Operar a poesia é desoperar a palavra: pensamentos sobre Pascoli e il Novecento – Patricia Peterle

 Operar a poesia é desoperar a palavra: pensamentos sobre Pascoli e il Novecento

 

Patricia Peterle*

 

[…] sarebbe così bello

questo mondo odorato di mistero!

(Colloquio, Myricae)

Giovanni Pascoli

Giovanni Pascoli

A relação do que é (ou está na esfera do) familiar, normalmente vivenciada de forma tranquila, pode e sofre desequilíbrios e desorienta. De fato, a sensação de estranhamento, ou melhor dizendo a estética do estranhamento, e do familiar parece ser uma constante em Pascoli: “A poesia consiste na visão de um particular inadvertido, fora e dentro de nós”. Como dirá Mario Luzi, algumas décadas mais tarde, para Pascoli trata-se de um retorno ao mundo dos afetos e dos sentidos. A vida da poesia depende, justamente, desse “particular inadvertido”, capaz de surpreender. Dessa forma, o poeta não inventa, ele descobre, como se lê em O menininho.Uma descoberta que também está na própria língua, no espaço do vazio, uma língua em negativo, uma língua morta – um dissolver –, que, por outro lado, potencializa a voz, por meio da experiência com a letra[1]. Uma escritura com componentes simbolistas, mas que ao mesmo tempo aposta em um devir, numa abertura. Não é um mero acaso que Mengaldo no prefácio de Myricae chame atenção para as características dessa escritura que “lasciano sempre attorno ai propri fantasmi e oggetti una scia di presupposizioni, aloni ed echi, addentellati col prima e col poi”[2].

Para Giorgio Agamben, em “Pascoli e il pensiero della voce”[3], Pascoli realiza o mitologema da voz, da sua morte e da sua memorial conservação na letra. Uma espécie de entre-lugar, espaço de fratura entre voz/língua morta e letra/língua viva. No texto Un poeta di lingua morta, Pascoli chama a atenção para a importância do uso de uma língua morta em poesia, que significa de um lado a resistência à morte da própria língua, fazendo com que a poesia ganhe vida, e, de outro, um uso que pode ser uma proteção ou defesa da própria poesia diante das coisas efêmeras e perecíveis. É nesse momento que poesia e religião são aproximadas:

[…] come la religione ha bisogno del raccoglimento e del mistero e del silenzio e delle parole che velano e perciò incupiscono il loro significato, delle parole, intendo, estranee all’uso presente, così ne ha bisogno la poesia: la quale del resto, anche in volgare, non usò mai e non usa ancora nè la lingua nè i modi nè il ritmo abituali.[4]

Na visão do filósofo, que já havia perpassado por Pascoli em outros textos como “Notas sobre o gesto” ou “Ideia da cesura”,o menino que dita não passa de uma voz morta (potência), capaz de fazer operar a linguagem, com a sua pura vontade de dizer. Assim, para o autor dos Canti di Castelvecchio, a linguagem humana se aproxima da linguagem que não mais sai dos lábios de quem vive – e é evidente para todos a intensa relação que a poética de Pascoli possui com o mundo dos mortos (uma língua silenciosa).

Myricae, com suas várias edições de 1891 a 1990, condensa aspectos originais da obra pascoliana. O título se abre a partir da epígrafe, releitura de Virgílio, uma adaptação do verso do poeta latino, “arbusta iuvant humilesque myriacae (agradam as arvorezinhas e os humildes tamariscos). Epígrafe que dá o tom dessas páginas e de seus conteúdos, ao colocar no primeiro plano aspectos simples, coisas pequenas pertencentes a um mundo dito campestre. Tal visão exige do poeta dos Canti de Castelvecchio um repensar a língua poética, pesquisa que engendrará pelas trilhas também das formas breves e quase fragmentárias. Porém, o que mais chama a atenção nesses poemas é como a linguagem poética ganha um movimento flexível, até plástico, para poder tratar das pequenas coisas. Na definição de Gianfranco Contini é possível inclusive falar de democracia linguística”, por abrir as portas do poético a tantos nomes de flores, plantas, passarinhos e, sobretudo, a pequenos objetos do quotidiano, os quais até então eram estranhos à tradição poética italiana. Ainda com Contini,

Tutte le cose dunque meritano l’attenzione di Pascoli […]. Vi è un doppio mondo, il mondo aulico, illustre e lusinghiero delle agavi americane, e dirimpetto il mondo non eccezionale, il mondo quotidiano e depresso, della pimpinella con le sue nappine.[5]

Essa aderência às pequenas coisas não se dá somente por uma escolha vocabular, a fenda na linguagem pascoliana é ainda mais profunda, por se tratar da sua condição “agramatical” ou “pré-gramatical”. O jogo, as quebras de ligações lógicas e sintáticas e as associações de imagens distantes fazem parte da trama que vai ganhando corpo por meio da suspensão do que se poderia chamar de regras institucionais da linguagem e seus parâmetros comunicativos. Como aponta Giulio Ferroni, o olho e o ouvido do poeta seguem as vibrações de essências obscuras e secretas, essências que se apresentam ainda mais obscuras pela sua própria simplicidade. Com efeito os Canti di Castelvecchio podem ser considerados um “repertório figurado do inconsciente”[6]

Ma la vita, senza il pensier della morte, senza cioè, religione, senza quello che ci distingue dalle bestie, è un delirio, o intermittente o continuo, stolido o tragico.

[…] ma ne benedirei la memoria de’ miei cari martiri, per i quali nessuno (nemmeno i loro assassini) soffrì, e che dalla loro fossa rendono anche oggi, per male, bene.[7]

Nas citações acima, retiradas do prefácio aos Canti di Castelvecchio, datado de março 1903, já se indica essa predileção que se concretiza em alguns poemas como La tovaglia e La tessitrice de Il ritorno a San Mauro (1903). Poemas importantes no conjunto pascoliano que desde o título evocam aspectos desse cotidiano e relações que dele fazem parte por meio da imagem toalha – e o que acontece ao redor dela – e por meio da figura da tecelã, presente também em Paul Verlaine, que será relida anos depois por Giorgio Caproni na figura feminina da ricamatrice, no livro dedicado a Anna Picchi, Il seme del piangere. É o próprio Caproni em uma entrevista a falar sobre a importância de Pascoli:

Pascoli è il padre di quasi tutta la poesia moderna italiana è stato lui il primo a gettare il seme dell’inquietudine nella parola. A volte sembra perfino… montaliano. (È stato Eliot a dire che a volte i poeti d’oggi influenzano quelli di ieri). Non so comunque fino a che punto Pascoli abbia influito sulla mia poesia. È un’indagine che spetta alla critica e che lascio volentieri alla critica.[8]

Outros momentos dos Canti tambémpodem ser lembrados, como a imagem da névoa, reproduzida no verso anafórico que abre as quatro estrofes, “Nascondi le cose lontane”[9], a voz estrangeira de Notte d’inverno, a forma dialógica em Per sempre e em Il ciocco e aindaa narrativa presente em alguns poemas como em La tovaglia ou em L’odor di notte, com descrições e cenas bem precisas:

 

L’odor di notte

 

Nelle case, dove ancora

si ragiona coi vicini

presso al fuoco, e già la nuora

porta a nanna i suoi bambini,

uno in collo e due per mano;[10]

 

As onomatopeias, as línguas mortas, enfim, a língua que não se sabe mais[11], permeiam e dominam a atmosfera. Vejamos, como exemplo, fragmentos de dois poemas:

 

L’uccellino del freddo

 

Nido verde tra foglie morte,

che fanno, ad un soffio più forte…

trr trr trr teri tirit…”[12]

 

Addio!

 

[…]

quando ascolto voi parlar tra voi

nella vostra lingua di gitane,

una lingua che più non si sa.[13]

 

Como já apontado por vários críticos é nas páginas dos Canti di Castelvecchio que Pascoli encontra outra maneira de pensar poesia – a repete incessantemente até cansar – e consegue fazer poesia de tudo, inclusive de migalhas de pão sobre uma mesa ou de uma vassoura de casa. Pasolini, por exemplo, ao mesmo tempo em que reconhece e aponta para a pluralidade que leva a poesia para além das fronteiras da língua, com seu “experimentalismo anti-tradicionalista”, também identifica os limites, por ser esse movimento sempre em função da vida intima e poética do eu, e logo, da língua literária no seu momento centralizador e, portanto, ainda tradicional.  De todo modo, a presença de Pascoli é central para a produção poética do Novecento italiano.

A monte delle tendenze al prosaico e della relazione anti-aulica della poesia contemporanea sta soprattutto la rivoluzione pascoliana […]. Sul piano lessicale si ha l’immissione – con evidenti risvolti parnassiani – di tutto un lessico concreto e quotidiano tradizionalmente escluso dal vocabolario selettivo e aristocratico della nostra poetica […]. Sintatticamente, si assiste alla rottura delle volute eloquenti, della cantabilità e della fluidità legata del discorso aulico con esiti innovatori di vario tipo, largamente produttivi presso i successori, quali la frammentazione impressionistica, paratattica e nominale, o certa linearità disarticolata e intermittente, vicina al “parlato”.[14]

Em La tessitrice,o pressuposto diálogo entre o poeta e a tecelã é, na realidade, um monólogo – a voz do poeta –, já que a tecelã só vive no seu coração e nas lembranças. O termo “mudo”, repetido algumas vezes, caracteriza a impossibilidade de fala da figura feminina (“Io non son viva che nel tuo cuore.”[15]) e o som silencioso que sai do tear: “Con un sospiro quindi la cassa / tira del muto pettine a sé. / Muta la spola passa e ripassa”[16]. A virgem vocal (a musa) é som em negativo, que segundo Agamben em O menininho ainda se encontra velada. A lembrança dos mortos, “a língua morta”, é um elemento fundamental na poética pascoliana, à qual retornaram poetas importantes da segunda metade do século XX, como Camillo Sbarbaro, Eugenio Montale, Giorgio Caproni e Vittorio Sereni[17].

O que chama a atenção numa leitura contemporânea da obra de Pascoli é justamente o saber que é o não-saber. O que está em jogo é um possível falar, pensar e escrever para além da letra, da morte da voz e da morte da língua. A linguagem como um espaço híbrido, do que já foi vivo e do que agora está “morto”, passível de tornar à vida – cinzas e fogo. Questões que norteiam o pensamento de Pascoli desde 1896. A “vaporosità della parola” é a herança deixada por Pascoli, como bem notou Caproni na resenha de Capanna indiana de Bertolucci, publicada na Fiera Letteraria (1956). Na leitura da conferência Il ritorno, proferida em ocasião do cargo de titular de Gramática grega e latina na Universidade de Bolonha, ele pergunta (se pergunta): a língua da poesia não é sempre uma língua morta? E afirma, ainda, ser algo bastante inusitado ser uma língua morta a que é usada para dar vida ao pensamento[18]. Operar a poesia é desoperar a palavra, deixá-la em estado vaporoso, no ponto em que parecer estar se esvaindo se potencializa.

 

La voce

 

C’è una voce nella mia vita,

che avverto nel punto che muore:

voce stanca, voce smarrita,

col tremito del batticuore:[19]

 

*Professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

[1] Em relação à dissolução, ao negativo, motivos importantes da poesia no século XX, podem ser lembrados alguns versos de “Alla cometa di Halley”, publicados inicialmente em Il Marzocco, 9 janeiro 1910: “[…] Gli si frangean, col croscio di ruine, / bolidi intorno; in polvere lucente/ ridotto il cosmo gli pioveva sul crine.// […] Il Niente o il Tutto: un raggio, un punto, l’Uno.” PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte. Projeto editorial, introdução e comentários de Cesare Garboli, vol. II, 2002, p. 1337.

[2] MENGALDO, Pier Vincenzo. Nota introduttiva. In PASCOLI, G. Myricae. Milano: Rizzoli, 1986. Também em La tradizione del Novecento – nuova serie. Firenze: Vallecchi, 1987, p. 79.

[3] AGAMBEN, Giorgio. “Pascoli e il pensiero della voce”. In: Il fanciullino. Organizado e introdução de Giorgio Agamben. Milano: Feltrinelli, 1982. Depois publicado em Categorie italiane. Venezia: Marsilio, 1996. Em 2012, esse ensaio foi republicado junto com o texto Il fanciullino de PASCOLI, pela editora romana nottempo. Ver também de Agamben Pascoli, esperienza della lettera. In Alfabeta, n° 20, Milano, Cooperativa Intrapresa, gennaio 1981, p. 7-8.

[4] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, p. 1012.

[5] CONTINI, Gianfranco. Il linguaggio di Pascoli, in Varianti e altra linguistica. Una raccolta di saggi (1938-1968). Torino: Einaudi, p. 235.

[6] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, p. 699.

[7] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, pp. 709-710.

[8] CAPRONI, Giorgio. Il mondo ha bisogno di poeti: interviste e autocommenti 1948-1990. Organizado por Melissa Rota, introduçao de Anna Dolfi, Firenze: Firenze University Press, 2014, p. 130.

[9] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, p. 724.

[10] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, pp. 728.

[11] Sobre a questão da língua morta ver também o capítulo XXII em GIOANOLA, Elio. Giovanni Pascoli – sentimenti filiali di un parricida. Milano: Jaca Book, 2000.

[12] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, pp. 720.

[13] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte. Projeto editorial, introdução e comentários de Cesare Garboli, vol. II, 2003, p. 823.

[14] MENGALDO, Pier Vincenzo. Aspetti e tendenze della lingua poetica italiana nel Novecento, in La tradizione del Novecento, Milano, Feltrinelli, 1975, p. 139.

[15] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, pp. 871.

[16] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte, vol. II, Milano: Mondadori, 2003, pp. 871.

[17] Nesse sentido, vale ressaltar a modernidade dos Poemi Conviviali, páginas permeadas pela consciência do sentimento de refazer as formas e de amar um povo de mortos.

[18] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte. Projeto editorial, introdução e comentários de Cesare Garboli, vol. I, 2002, p. 1086.

[19] PASCOLI, Giovanni. Poesie e prose scelte. Projeto editorial, introdução e comentários de Cesare Garboli, vol. II, 2003, p. 740.