De duplos e únicos: criação e tradução em Beckett – Ana Helena Souza

De duplos e únicos: criação e tradução em Beckett

Ana Helena Souza*

Samuel Beckett

Este artigo foi reelaborado a partir da palestra apresentada no dia 3 de outubro de 2018 no evento Samuel Beckett e tradução: teatro, prosa, música, corpo e performance, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC. Foi um grande prazer participar dessa jornada, na qual foram compartilhados diversos modos de experimentar a obra beckettiana por meio da tradução, seja ela linguística, performática, musical ou interpretativa. Foi como tradutora de cinco livros de Beckett – Molloy, Malone morre, O inominável, Como é e Companhia e outros textos – que dei a minha contribuição em outubro e que a retomo aqui.

Tratarei mais da tradução da prosa tardia incluída em Companhia e outros textos e analisarei também um pouco de traduções anteriores de Malone morre, que foi minha última tradução de Beckett a ser publicada, em 2014. Vou usar Malone para abordar o momento em que o escritor começa sua carreira de autor-tradutor, que depois se tornará uma marca de sua escrita, quando finalmente se transforma num autor bilíngue. Empregarei algumas considerações do escritor Milan Kundera para comentar a autotradução beckettiana. Depois, farei observações sobre um dos textos do volume Companhia e outros textos, chamado Worstward Ho, que traduzi como Pra frente o pior. Este texto, Beckett não traduziu. Para uma aproximação a como se coloca a questão da criação e da tradução nesse que é um dos últimos textos beckettianos, recorrerei aos ensaios de Paul Ricoeur, publicados no pequeno volume Sobre a tradução.

Textos duplos, textos únicos

O romancista, autor bilíngue e autotradutor Milan Kundera demonstra, numa análise das traduções francesas de O Castelo de Kafka, que o “bom estilo” dos tradutores de prosa de ficção muitas vezes apaga o que é mais característico na prosa do autor traduzido. Da análise de Kundera, três pontos serão destacados para servir de baliza aos comentários sobre um trecho de tradução de Beckett. O primeiro pode ser citado integralmente: “Nada exige mais exatidão, da parte do tradutor, que uma metáfora. É através dela que se toca o coração da originalidade poética de um autor.” (Kundera, 1994, p. 93) O segundo resume-se a apontar a inclinação dos tradutores de prosa a enriquecer o vocabulário, empregando a sinonímia no texto de chegada como meio de evitar a repetição de palavras presente no original. Esse uso da sinonímia para apagar as repetições presentes no original seria visto pelos tradutores como uma forma de afirmarem sua destreza tradutória (idem, p. 97). Além disso, ao constatar que “os tradutores (…) têm tendência a limitar as repetições”, Kundera chama a atenção para o sentido semântico de uma repetição como noção-chave e também para a sua importância melódica (idem, p. 101). No terceiro e último ponto a ser destacado, Kundera enfatiza o papel do “fôlego” na prosa, que pode ser entendido tanto no sentido da pontuação, bastante reduzida em Kafka, como no da “imagem tipográfica” do texto, às vezes um só parágrafo (idem, p. 105-106).

Meu objetivo aqui é observar as características de uma autotradução de Samuel Beckett, tendo em vista as observações feitas por Kundera sobre o que um tradutor de prosa deve respeitar. Depois será possível tecer comentários sobre a prática beckettiana da autotradução, o que nos levará de volta à questão do estatuto da autotradução em Beckett e da existência, no caso desse escritor, de uma obra genuinamente bilíngue.

O par de textos a ser comparado será Malone meurt/Malone dies. O primeiro foi escrito entre o final de 1947 e maio de 1948 e publicado em 1951, em Paris. O segundo foi traduzido para o inglês pelo próprio autor entre 1954 e 1955 e publicado em Nova York, em 1956. O texto de Malone meurt foi o primeiro a ser completamente traduzido por Beckett para o inglês. Molloy, o primeiro romance escrito em francês, e que comporia com Malone morre e O inominável a famosa trilogia do pós-guerra, fora traduzido a quatro mãos, em colaboração com o escritor sul-africano Patrick Bowles. Beckett se refere a essa experiência em carta de 5 de fevereiro de 1953 ao seu editor francês Jérôme Lindon: “De uma maneira geral, sei que não suportarei meu trabalho traduzido em inglês por outra pessoa. E revisar, como tento fazer agora, me faz ainda mais mal do que traduzi-lo eu mesmo, e por um resultado deplorável.” (Beckett, 2011, p. 357). De modo que a partir de Malone morre, o escritor passa a se encarregar sozinho do trabalho de tradução, no caso autotradução, que o levará em pouco tempo à composição de uma obra bilíngue.

Selecionamos o seguinte trecho, em que Malone, o narrador, acamado no que parece ser um asilo ou hospital, à espera da morte, relembra a infância (numerei as frases para facilitar os comentários):

 

(1)Mon corps ne se décide pas encore. (2)Mais je crois qu’il pèse davantage sur le sommier, s’étale et s’aplatit. (3)Mon souffle, quand je le retrouve, remplit la chambre de son bruit, sans que ma poitrine remue plus que celle de l’enfant qui dort. (4)J’ouvre les yeux et regarde longuement, sans ciller, comme petit, tout petit, j’interrogeais les nouveautés, et ensuite les antiquités, le ciel nocturne. (5)Entre lui et moi la vitre, embuée, marbrée de la souillure des années. (6)Je soufflerrai volontiers dessus, mais elle est trop loin. (7)Ce n’est pas vrai. (8)Peu importe, mon souffle ne la ternirait pas. (9)C’est une nuit comme les aimait Kaspar David Friedrich, tempestueuse et claire. (Beckett, 2004, p. 39)

 

(1)My body does not yet make up its mind. (2)But I fancy it weighs heavier on the bed, flattens and spreads. (3)My breath, when it comes back, fills the room with its din, though my chest moves no more than a sleeping child’s. (4)I open my eyes and gaze unblinkingly and long at the night sky. (5)So a tiny tot I gaped, first at the novelties, then at the antiquities. (6)Between it and me the pane, misted and smeared with the filth of years. (7)I should like to breathe on it, but it is too far away. (8)It is such a night as Kaspar David Friedrich loved, tempestuous and bright. (Beckett, 2006, p. 192)

 

Se voltarmos às observações de Kundera sobre o que fazem os tradutores de prosa e que, no caso específico das traduções de O Castelo para o francês, desvirtuam o texto de Kafka, veremos que a autotradução de Beckett da passagem citada não se atém integralmente aos preceitos estabelecidos pelo autor tcheco. Nas frases 3, 6 e 8, lê-se a repetição deliberada do substantivo “souffle” e do verbo “souffler”. Em inglês, uma das repetições é eliminada, junto com frase em que a repetição se dá – a frase 8, em francês. A frase 7, um comentário, também é eliminada. No caso dessas eliminações, já não parece se tratar do âmbito da tradução mas do da autoria, que implica diretamente autoridade, autorização. Parece-me difícil que um outro tradutor se sentisse à vontade para tanto, nem tamanha interferência de sua parte no texto poderia seria bem aceita.[1]

A frase 4 do francês enquadra-se no que Kundera chama de fôlego. É uma frase longa, entrecortada por apostos separados por vírgulas, e comporta ainda a repetição de “petit”. Em inglês, temos duas frases – a 4 e a 5 – que, de certa forma, tornam mais claro o que em francês poderia ter ficado obscuro. Malone, quando criança, olhava para o céu noturno e se perguntava o que havia de novo e antigo nele, ou seja, novas e velhas estrelas e constelações. O esclarecimento da imagem em inglês não parece ter compensado a quebra do fôlego mais longo. Por outro lado, são encantadores a sonoridade e o ritmo que Beckett consegue em inglês, mediante o emprego da sibilante em “gaze”, dos advérbios longo e breve “unblinkingly and long”, da rima e aliteração interna que “gape”, na frase 5, faz com “gaze” na frase anterior. Assim, embora o fôlego da frase única em francês não tenha encontrado o seu equivalente, o apuro com a sonoridade das frases e a manutenção da imagem enquadram-se no que Kundera destaca como qualidades de uma tradução.

A terceira observação sobre a passagem acima diz respeito à sinonímia e também à repetição. Em francês, temos uma repetição na frase 4, “petit, tout petit”. Em inglês, na frase 5, a expressão foi substituída por “tiny tot” e a repetição de palavras, suprimida. Beckett manteve apenas a aliteração, presente também no francês. Mais uma vez, a liberdade do autor ultrapassa a que se permitiria a maioria dos tradutores, sobretudo os tradutores de prosa, que tendem a ser mais conservadores que os de poesia e textos teatrais (Souza, 2009, p. 117-118).

É possível perceber dois movimentos nessa primeira autotradução beckettiana: um no sentido da total liberdade do autor, que pode simplesmente eliminar algumas frases, desdobrar e explicar outras; outro, que demonstra uma preocupação comum aos melhores tradutores de literatura com a manutenção de equivalências sonoras e rítmicas. Os pontos levantados por Kundera podem balizar a avaliação dos resultados, o peso da autoria, entretanto,  torna a abordagem da autotradução beckettiana diferente desde o início.

Vejamos mais um exemplo. Trata-se dos poemas que Macmann – personagem de uma das histórias do narrador Malone – faz para a sua amante Moll. Os poemas em francês e inglês de Beckett são bastante diferentes. Antes deles, no texto francês, o apelido de Macmann, usado pela amante, é “vieux bebé poilu” e o de Moll “Poupée Pompette”. Em inglês, os apelidos são respectivamente, “hairy Mac” e “Sucky Moll”. Citarei os poemas em francês e inglês, lado a lado:

 

Poupée Pompette et vieux bebé               Hairy Mac and Sucky Molly

C’est l’amour qui nous unit                    In the ending days and nights

Au terme d’une longue vie                     Of unending melancholy

Qui ne fut pas toujours gaie                    Love it is at last unites.

C’est vrai                                                (Beckett, 2006, p. 255)

Pas toujours gaie.

(Beckett, 2004a, p.147-148)

 

Na tradução de Leminski:

Bonequinha Chupa-Chupa

Velho bebê peludo

O amor nos uniu

Antes do fim de tudo.

(Beckett, 2004b, p. 112-113)

 

E o poema seguinte:

 

C’est l’amour qui nous conduit                    To the lifelong promised land

La main dans la main vers Glasnevin[2]         Of the nearest cemetery

C’est le meilleur du chemin                          With his Sucky hand in hand

A mon avis au tien aussi                               Love it is at last leads Hairy.

Mais oui                                                       (Beckett, 2006, p. 255)

A notre avis.

(Beckett, 2004a, p.148)

 

Tradução de Leminski:

Por um caminho vieste

Por outro caminho eu vim

Mão na mão, amor nos leva

Até os campos de Glasnevin.

(Beckett, 2004b, p. 113)

 

Na tradução do primeiro poema, a escolha foi pelo inglês, embora a palavra “bebê”, presente apenas em francês tenha sido mantida. Parece que a concisão do poema em língua inglesa influiu nessa opção do tradutor. Essa hipótese de preferência pela concisão confirma-se, de certa forma, na tradução do segundo poema. Embora o texto-fonte deste tenha sido o francês, Leminski corta-lhe os três últimos versos. É possível que a escolha do texto francês, neste caso, tenha sido ditada pela presença do nome “Glasnevin”, ocasião da única nota ao pé da página de todo o romance e que só existe no texto em francês. Leminski traduz a nota e assinala esse fato (Beckett, 2004b, p. 113).

Mesmo sem uma análise exaustiva, já se pode notar que a tradução feita por Paulo Leminski é uma tradução autoral, num sentido raro quando se trata de tradução de textos literários em prosa. Logo, se tomarmos o estudo que Brian Fitch faz do par de textos beckettianos Company/Compagnie, mostrando as diferenças suscitadas na imaginação do universo ficcional que o leitor cria dos textos, seria interessante analisar que tipo de imagem mental o leitor da tradução de Paulo Leminski criaria para si. Seria um universo ficcional mais próximo ao que o leitor de Malone meurt possui do texto ou àquele do leitor de Malone dies? Ou teria o seu Malone morre criado um universo ficcional próprio? Para dar uma resposta satisfatória a essa pergunta, seria necessária uma comparação detalhada dos três textos, como são as comparações encontradas no trabalho de Brian Fitch entre alguns pares de textos de Beckett. Não é nossa intenção, nem há espaço aqui para fazê-lo. Vale a pena, entretanto, citar uma observação de outro autor bilíngue, Raymond Federman, em seu ensaio  “The writer as self-translator”:

 

O ato original criativo (seja francês ou inglês) sempre acontece no escuro – Beckett sabe disso muito bem – no escuro e na ignorância e no erro. Embora o ato de traduzir, e sobretudo de se autotraduzir, também seja um ato criativo, é executado na luz (na luz de um texto original que já existe), é executado com conhecimento (com o conhecimento do texto que já existe), e portanto é executado sem erro – pelo menos no início. Em outras palavras, a tradução de um texto reassegura, reafirma o conhecimento, o conhecimento já presente no texto original. Mas talvez também corrija os erros iniciais daquele texto. O resultado disso é que a tradução não é mais (sobretudo com Beckett) uma aproximação do original, ou uma duplicação, ou um substituto, mas uma continuação do trabalho, dos trabalhos (workings) do texto. Às vezes a tradução amplia o original, às vezes o diminui, o corrige, até mesmo o explica (não, não para nós, não para o leitor, mas) para o escritor, que sempre sabe que a língua que usa (seja francês ou inglês) é um obstáculo que deve ultrapassar mais uma vez e mais uma vez. (Federman, 1987, p. 14-15)

 

A literatura de Samuel Beckett nos leva a constatar que o fato de o escritor ter traduzido ele mesmo seus textos nos autoriza a estudá-los como se fossem “originais” e até mesmo traduzi-los. O acontecimento beckettiano da autotradução destacou a importância da tarefa do tradutor de tal maneira para o autor que, com o tempo, ele passou a fazer com que o processo tradutório interferisse no processo criativo e vice-versa, criando uma obra verdadeiramente bilíngue.

 

O singular Worstward Ho

 

Dentro desta obra de textos duplos, há também textos únicos, no sentido de não terem duplos criados por meio da tradução do próprio autor. O que vamos comentar agora é um dos textos finais: Worstward Ho. Neste caso, chamaremos em nosso auxílio Paul Ricoeur e suas reflexões sobre a tradução.

Ricoeur coloca dois dilemas básicos. O primeiro é o da traduzibilidade versus a intraduzibilidade. Segundo o autor, a origem dessa oposição encontra-se na nostalgia de uma língua original, no mito de Babel visto como castigo, catástrofe. Desfazendo o dilema, aponta-se o fato óbvio de a intraduzibilidade ser desmentida na prática desde sempre. O segundo dilema é o da fidelidade versus a traição. Trair o original parece ser o preço a pagar pelo desejo de traduzir (Ricoeur, 2011, p. 45), que vai muito além do uso prático da tradução. Cito:

 

O que esses apaixonados de tradução esperaram de seu desejo? Aquilo que um deles chamou de alargamento do horizonte de sua própria língua – e ainda o que todos chamaram de formação, Bildung, isto é ao mesmo tempo configuração e educação e, em primeiro lugar, se ouso dizer, a descoberta de sua própria língua e de seus recursos inaproveitados. (idem, p. 46)

 

Se por um lado há um trabalho de tradução feito para eliminar resistências e incorporar o estrangeiro, há, por outro, o trabalho de luto que deve ser feito ao se renunciar ao ideal da tradução perfeita. Steiner em Depois de Babel dizia em suma que “compreender é traduzir”. Ou, como Ricoeur expressa com simplicidade: sempre se pode dizer a mesma coisa de outro modo (idem, p. 50)

 

A partir desse ponto, Ricoeur passa a investigar não mais a tradução entre línguas, mas aquilo que a tradução intralinguística nos mostra. Mostra-nos que a ideia de uma língua perfeita e universal não quer abolir as imperfeições das línguas naturais, “mas o seu funcionamento mesmo em suas surpreendentes estranhezas” (idem, p. 49). Ou seja, tudo aquilo que na língua mãe causa estranhamento ao ponto de chegar à incompreensão. Tudo aquilo que no interior de nossa própria língua demanda tradução. E Ricoeur conclui: “As razões da distância entre língua perfeita e língua viva são exatamente as mesmas que causam a incompreensão.” (id., ibid.)

Ao nos aproximarmos de Worstward Ho, a resposta à pergunta sobre o porquê de Beckett não ter traduzido esse texto se impõe. E como foi escrito em sua língua materna, parece haver algo na admissão da intraduzibilidade desse texto que se coloca até mesmo antes da barreira da não equivalência entre as línguas. Trata-se de algo com que o escritor está sempre lidando em sua própria língua e que, neste caso em particular, constitui a matéria mesma do texto. Uma forma ficcionalizada de cobrir o campo daquilo que existindo, não se presta a um tipo de compreensão traduzível.

Recorro outra vez a uma citação de Paul Ricoeur, quando comenta aquilo que pode desorganizar seu argumento de descartar de vez a intraduzibilidade. Trata-se da passagem da oposição entre duas línguas para a resistência à tradução inerente à linguagem. Trata-se da:

 

“(…) propensão da linguagem ao enigma, ao artifício, ao hermetismo, ao secreto ou, para dizer tudo, à não comunicação. Daí o que chamarei ‘extremismo de Steiner’, que o leva, por raiva da tagarelice, do uso convencional, da instrumentalização da linguagem, a opor interpretação e comunicação; a equação ‘compreender é traduzir’ se fecha então sobre a relação de si a si mesmo no secreto, em que reencontramos o intraduzível, que havíamos pensado ter descartado em proveito da dupla fidelidade/traição. Nós o reencontramos no trajeto do voto de fidelidade mais extrema. Mas fidelidade a quem ou ao quê? Fidelidade à capacidade da linguagem de preservar o segredo contra sua propensão a traí-lo. Fidelidade a partir de então mais a si mesmo que a outrem.” (p. 54-55)

 

O início da redação de Worstward Ho está datado de 9 de agosto de 1981 (Knolwson, 1996, p. 674) e sua publicação se deu em 1983. Dos textos mais importantes de Beckett, este foi o único que o escritor não traduziu. Depois das primeiras tentativas, perguntou ao amigo, futuro biógrafo, como seria possível traduzir as primeiras palavras (“On. Say on.”) para o francês sem perder sua força (Knolwson, 1996, p. 684). Não foi possível. Dois anos depois da morte do autor, foi publicada a tradução de Edith Fournier, com o título de Cap au pire, escolhido por Beckett de uma lista que a tradutora lhe apresentara.

Antes mesmo das primeiras palavras, a escolha do título já coloca problemas. Worstward Ho modifica a expressão “westward” (rumo ao oeste), seguida da partícula “ho”, uma expressão de entusiasmo e ímpeto, algo como “eia” ou “vamos”. Westward Hoe é o título de uma peça de 1607 de Thomas Dekker e John Webster, na qual a expansão da cidade de Londres para o oeste na época era satirizada. O título refere-se  ao grito dos barqueiros do Tâmisa para indicar a direção em que partiriam – usavam também “eastward ho”. Westward Ho! (1855), por sua vez, intitula um romance histórico de Charles Kingsley, ambientado na era elisabetana, narrando as aventuras de um personagem num navio corsário inglês pelo Caribe. A alteração para “worst” em lugar de “West” na expressão consagrada me orientou a buscar em português também uma expressão coloquial para modificá-la, introduzindo o “pior”. Com base em frases ufanistas da época da ditadura como “pra frente Brasil”, “este é um país que vai pra frente”, e outras mais antigas como “pra frente é que se anda”, decidi. A junção do “pra frente” com “o pior” me pareceu funcionar como a tradução brasileira de “worstward ho”.

As primeiras frases de Pra frente o pior colocam o problema básico da tradução de “on”, comentada – e evitada – por Beckett. Uma escolha comum aos tradutores de línguas neolatinas é a palavra “ainda”. Foi usada em francês (“encore”), espanhol (“aún”) e italiano (“ancora”). Diversamente, na tradução portuguesa, empregou-se “em diante”. Escolhi “adiante”, por várias razões. A primeira foi a de manter uma palavra que indicasse uma progressão mais espacial que temporal, que mostrasse o andamento do texto como um impulso de escrita, de um dizer que se move “adiante” na página. Assim no parágrafo inicial, temos: “On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.” (Beckett, 2009a., p. 81). Fiz a seguinte tradução: “Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até de nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Beckett, 2012, p. 65)

Embora em termos de concisão haja, como se diz em Como é, perdas por toda parte, as repetições funcionam como meio de manter um esquema aliterativo e assonante em /d/ e /t/ /an/ /en/ e /um/. É claro que a palavra “ainda” também se prestaria à manutenção desses valores sonoros, além de ser mais curta – uma sílaba a menos – e indicar também continuidade, prosseguimento em termos temporais. Neste ponto, a escolha por “adiante” ocorreu porque os significados deste advérbio contemplam tanto a conotação temporal (“posteriormente”, “mais tarde”) como a espacial (“na frente de”) e a de prosseguimento, continuidade. Além disso, há seu uso como interjeição, exprimindo “um estímulo, incentivo ou intimação para que se dê prosseguimento a algo que foi interrompido ou está se realizando sem a rapidez necessária”, e, como substantivo, significando “o tempo vindouro, o futuro” (Houaiss, 2001, p. 83). “Ainda” contempla apenas as conotações temporal e de continuidade. Outro motivo bastante forte para não ter usado essa palavra para traduzir “on” foi a perda que isso acarretaria para a tradução de diversas ocorrências de “still” com o significado de “ainda”, no texto, especialmente quando é utilizada junto a “on”. Por exemplo: “Still dim still on. So long as still dim still somehow on. Anyhow on. (Beckett, 2009a., p. 92) Trecho traduzido por: “Ainda penumbra ainda adiante. Até quando ainda penumbra ainda de algum modo adiante. De qualquer modo adiante.” (Beckett, 2012, p. 76)

Worstward Ho é o último de um conjunto de textos que Beckett concordou em reunir num único volume para uma edição em língua inglesa, volume que intitulou Nohow on. Os outros dois textos incluídos são Companhia e Mal visto mal dito, publicados em 1980 e 1981 respectivamente. Nesses textos aparece cada vez mais a divisa do “mal dizer”, também conhecida pelos leitores de Beckett como o “falhar melhor”. O filósofo Alain Badiou explica bem, na sua leitura de Worstward Ho, este que é um dos pontos mais comentados da prosa beckettiana. O “dizer mal”, segundo Badiou, é intrínseco à condição do dizer em Beckett, o seu imperativo (2002: 131). A tão citada busca do fracasso realiza-se numa busca contínua de um dizer que não se subordine ao dito, de um dizer artístico livre e, por causa mesmo desta dupla condição de arte e liberdade, profundamente rigoroso em suas tentativas.

É preciso mencionar que, no início da redação de Worstward Ho, Beckett tinha em mente as falas sobre o pior de Edgar, na peça King Lear de Shakespeare, sobretudo as seguintes: “O gods! Who is ‘t can say, ‘I am at the worst’? I am worse than e’er I was” e “And worse I may be yet; the worst is not, So long as we can say, ‘This is the worst’”. (Ato IV, cena I).

Em Worstward Ho, a voz é totalmente impessoal, a narrativa se quer oral (“Dizer adiante”), mas é na escrita que prossegue. Tudo é difícil de imaginar e a dificuldade é em si um meio de prosseguimento. Assim: primeiro tenta-se imaginar um corpo (uma mente) e o lugar em que se encontra. A partir do lugar, diz-se também a luz. É como se a narrativa saísse dos próprios elementos que a compõem e, claro, da própria língua, submetida ao imperativo do dizer “melhor pior” e do “mínimo”. Como exemplo, vejamos a luz que há neste lugar, que é vácuo. Trata-se de uma “luz de penumbra” (“dim light”): “Dim light source unknown. Know minimum. Know nothing no. Too much to hope. At most mere minimum. Meremost minimum.” (Beckett, 2009a., p. 82) Na minha tradução: “Luz de penumbra fonte não sabida. Saber mínimo. Saber nada não. Demais para esperar. No máximo mero mínimo. Meromáximo mínimo.” (Beckett, 2012, p. 66)

Para se ter uma ideia de como a tradução de um trecho desses pode ter resultados diferentes, cito a tradução portuguesa de Miguel Esteves Cardoso: “Luz obscura origem desconhecida. Sabe-se o mínimo. Não se saber nada. Seria esperar de mais. Quando muito o mínimo dos mínimos. Maximamente menos que o mínimo dos mínimos.” (Beckett, 1996, p. 9).

Aqui, a par da ideia do pior em contraste, ou melhor, em complementaridade e, por vezes, equivalência com o melhor, introduz-se a ideia do mínimo e do menos como máximo e mais, e vice-versa. Tudo isso em relação ao tipo de luz, que depois passará a ser referida, por meio do adjetivo substantivado, como “the dim”. Foi esse uso que nos levou a traduzi-la como “luz de penumbra” para depois poder indicá-la apenas como “a penumbra” (“the dim”).

Antes disso, porém, o lugar que se imagina será descrito como “dim void”, que traduzi por “vácuo sombrio”, pois o adjetivo “penumbroso” em português não possui nem de longe a coloquialidade de “dim” em inglês. No entanto, o uso de “dim” no texto não se resume a adjetivo e substantivo. “Dim” será usado como verbo, depois com prefixo de negação, além de agregar outros modificadores. Então foi aqui onde senti a necessidade de recorrer a mais de uma palavra para a tradução de “dim”. Escolhi o adjetivo “sombrio” e os particípios “desemsombrada” e “ensombrada” para, respectivamente, “dim”, “undimmed” e “dimmed”. A passagem é a seguinte:

“So leastward on. So long as dim still. Dim undimmed. Or dimmed to dimmer still. To dimmost dim. Leastmost in dimmost dim. Utmost dim. Leastmost in utmost dim. Unworsenable worst.” (Beckett, 2009a, p. 95)

Traduzi-a assim: “Assim pro mínimo adiante. Até quando ainda penumbra. Penumbra desemsombrada. Ou ensombrada para mais sombria ainda. Para a mais sombria penumbra. Minimáximo na mais sombria penumbra. Penumbra máxima. Minimáximo na penumbra máxima. Impiorável pior.” (Beckett, 2012, p. 80)

A tradução de Esteves Cardoso foi: “Menoravante em diante então. Enquanto obscuro ainda. Obscuro inobscurecido. Ou obscurecido até mais obscuro ainda. Até obscuro inobscurecível. Inminorável no obscuro inobscurecível. Máximo obscuro. Inminorável no máximo obscuro. Pior impiorável.” (Beckett, 1996, p. 29)

Há um limite para a justificação das escolhas de um tradutor. Mencionei também, na nota que precede as traduções do volume Companhia e outros textos, que Beckett, ao que parece, não quis fazer o “trabalho de luto” a que todo o tradutor deve se submeter, de acordo com a apropriação de Paul Ricoeur dos termos freudianos. Esse “trabalho”, como mencionamos, corresponde à renúncia a uma tradução perfeita, absoluta (Ricoeur, 2011, p. 48). Praticamente todas as autotraduções beckettianas são lidas assim, como pares perfeitos dos textos “originais” (em francês ou inglês). Mas Beckett preferiu deixar Worstward Ho sem tradução. É possível que para ele esta fosse uma composição não apenas escrita em língua inglesa, mas elaborada com e pela própria língua inglesa, desde seus mínimos sentidos e sons, de modo a expressar o que não se comunica pela linguagem, mas está ali contido nela, dando-se a ler nesta enigmática prosa de ficção.

Por não ter dúvidas disso, fiz minha tentativa buscando recriar os efeitos sonoros possíveis em português, sobretudo os que nos chegam límpidos pela própria quantidade de repetições das mesmas palavras. Outra meta foi não descuidar do sentido das imagens que o texto produz, tarefa possível não só pela aceitação das perdas, mas também pelas compensações de que o desejo de traduzir se alimenta.

  

Referências

 

BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética [Little Unaesthetics Manual], São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 117-162.

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________.Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2012.

________. Company etc. Edited by Dirk Van Hulle. Faber &Faber: London, 2009.

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________. Malone meurt. Paris: Les Éditions de Minuit, 2004a.

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________. The Letters of Samuel Beckett: 1941-1956. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

________. Últimos trabalhos de Samuel Beckett. Trad. Miguel Esteves Cardoso. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

FEDERMAN, Raymond. “The Writer as self-translator”. In: Friedman, Alan Warren, Charles Rossman, and Dina Sherzer (eds) Beckett Translating/Translating Beckett. London: The Pennsylvania State University Press, 1987, p. 7-16.

FITCH, Brian. Beckett and Babel: An Investigation into the Status of the Bilingual Work. Toronto: University of Toronto Press, 1988.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua

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KNOWLSON, James. Damned to Fame: The Life of Samuel Beckett. London: Bloomsbury, 1996.

KUNDERA, Milan. “A frase”. In: Os Testamentos Traídos. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 89-108.

RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Trad. Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

SOUZA, Ana Helena. A Tradução como um Outro Original , Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

________. “Características e exemplos da obra em prosa de Samuel Beckett, autotradutor”. In: Maria Clara Galery; Elzira Divina Perpétua, Irene Hirsch (Org.). Tradução, Vanguarda e Modernismos. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 117-134.

 

[1] É importante fazer essas ressalvas quanto à menor liberdade que o tradutor goza hoje para modificar o texto original, sobretudo quando se trata de línguas mais conhecidas como o inglês e o francês.

[2] Apenas no texto em francês, há a seguinte nota referente a “Glasnevin”: “Nome de um cemitério local muito apreciado”.

*Tradutora e ensaísta.