O “Manifesto do Surrealismo” completa noventa anos – Dirce Waltrick do Amarante
O Manifesto do Surrealismo completa noventa anos
Dirce Waltrick do Amarante*
O termo “surrealismo” surgiu em 1917, quando o poeta italiano Guillaume Apollinaire usou a expressão para definir seu drama As mamas de Tirésias e sua poesia, atenta aos mínimos gestos do cotidiano. Mas o movimento surrealista só se concretizou em 1924, ano em que o escritor francês André Breton lançou o Manifesto do Surrealismo, na cosmopolita Paris, que havia se tornado a capital da modernidade, embora alguns intelectuais e artistas ainda estivessem sufocados pelas tradições acadêmicas, como afirmam os estudiosos.
Muitos surrealistas tinham sofrido a experiência da I Grande Guerra e não queriam “ter nada em comum”, lembra Luiz Nazario, “com a civilização que os havia enviado à morte e agora os esperava cinicamente de volta para começar tudo de novo”, de acordo com as ideias e valores que haviam construído da realidade.
Segundo Octavio Paz, os surrealistas acreditavam que num momento privilegiado a realidade escondida por trás da visão socialmente aceitável iria levantar-se “da sua tumba de lugares-comuns” e iria coincidir com o homem. Quando isso acontecesse, prossegue Paz, o mundo já não se apresentaria como um “‘horizonte de utensílios’, mas sim como um campo magnético. Tudo está vivo. Tudo fala e faz sinais, os objetos e as palavras se unem ou se separam de acordo com certas chamadas misteriosas”.
Os surrealistas buscavam a redescoberta da realidade e julgavam que essa “realidade viva e íntegra é feita pela via da escrita automática, da anotação dos sonhos, da vizinhança com a loucura, a alucinação e o delírio”.
A psicanálise, principalmente a teoria dos sonhos de Freud, foi fundamental para o movimento, que se pretendia expressar através do mundo onírico. Para André Breton, “o surrealismo não era uma doutrina da arte, e sim das ideias inconscientes vindo a se manifestar”. Apesar de Freud ter sido importantíssimo para o movimento, Breton conhecia apenas superficialmente suas ideias.
Além disso, os surrealistas se interessavam pelos sonhos enquanto significante. Não lhes interessava, como era o caso da psicanálise, fazer interpretações analíticas deles.
O Manifesto definia o Surrealismo como “automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir, seja verbalmente, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado pelo pensamento, na ausência de qualquer controle da razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral”.
Contudo, alguns entendiam o Surrealismo como a “fetichização do exótico, o amaneiramento imitativo, o mero embelezamento de obras de arte por elementos aparentemente estranhos ou insólitos”, afirma Claudio Willer. Proclamou-se, ainda, diversas vezes a morte ou o fim do Surrealismo, mas como contestava André Breton, já em 1952, “apesar dos que, como você sabe, enterram o surrealismo duas ou três vezes por ano, e isto já faz um quarto de século, sustento que o princípio da sua energia permanece intacto”.
O fato é que o Surrealismo está longe de morrer. No ano passado, houve uma enorme exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa) das obras do artista surrealista belga René Magritte, “cuja especialidade, durante toda a vida, foi”, conforme Peter Gay, “a incongruência entre um título (ou legenda) do quadro e a própria obra, ou entre o tema da obra e a sóbria realidade”. Palavras e imagens, na sua obra, criam trocadilhos que multiplicam os seus sentidos e confundem ainda hoje o espectador que já não consegue mais acreditar na realidade à primeira vista.
* Professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC.