Café noturno em Berlin – Cilene Rohr

Café noturno em Berlin

Cilene Rohr*

George Grosz

George Grosz

Nascido no dia 02 de Maio de 1886, Gottfried Benn foi o filho mais velho do pastor evangélico Gustav Benn. Terminou a escola regular na pequena cidade de Mansfeld em Mark Brandegurg e depois concluiu o ginásio em Frankfurt der Oder. Passou dois semestres em Marburger como estudante de teologia, filosofia e filologia alemã. Em 1904 mudou-se para Berlin, onde com poucas, mas sempre involuntárias interrupções, Benn passou cinquentas anos, vivendo sempre na pequena região de Kreuzberg e Schöneberg. Contra a vontade de seu pai, concluiu o curso de medicina no ano de 1905. Houve nesse mesmo ano, uma discussão calorosa entre ele e seu pai.

Na sua estreia com Morgue und andere Gedichte em 1912, Benn rompe com paradigmas na lieratura, apresentando uma poesia que se sobressai pelo choque de termos antagônicos que descrevem a rotina de um médico que disseca cadáveres em um necrotério, servindo-se da descrição de caráter acadêmico para falar dos mortos, cujos corpos são dissecados com uma precisão fria que ataca a linguagem convencional da poesia. Há no ciclo de Morgue, uma montagem de palavras semanticamente contrárias que provocam um choque no leitor. Coisas cruéis são apresentadas com seus opostos. O mundo da beleza como se observa nos títulos Bela juventude, Pequena Aster, Requiem contrasta ironicamente com o mundo de cadáveres que são reduzidos à sua fisicalidade.

Segundo ressaltam os críticos, a poesia de Benn possui uma dicção berlinense que se vale do jargão da medicina, de gírias de ambientes chulos como bares e bordeis. Com muito sarcasmo, o poeta mistura expressões e fragmentos chulos com clichês religiosos, políticos e científico. Na sua concepção sobre o Eu lírico, Benn o define, em linhas gerais, como algo que está entre a sociedade de massa e sua língua vazia e decadente, e o pulsar da essência da matéria biológica como ele destaca em muitos dos seus ensaios sobre lírica.

Dentro do ciclo de Morgue, apresento, agora, um poema que traz um autoposicionamento crítico do Eu lírico em relação ao contexto sociocultural em Berlin. Em Café noturno (Nachtcafé), que é o último poema da série Morgue, destaca-se uma perspectiva diferente, que foge da dissecação de cadáveres e enumera doenças vulgares de forma satírica e mordaz, ressaltando eroticamente o ambiente da vida berlinense. O poema tem oito estrofes livres compostas em versos livres. O conteúdo varia dentro de uma sintaxe mínima cuja projeção de cenas estilizadas cria um efeito visual, como se a realidade descrita fosse montada de várias posições, como numa pintura, ou ainda, como se vê representada na imagem de George Grosz e que segundo o próprio Benn, é a caricatura de seu poema. As cenas caracterizam-se pela linguagem coloquial emoldurada pela estrutura formal do poema que não possui rima ou métrica consistente.

Termos como “conjuntivite” (Lidrandentzündung em alemão) frustram as tentativas de fazer a escansão do poema. Isso, abruptamente, força a quebra da leitura convencional do verso. Outra ruptura similar é trazida pelo uso de números cardinais no primeiro e décimo quarto versos, causando estranheza que quebra a regularidade da rima. O poema é fragmentado e as estrofes se compõem pelo uso da parataxe e das orações assindéticas que são recursos reconhecidamente empregados por Benn em toda sua poesia.

O enigmático número no início do primeiro verso parece sugerir uma espécie de artigo que define o status social das relações extraconjugais das mulheres, cuja promiscuidade atribuída se contrapõe ao sujeito lírico que idealiza o amor descrito nas canções de Schumman, intituladas Frauenliebe und –Leben. O primeiro verso do poema de Benn, em alemão, Der Frauen Liebe und Leben, é uma retomada em sentido irônico das canções de Schumann, uma vez que inverte o sentido da obra do músico. No poema de Benn, observa-se a degradação do corpo corrompido pela doença, sexo e ostentação material que se reflete, por exemplo, na joia em volta do pescoço da mulher, no nono verso. A justaposição da sequência, “Fé, amor e esperança em volta do pescoço”, aumenta a vulgaridade do gesto e revela a inversão dos valores.

Os músicos são, por metonímia, a extensão de seus instrumentos que estão personificados e assumem gestos grosseiros como arrotar ou beber sem compostura. Esse comportamento agressivo parece, no entanto, estar apropriado à clientela do lugar, pois as personagens são descritas pelas doenças que as acometem, como conjuntivite, doenças de pele, inflamações, entre outras, que parecem provir de uma total falta de higiene que revela a desmoralizada condição social dessas pessoas. As cenas poéticas são observadas e narradas por um Eu que, embora anônimo, é parte integrante da cena. A voz que descreve o ambiente permanece imparcial até o décimo sexto verso, quando se manifesta, dizendo: Não derramem o sangue de Chopin na sala. Isso chama a atenção para a discrepância entre o ambiente degradante e a música erudita.

A temática central do poema gira em torno de uma espécie de erotismo contido na repulsa e, ao mesmo tempo, desejo atrativo pela figura da mulher, cujo anonimato permanece na classificação do sexo: uma femêa. Ela é uma morena Canaã. Um potente símbolo sensual é ressaltado pelo fato de estar perfumada, mas, paradoxalmente, pode significar um sinal de contrição ou integridade sexual como se observa no vigésimo primeiro verso em que se ressalta sua castidade.

A chegada dessa mulher no ambiente parece transportar o Eu para outra esfera, pois ele parece perder a compostura e sente-se instigado pela presença erótica da misteriosa visitante. Observa-se o aumento da sensualidade pelo perfume indistinguível. A mulher, ou prostituta, é descrita pelo seu admirador (ou cafetão) simplesmente como um corpo obeso. O eu lírico trata aqui o ser humano com um desprezo irônico que ressalta a “coisificação do ser humano”.

O poema expressa aversão ao ser. Uma espécie de desgosto swiftiano em relação a aspectos fisicamente degenerativos do corpo humano, como Benn já expressou no poema O médico (Der Arzt), publicado em 1917 na coletânea intitulada Carne (Fleisch). Nesse poema, o Eu lírico não vê nada de louvável no ser humano que é para ele: a coroa da criação, o porco, o homem -: / é, contudo, como os outros animais! Também em Café noturno se tem uma visão do sujeito como “animal” que se esconde no submundo do ambiente social e cultural de Berlin na figura do esnobismo, do sexo comercial e da degeneração física. Em todas as instâncias, a ação humana é colocada como corporeidade degenerada que Benn mais tarde vai discutir no texto em prosa O Ptolomeu (Der Ptolomäer): “a vida e seu objetivo eterno é um receptáculo onde todos cospem: vacas e vermes e putas – vida, que todos eles consomem com pele e cabelo, uma idiotice final, sua mais baixa configuração fisiológica é digestão, esperma, reflexos.” (pag. 200).

Há aí um sentido em que a aversão corporal tem uma profunda função performática como um veículo retórico da expressão política e cultura do autor. Através da poesia de Benn, o corpo encena um significado cultural, como ícone central que produz uma visão crítica da modernidade. O ambiente é superficial, desprovido de fantasia, os personagens são decadentes e sem valores morais. O mundo projetado no poema retrata a problemática do ser humano, do seu caótico ambiente que é patologicamente distorcido e degradado.

 

* Doutoranda em teoria literária na UFSC

** O poema “Café noturno” pode ser lido na janela “Teatro na praia”.

 

Referências bibliográficas:

BENN, Gottfried. Gesammelt Werke in der Fassung der Erstdrucke: Band I. Gedichte. Frankfurt am Main. Fischer Verlag, 2006.

BENN, Gottfried. Gesammelte Werke in der Fassung der Estdrucke: Band III. Essays und Reden. Frankfurt am Main. Fischer Verlag, 2006.

BENN, Gottfried. Gesammelte Werke in der Fassung der Festdrucke: Band IV. Szenen und Schriften. Frankfurt am Main. Fischer Verlag, 2006.

BENN, Gottfried. Probleme der Lyrik: Späte Reden und Vorträge. Stuttgart, Klett-Cotta Verlag, 2011.

BENN, Gottfried. Doppelleben: zwei Selbstdarstellungen. Stuttgart, Klett-Cotta Verlag, 2011.

GROSZ, George. Ecce Homo (ilustrações). Reinbeck bei Hamburg: Rowohlt Taschenbuch, 2011.