A POESIA QUE SEGUE A VOZ DO MENININHO – Sérgio Medeiros
A POESIA QUE SEGUE A VOZ DO MENININHO
Sérgio Medeiros*
No seu romance A morte de Virgílio, o escritor austríaco Hermann Broch (1886-1951) descreve as últimas dezoito horas do célebre poeta épico da Antiguidade. Entre diálogos, monólogos, sonhos e delírios, Virgílio é reconduzido da Grécia, onde passava uma temporada, ao porto de Brundísio, no Adriático, já muito doente. Falece, portanto, antes de chegar a Roma, para onde o imperador Augusto almejava levá-lo. Quem o conduziu do navio até a casa onde ele morreria pouco depois não foi, porém, nenhuma autoridade romana, mas um simples menino, que surgiu inesperadamente do nada e lhe abriu caminho entre a multidão indiferente. Esse guia humilde gritava à massa: “- Dai passagem a Virgílio! Dai passagem a vosso poeta!” Aparentemente, só ele tinha consciência, naquele momento, de que o poeta já quase sem forças era o maior de todos os magos, conforme ele fez questão de gritar a certo bobalhão malévolo.
Esse menino sofrerá várias metamorfoses no romance, e estará ora diante do poeta, ora dentro dele, sempre à sua disposição, até o final. O romance de Broch é de 1945, e o jovem guia de Virgílio, na agonia, é muito mais antigo do que se imagina. O poeta italiano Giovanni Pascoli (1855-1912) concluiu, em 1903, um ensaio célebre, Il fanciullino, que começa afirmando: “Há dentro de nós um menininho…”, para declarar, em seguida, que na verdade o referido personagem já havia aparecido, entre outros, para Homero. O ensaio de Pascoli foi recentemente traduzido para o português, sob o título O menininho: pensamentos sobre arte (Rafael Copetti Editor, 90 páginas), por Patricia Peterle. “Se alguém tivesse que descrever Homero, deveria traçá-lo velho e cego, conduzido pela mão por um menininho que falasse sempre observando tudo ao seu redor”, é a cena arquetípica que o poeta italiano explora nesse texto.
Conservado no coração dos poetas, esse menininho (às vezes, uma menininha) é eterno, segundo Pascoli, podendo ser definido como o Adão que dá nome a tudo o que vê e sente. Contudo, o menininho apenas descobre, não inventa, e o autor do ensaio conclui, ao fazer um balanço da atuação dele (ele está se dirigindo a esse personagem): “e o que [você] descobre havia antes de você e continuará existindo sem você.” Simples e humilde, esse menino é o benfeitor dos poetas (a infância é necessária, pois a juventude e a maturidade não bastam), desde Homero até Pascoli, que dialoga com ele animadamente: “Você é antiguíssimo, oh! menino!, e é velhíssimo o mundo que vê de novo!”
Uma das passagens mais interessantes desse ensaio que sabe ser às vezes muito irônico e outras muito poético, é aquela dedicada a Virgílio e ao seu menino íntimo, tema caro a Broch. A servidão, segundo Pascoli, não aparece na poesia de Virgílio, que no entanto celebrou, como se sabe, a grandeza de Roma, dominadora de outros povos: “Os agricultores de Virgílio não são escravos nem mercenários, são aqueles […] que cultivam a terra sozinhos, como tantos pequenos proprietários ajudados pelos filhos.” A escravidão não é o ideal do poeta, pois o menino dentro dele não queria escravos nos campos: a servidão não “era poética, e o divino menino, que só vê o que é poético, não a via.” Disso se pode concluir, como o faz Pascoli, que o verdadeiro poeta é “socialista”, na medida em que somente expresse, bem entendido, o que o menino lhe dita dentro.
Os poetas seguem a voz do menino, mas Dante seguiu, segundo a Divina Comédia, os passos de Virgílio, então um poeta maduro. Pascoli considera essa situação no seu ensaio, e seu comentário é muito sutil e revelador. Se um menino é sempre um menino, em todos os lugares, quem é então Virgílio? Um modelo? Depois de opinar que as escolas de poesia são todas ruins e que não é necessário se ajustar a elas, Pascoli vai focar sua atenção não no autor da Eneida, mas no menininho que Dante poderia estar seguindo, ao parecer seguir apenas Virgílio. Ao analisar alguns versos de Dante, descobre que às vezes ele parece se envergonhar de ser menino, quando recusa o falar infantil e corrige os seus versos apenas para não parecer “pequenino”. Porém, depois ele reencontra a meninice, quando Virgílio o conduz a Matelda, que é a natureza humana, como afirma Pascoli, primordialmente livre, feliz e inocente. Matelda, na Divina Comédia, está no jardim da inocência e é a poesia. A partir daí, o “outro” Dante, novamente puro, “enxerga bem e escolhe sem esforço, escolhe cantando, as flores que parecem despontar diante de seus pés”.
Pascoli interroga muitas vezes o menininho, que parece estar impaciente para falar. E ele o faz aqui e ali, por meio de poemas destramente inseridos no ensaio. É uma pena que a edição não reproduza os poemas originais, optando apenas pela tradução integral deles. Mas, seja como for, o leitor saberá, ao fechar o pequeno e delicioso volume de Pascoli, agora finalmente disponível em português numa boa edição, que a poesia não evolui nem retrocede, não cresce nem diminui, e que ela “consiste na visão de um particular inadvertido, fora e dentro de nós”, conforme a voz do menininho íntimo não deixa nenhum poeta esquecer.
*Sérgio Medeiros é autor, entre outros livros, do poema dramático O fim de tarde de uma alma com fome e do ensaio A formiga-leão e os animais na Guerra do Paraguai, ambos publicados em 2015.