daquele povo.

A narrativa foi escrita com diversos neologismos que chamam a atenção do leitor e torna o enredo instigante. Essa linguagem utilizada por João Guimarães Rosa possibilita diversas interpretações e até mesmo questionamentos acerca do que está sendo contado, pois, muitas vezes, as frases ficam obscuras, sem o leitor conseguir entender o significado delas.

No romance épico Grande Sertão: veredas, considerado obra-prima de Guimarães Rosa, um dos destaques é a linguagem, composta hibridamente pelas formas prosaica e poética, atribuindo ao autor – e ao romance – uma originalidade singular. A prosa poética rosiana, como ficou conhecida, rompe com as estruturas narrativas clássicas lineares. Segundo G. Rosa, para expressar o que se concentra na alma de suas personagens um léxico só não é suficiente. Incapaz de expressar seus mais íntimos sentimentos e pensamentos, a narrativa prosaica adquire, na maestria das mãos de Guimarães Rosa, traços estilísticos da composição poética, exaustiva, sedutora e evasiva, longe da linguagem comum a que ele afirma que estamos limitados. Assim as palavras adquirem caráter ambíguo e se enchem de significações, possibilitando-nos várias leituras (BIAGGI, 2007, p. 14 – 15).

Esse estilo de escrita de Guimarães Rosa acrescentou à trama a sonoridade, a beleza, a poesia das palavras, instigando o leitor a se aprofundar na obra e a envolver-se na narrativa. A densidade de sentidos torna-se notável conforme à leitura de Grande Sertão: Veredas. As expressões enigmáticas vão despontando ao longo do enredo, gerando, por vezes, desconforto e indagação acerca da obscuridade desses termos na obra. No entanto, o percurso de Riobaldo pelo Sertão, bem como os conflitos entre os jagunços, a culpa pelo sentimento que tem por Reinaldo convidam o leitor a adentrar na narrativa e acompanhar a trajetória do personagem ao longo das seiscentas páginas.

 

2. A VERSÃO CINEMATOGRÁFICA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

 

Figura 1 – Riobaldo e Reinaldo (Diadorim) em Grande Sertão

Fonte: http://www.devotudoaocinema.com.br/2013/08/tesouros-da-setima-arte-grande-sertao.html

 

Para adaptar a obra literária Grande Sertão: Veredas, os diretores e roteiristas Geraldo e Renato Santos Pereira necessitaram analisar a estrutura da obra literária escrita por João Guimarães Rosa para encontrar possibilidades de apresentar a narrativa ao público do cinema através das ferramentas que o meio cinematográfico oferecia na época. Foi preciso repensar, por exemplo, a quantidade de locais em que a trama se passa, afinal, uma obra de seiscentas páginas e de conteúdo tão complexo não poderia ser transposta com a mesma estrutura narrativa, quantidade de personagens e fatos que são evidenciados na trama.

Saber quem produziu o filme a ser analisado, em qual época foi produzido e quais os profissionais envolvidos no trabalho auxilia no entendimento de algumas modificações ocorridas no processo de adaptação da obra literária para o cinema. Com esses dados, pode-se começar a entender algumas das escolhas narrativas e estéticas que foram realizadas na composição fílmica. Apesar das possibilidades e limitações técnicas, um dos fatores responsáveis por algumas mudanças na narrativa da obra cinematográfica em questão foi o fato de o filme ter sido produzido pela companhia Vera Cruz:

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz surgiu em 1949 por iniciativa de Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho […] A ideia na qual se pautava a Vera Cruz era de realizar […] obras que em nada ficassem devendo aos padrões internacionais de qualidade e, para tanto, optou por se vincular a distribuidoras internacionais com o objetivo de conquista de mercado externo […] O modelo de cinema industrial que veio a ser adotado pela Vera Cruz era o de Star System: altos salários, materiais de trabalho à vontade […] equipamentos de ponta, enfim, produção de alto custo a se atingir os objetivos de reconhecimentos internacionais. Os valores médios gastos pela companhia na produção de um filme ficavam por volta de dez vezes maior ao que era gasto pela Atlântida na realização das chanchadas, porém os mesmos gastos eram cerca de dez vezes menor que o custo médio de realização de um filme por Hollywood. (SOUZA, 2013, p. 2 – 4)

O sistema ambicioso da Vera Cruz era um dos responsáveis pela estética das obras fílmicas – desde a elaboração dos cenários, bem como gravações em lugares longínquos que exigia diversos profissionais e aparatos técnicos para as cenas; presença de atores consagrados pelo público e pela crítica no elenco; figurinos e objetos de cena que pudessem impressionar a audiência. Desse modo, é possível afirmar que, devido ao fato de Grande Sertão ter a Companhia Vera Cruz como uma das produtoras que o idealizou, a estética estadunidense foi utilizada para que atraísse espectadores às salas do cinema e, consequentemente, obtivesse retorno financeiro para pagar o orçamento e gerar lucros ao estúdio. Essa companhia teve grande importância na cinematografia da época em razão das obras que produziu, da estética hollywoodiana que implementou nas produções e de alguns prêmios internacionais que recebeu.

O longa-metragem Grande Sertão, de 1965, foi realizado, de acordo com os créditos iniciais do filme, com a colaboração financeira do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, CAIC/ Banco do Estado da Guanabara e Banco de Crédito Mercantil S.A. Teve o auxílio da Polícia Militar de Minas Gerais; do Exército Brasileiro; Centrais Elétricas de Minas Gerais; Comissão do Vale do São Francisco; Força Aérea Brasileira; Sr. Mário Garcia Roza; Expresso São Cristóvão; Prefeitura de Patos de Minas; Prefeitura de Lagoa Formosa; Instituto Nacional de Cinema Educativo e do Governador Magalhães Pinto. Todo esse apoio demonstra a grandiosa produção que o longa-metragem teve para ser realizado. Afinal, todos os atores e equipe técnica se deslocaram ao Sertão mineiro para gravar o filme.

Outro fator que contribuiu na estética da adaptação dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira foi o Ciclo do Cangaço. A figura do cangaceiro esteve presente nas produções cinematográficas brasileiras ao longo do tempo. Especula-se que a primeira aparição de um cangaceiro nas telas de cinema ocorreu em junho de 1917, no Theatro Moderno, em Recife (VIEIRA, 2007, p. 30).  Esse fato nos faz refletir acerca da recorrência dessa figura nas obras fílmicas realizadas no Brasil, bem como a empatia que o público tinha por esses personagens. A figura do cangaceiro foi tantas vezes representada que é possível constatar que, de certa forma, os espectadores ansiavam por assistir filmes que apresentavam esse personagem e possuíam recorrência por essa temática.

Sobre o ciclo do cangaço pode-se afirmar o seguinte:

O cangaço foi retratado no cinema brasileiro em várias épocas e de diversas formas. Desde a década de 20 a temática fascina cineastas e espectadores. Até o momento, há cerca de 50 filmes sobre o assunto, entre curtas, médias e longas-metragens, documentários e ficções. O gênero se consolida com O Cangaceiro, dirigido por Lima Barreto em 1953. A partir deste filme o gênero cangaço adquire forma (VIEIRA, 2007, p. 17 – 18)

As produções com essas temáticas passaram a ser conhecidas como nordestern devido à semelhança com o gênero faroeste produzido por Hollywood. Tratava-se de mais um artifício das companhias produtoras para chamar a atenção do público e criar as narrativas com um modelo já consolidado no exterior. Em Grande Sertão, por exemplo, observa-se a presença marcante dos conflitos entre jagunços e coronéis em um Sertão que muito se assemelha ao cenário faroeste em que ocorrem diversos conflitos entre homens armados montados a cavalo com a presença de um ritmo constante de perseguições e diversos disparos ao longa da narrativa.

Figura 2 – Riobaldo e Zé Bebelo em Grande Sertão

Fonte: https://imagensamadasdotcom.files.wordpress.com/2015/09/grande-sertc3a3o-2.jpg

 

Outro fator a ser considerado desse período é a censura militar. No ano de 1964, quando o filme estava sendo produzido, houve o golpe de 64 e, consequentemente, as mídias foram afetadas por esse fato. O cinema, assim como outros meios de comunicação, teve de realizar modificações na forma de se comunicar com o público para não sofrer a punição dos militares. Muitas temáticas foram deixadas de serem abordadas, algumas cenas não tiveram a permissão de serem exibidas, características de personagens precisaram ser modificadas para que as produtoras não tivessem problemas com o regime da época. Em Grande Sertão, esse momento histórico contribuiu para que a paixão proibida entre Riobaldo e Reinaldo, existente na obra literária, fosse ainda mais modificada do que talvez se pretendia originalmente já que na época não se discutia tanto os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo quanto na contemporaneidade como exemplifica Maria Isabel Hardt, no artigo O Romance e a Adaptação Fílmica de Grande Sertão: Veredas:

Percebe-se que os diretores precisavam demonstrar para o espectador que já leu ou tenha conhecimento da obra literária, a necessidade de desfazer a ambiguidade de um amor proibido entre os dois jagunços, pois, sabe-se, que na década de 60, apesar ter sido palco de intensas reviravoltas, como: quebra de padrões tradicionais dos costumes, a busca de igualdade de direitos raciais, sexuais e de gênero, eles se preocuparam em realizar uma autocensura moral devido ao golpe de 1964 e a implantação do AI-5 (2015, p. 36)

A censura, as guerras mundiais, períodos de forte efervescência política são momentos que afetam significativamente as produções cinematográficas. As adaptações fazem parte desse contexto, pois são afetadas pelas escolhas que podem ser levadas ao público. Essas reflexões são importantes porque é necessário situar o momento histórico em que a adaptação foi realizada. Afinal, cada período possui debates que estão em voga, além do modo das pessoas se relacionarem, como é a tecnologia, as vestimentas, a economia, a política daquele povo do qual o filme faz referência naquele momento.

Os contextos de criação e recepção são tanto materiais, públicos e econômicos quanto culturais, pessoais e estéticos. Isso explica por que, mesmo no mundo globalizado de hoje, mudanças significativas no contexto – isto é, no cenário nacional ou no momento histórico, por exemplo – podem alterar radicalmente a forma como a história transposta é interpretada, ideológica e literalmente (HUTCHEON, 2001, p. 54)

Desse modo, pode-se constatar que atualmente a obra de João Guimarães Rosa seria adaptada de modo diferente em relação a dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, realizada na década de 1960. Até mesmo a obra literária é lida hoje de modo distinto àquele período, como sugere Linda Hutcheon. A interpretação que temos não é a mesma do leitor daquela década ou até mesmo de 1956 quando a obra literária foi publicada. Possuímos visões de mundo que diferem e nossos enfoques são outros por se tratar de sociedades com problemas, discussões, costumes que diferem em diversos aspectos. Nossa visão sobre o Sertão mineiro do início do século XX não é semelhante a quem viveu naquela época naquele lugar e nem do leitor da obra de Rosa após a publicação. Isso reflete na forma de representar os personagens: gestos, costumes, diálogos, figurinos e em toda a estrutura fílmica.

Se no mesmo período, cada diretor pode adaptar a obra com escolhas que diferem de outro diretor, quando comparamos com a época em que o trabalho foi realizado pode haver ainda mais contraste. Isso pode acontecer também devido às limitações e possibilidades técnicas das ferramentas cinematográficas. A evolução delas permitiu que nas últimas décadas os cineastas pudessem levar aos espectadores cenas com efeitos especiais que seriam inimagináveis no final do século XIX quando foram produzidos os primeiros filmes.

Outro dado importante que pode contribuir para mudanças da narrativa em uma adaptação é a colaboração do autor do texto adaptado na concepção da versão cinematográfica. Segundo Osvando José Morais (2000, p. 43), os diretores de Grande Sertão conversaram com João Guimarães Rosa acerca da adaptação. O autor relatou como imaginava que a obra seria apresentada no cinema. Rosa chegou a mencionar inclusive questões voltadas ao ritmo do filme, dizendo que ele “deveria ter um ritmo nervoso, inquietante, ameaçador, mantendo constantemente em sobressalto o espectador. E que nele se vissem muitas armas” Advertiu que não queria choros, nem lamentações, nem cemitérios, nem efeitos sonoros destinados exclusivamente a ‘comover’ propositadamente e que preferia as elipses, os detalhes mais carregados de sugestões do que as prolongadas cenas visuais, explícitas, redundantes (p. 44). Além disso, Guimarães Rosa teria aconselhando também na representação da relação entre os personagens: o amor entre os personagens é íntimo, inquieto, latejante, mais perturbador do que enternecedor. Em qualquer lugar, nas ocasiões mais inesperadas, pode surgir o amor, mais belo, mais verdadeiramente do que quando artificiosamente preparado (p. 46).

 

3. RECRIANDO GRANDE SERTÃO: VEREDAS NO CINEMA

 

A obra de João Guimarães Rosa despertou o interesse dos diretores e roteiristas Geraldo e Renato Santos Pereira pela escrita e enredo que o autor desenvolveu. Eles viram a possibilidade de recriar a narrativa no cinema através da linguagem cinematográfica. No entanto, por se tratar de um romance denso em detalhes, com inúmeros neologismos, grande quantidade de personagens e uma narrativa com diversos acontecimentos não seria possível contemplar todas as características da trama e estilo do autor na adaptação. Outro agravante foi o fato de que a estrutura narrativa poderia ser confusa para o público devido a não linearidade e à falta de objetividade em diversas passagens do livro em relação ao que realmente está acontecendo. Somam-se a isso todos os fatores já mencionadas acerca da época, bem como as limitações técnicas. Os diretores precisaram, portanto, escolher elementos/trechos da obra literária para compor a obra fílmica.

Poucas fontes de adaptações equivalem a filmes de duas horas. As seiscentas páginas de um romance, por exemplo, serão material em demasia; já um conto ou um artigo de jornais serão curtos demais. Assim, o primeiro trabalho do adaptador é descobrir como fazer para adequar o trabalho a parâmetros de tempos diferentes. (SEGER, 2007, p. 18)

No trabalho de adaptação de uma obra como Grande Sertão: Veredas, os roteiristas e diretores têm o desafio de escolher alguns trechos da obra literária que considerem importantes para compor a narrativa fílmica. É necessário levar em consideração o tempo de exibição nas salas do cinema. Na década de 1960, muitos dos filmes brasileiros não ultrapassavam a duração de duas horas. Grande Sertão, por exemplo, lançado em 1965, possui noventa e dois minutos. O tempo de exibição é importante porque cada minuto a mais na produção de um filme implica em custos adicionais, maior cautela na organização e preparação de equipamentos, cenários, atores e, consequentemente, de trabalho na edição de todo o material gravado. Em muitos casos, como o de Grande Sertão, ocorre a simplificação do enredo, das características dos personagens ou até mesmo a opção por deixar que um ou mais deles não sejam representados. Pode acontecer de alguns cenários não existirem na versão cinematográfica, situações que muitas vezes seriam complicadas de se produzir no cinema são descartadas para não colocar em risco a vida dos atores e/ou diminuir custos e não comprometer o cronograma de gravação para poder finalizar a obra fílmica no prazo.

Além disso, as escolhas realizadas pelos profissionais do campo cinematográfico também são pautadas visando o público a qual se pretende atingir. Significativas mudanças podem ocorrer para agradar os espectadores e atrair um número maior de pessoas às salas de cinema. Alguns diálogos são alterados para que tenham um discurso mais juvenil, se este for o público alvo da obra. O figurino, a maquiagem, os objetos de cena – muitas vezes enquadrados em cenas com a intenção de serem comercializadas pelas empresas patrocinadoras – refletem essa cautela. Temáticas, costumes, músicas que estão no cotidiano dessa faixa etária podem estar na composição fílmica para atrair ainda mais a atenção das pessoas.

Outra razão para que haja a preocupação com o público ocorre no fato de que ele pode se identificar com determinado personagem em razão das características da aparência e da personalidade com a qual foi concebido. Por exemplo, ao ver que os personagens Riobaldo (Mauricio do Valle) e Zé Bebelo (Jofre Soares), em Grande Sertão, são representados por atores de idade mais avançada em relação aos personagens da obra literária, o público pode sentir empatia por eles, haja vista que demonstram maturidade e propriedade diante do que falam e do modo como induzem as pessoas a acreditarem e a agirem de acordo com o que falam/fazem. O público passa a ver a narrativa como verossímil, pois ela evidencia personagens com a aparência física que demonstra serem indivíduos que passaram pelas experiências que estão sendo mostradas, andaram pelo Sertão e possuem uma trajetória de vida que enfatiza os conflitos internos e externos que evidenciados no filme.

Poderia haver outra recepção do público se o personagem Riobaldo fosse representado por uma pessoa jovem, o que poderia causar estranheza por não aparentar aquela idade. Esse fato seria preocupante, pois o protagonista precisa ser dotado de qualidades físicas e psicológicas que atraiam a atenção das pessoas que, ao assistirem ao filme, as façam sentir que são críveis. Afinal, esse personagem conduz grande parte da narrativa e está atrelado aos demais. Zé Bebelo, por exemplo, é apresentado como alguém que já passou por muitas experiências e tem conhecimento vasto sobre os conflitos do Sertão, o que é fundamental para persuadir os indivíduos através dos discursos que utiliza para convencê-los.

Os irmãos Pereira Santos desenvolveram a adaptação Grande Sertão em preto e branco, uma estética diferente em relação ao colorido utilizado atualmente nos filmes. Ela pode imprimir, por vezes, um universo mais voltado aos personagens, tentando captar o sentimentalismo de forma mais melancólica, focando o olhar do espectador de modo mais expressivo na essência da narrativa do que nos objetos contidos em cena. Uma trama contada em cores, em muitos casos, apresenta diversos elementos que estão no quadro fílmico e que atraem e, podem também distrair, a atenção do público. A escolha por utilizar a estética dos primeiros filmes se deve ao fato de que os cineastas e o público consideravam os filmes em preto e branco mais ‘realistas’, apesar da ‘realidade’ ser em cores (STAM, 2008, p.30). Há uma atmosfera criada por essas cores que rementem ao passado, ao Sertão conflituoso marcado pelo contraste entre o preto e o branco, a crueldade estampada sem compaixão, a ausência de uma vida digna resultada pelos desejos de poder dos jagunços e a pobreza do povo.

 

Figura 3 – Riobaldo, Reinaldo (Sônia Clara) e os demais jagunços percorrendo o Sertão

Fonte: https://imagensamadasdotcom.files.wordpress.com/2015/09/grande-sertc3a3o-foto.jpg

É importante recordar que as narrativas cinematográficas em cores estavam começando a ser produzidas naquela época. A dificuldade em utilizá-las estava no fato de que o material gravado deveria ser enviado para os Estados Unidos para ser revelado, pois esse serviço ainda não era feito no Brasil. Mais tarde, o país teria laboratórios adequados para fazer a revelação dos filmes, o que contribuiria para o aumento do uso das cores na cinematografia brasileira.

Uma das dificuldades para adaptar a obra ao cinema pode ter sido o fato de que grande parte da narrativa de Grande Sertão: Veredas se passa em ambientes externos, como o Sertão. Isso dificulta o trabalho dos profissionais da área cinematográfica, pois cenas externas apresentam um grau maior de complexidade para serem realizadas. Um dos empecilhos é que a equipe depende das condições do tempo para gravar. Por não se estar em um ambiente fechado, é difícil controlar meticulosamente a luz e o vento. Os equipamentos ficam mais expostos à poeira e aos riscos de serem danificados por muitas vezes não serem guardados em um local adequado. Cenas externas noturnas requerem maior cautela para serem gravadas porque é necessário iluminar o ambiente para que a imagem não apresente ruídos e, tampouco, seja inverossímil por conter uma quantidade de luz muito superior ao que se observa no período noturno. Os profissionais do cinema ficam atentos a esses detalhes e antes de transpor um texto para o cinema procuram minimizar cenas externas para que não impacte no orçamento e no cronograma da produção cinematográfica.

Atualmente, as capas de DVDs da referida adaptação cinematográfica trazem como título Grande Sertão: Veredas. Porém, na época do lançamento, limitava-se a Grande Sertão. A escolha por esse título pode estar atrelada ao fato de que o enfoque da narrativa fílmica consiste nos conflitos ocorridos no Sertão entre os jagunços e coronéis e não nos personagens e, menos ainda, na relação amorosa entre Riobaldo e Reinaldo:

Os irmãos Santos Pereira decidiram centrar sua atenção prioritariamente na guerra infinda entre bandos de jagunços determinados a exercer o controle sobre o Sertão-mundo, transformando o filme em uma espécie de western à brasileira, em que a trilha musical chega quase a ser sufocada pela sucessão interminável de tiros, e o solo parece destinar-se ao abrigo de cadáveres. Tal escolha evidencia-se já na abertura, por meio da epígrafe, extraída do romance, que abre o filme: “Sertão, o senhor sabe, é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! (OLIVEIRA, 2008, p. 2)

Ao transpor a obra literária de Guimarães Rosa, os irmãos Geraldo e Santos Pereira deram ênfase na ação, ao passo que a cautela com o desenvolvimento dos personagens foi menor. Diadorim, por exemplo, não possui muita relevância na obra. A participação nas cenas ocorre, geralmente, de forma rápida e com poucas falas.  É uma personagem descaracterizada e, sendo o par romântico de Riobaldo, deveria apresentar maior desenvoltura e presença na narrativa. Não é mostrado ao público, por exemplo, o porquê de tantos conflitos, as causas de tantas disputas. Se os personagens anseiam pelo poder no Sertão, é preciso entender um pouco da história deles, como se iniciaram alguns conflitos, porque alguns homens se submetem a vagar pelo Sertão durante tanto tempo e porque respeitam aos líderes deles e não a outros.

Sobre esse fato e de outras mudanças na estrutura da trama, pode-se inferir que:

Os irmãos Pereira conceberam um filme em que a preocupação maior é o enredo e a ação, aproximando-se do que o cineasta Píer Paolo Pasolini chama de “cinema de prosa”, a partir de um romance extremamente poético de Guimarães Rosa […] Nesse filme, o Sertão deixa de ser um lugar místico, tal como concebido no texto de G. Rosa, e se torna palco de batalhas e conflitos. […] Os irmãos Geraldo e Renato Pereira acabam com as ambiguidades em seu filme Grande Sertão, abandonando, juntamente com isso, a narrativa poética rosiana. Assim, é deixada de lado a temática do amor interdito entre Riobaldo e Diadorim, um dos temas principais da lírica narrativa de Riobaldo. Também é explícito, no texto fílmico, o pacto demoníaco do ex-jagunço, e são abandonados os casos secundários presentes no texto literário, como os relacionamentos amorosos de Riobaldo com Otacília e de Riobaldo com Nhorinhá, e a difícil travessia do Liso do Suçuarão, um deserto mágico dentro do Sertão (BIAGGI, 2007, p. 16 – 17)

É provável que essas mudanças tenham sido alguns dos motivos de o filme não ter conseguido êxito diante da crítica e nem sucesso de público (PESSOÂ, 2006, p. 2). Ainda hoje muitos críticos e apreciadores do cinema brasileiro não conhecem a adaptação cinematográfica realizada pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira. Muitos dos que a assistiram não lhe dão destaque quando comentam as produções fílmicas daquela época ou até mesmo sobre as adaptações realizadas das obras de João Guimarães Rosa.

Sobre o mau desempenho da adaptação de Grande Sertão Veredas, André Vinícius Pessôa comenta:

O filme, baseado na obra magna de Guimarães Rosa, por uma série de equívocos, não se sustentou como cinema. Não foi à toa que o surgimento de “A hora e a vez de Augusto Matraga” gerou na época uma sensação de justiça entre os admiradores da obra de Rosa e da arte cinematográfica, pois finalmente redimiu a sensação de fracasso que a adaptação de Grande Sertão: Veredas havia provocado. (2006, p. 7)

Além de tudo, segundo Osvando José Morais, João Guimarães Rosa teria se decepcionado com o resultado da adaptação, como relata no livro Grande Sertão: Veredas O Romance Transformado – Semiótica da Construção do Roteiro Televisivo: “Conta-se que depois de ver o filme, Rosa teria dito: ‘Pensava ver um fílmico épico, vi um filme hípico’” (2000, p. 47).

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como, geralmente, ocorre com as adaptações cinematográficas, a de Grande Sertão, dirigida pelos diretores Geraldo e Renato Santos Pereira, necessitou de algumas modificações na narrativa. Diversos fatores como a época, as companhias que produziram o filme, a estética daquele período, as limitações técnicas e até mesmo a contribuição de João Guimarães Rosa, autor da obra literária, impactaram nas escolhas realizadas na composição fílmica.

A adaptação implica em mudança pelo fato de se traduzir uma narrativa literária para o campo cinematográfico. Cada signo possui as peculiaridades para contar a narrativa ao público. No entanto, o diretor deve ter a sensibilidade de quais escolhas precisa realizar para compor o enredo fílmico, pois ele é constituído mais do que cenas com momentos intensos de ações. Convém, por exemplo, que os personagens sejam dotados de características verossímeis, bem como a motivação das ações que realizam, para causar a identificação no espectador e o convença de que a narrativa é crível.

Transpor uma obra tão densa em detalhes e de uma escrita peculiar quanto a de Grande Sertão: Veredas é um trabalho árduo que exige interpretação e uma visão minuciosa da trama, do contrário pode-se deixar de transpor detalhes importantes perdendo a força, a beleza da narrativa, como ocorreu em Grande Sertão. É preciso considerar as limitações técnicas, a época e tantos outros fatores durante o processo de adaptação, porém não se pode deixar que a narrativa seja sufocada, esvaziada e se perca a profundidade psicológica e dramática dos personagens. É preciso deixar que a imagem, o som e os demais recursos cinematográficos recriem a narrativa ecoando a profundidade dela por meio de outras perspectivas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SOUZA, Fábio José. Cinema Novo e Vera Cruz: Análise da diferença e semelhança entre o movimento artístico-cultural e a companhia cinematográfica, In: XV CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE, n° 15, 2013. Mossoró – RN, p. 1 – 10.

STAM, Robert. A Literatura através do Cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Tradução Marie-Anne Kramer e Gláucia Renate Golçalvez. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 511 p.

VIEIRA, Marcelo Dídimo Souza. Filmes de Cangaço: A Representação do Ciclo na década de noventa no cinema brasileiro. 2001. 147 p. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, São Paulo, 2001.

 

REFERÊNCIA FÍLMICA

GRANDE Sertão. Produção, Direção e Roteiro: Geraldo e Renato Santos Pereira.  Intérpretes: Maurício do Valle, Sônia Clara, Jofre Soares, Milton Gonçalves e outros. Brasil, Herbert Richers S.A, 1965. 92 min. Preto e Branco. Produzido por Companhia Cinematográfica Vera Cruz e Vila Rica Cinematográfica Ltda. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ysqtc8VUtIc>

[1] Doutorando no Programa de Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. É Mestre em Estudos da Tradução e Bacharel em Cinema pela referida Instituição. Tem experiência em roteirização de games, videoaulas para ensino à distância e edição de som, direção e dublagem de audiobooks.