Tropeçar em poesia: um alerta – Myriam Ávila
TROPEÇAR EM POESIA: UM ALERTA
Myriam Ávila*
Sob neblina, alerta o código nacional de trânsito, use luz baixa. Com base nesse e em outros ditames, o poeta responsável há cinquenta anos pela realização da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, acolhida generosamente no saguão da Reitoria pelo então Reitor Orlando de Carvalho, elaborou variações paródicas que ainda hoje têm ar de profecias. Se naquela época era a ditadura militar que ameaçava engessar a vida brasileira em suas mais criativas expressões, hoje é a estardardização das ideias – e mesmo dos desejos! – sob o patrocínio da indústria cultural e sob a espécie da felicidade fabricada e fácil do consumo pré-digerido que acena com a invasão do obscurantismo mesmo ali onde se deveria gerar o futuro com maior largueza de pensamento: a universidade.
Justamente agora que a universidade se abre, através de cotas e outros mecanismos, para a multidão de excluídos do nosso sistema educacional, é preciso estarmos atentos para que os sedentos de saber e descobertas não a venham encontrar empalidecida e imobilizada pelos entraves da burocracia e pela inversão das prioridades, que colocam em primeiro plano as atividades-meio, em detrimento dos fins legitimadores de sua existência e manutenção. Os pequenos sinais da neutralização da paixão pelo conhecimento e pelo compartilhamento da informação marginalizada em meio aos discursos dominantes não devem ser ignorados. Talvez os alunos, cuja curiosidade e energia vital permanecem ainda em grande parte intocadas, os percebam primeiro. Ouçamos sua voz. E deixemos que ouçam a nossa, a da experiência e dos sonhos medidos, em debate respeitoso de parte a parte.
A que propósito vêm esses comentários? Refiro-me aqui às dificuldades encontradas pela relativamente pequena exposição comemorativa dos 50 anos da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda. A exposição original causou comoção na época em Belo Horizonte, atraindo a atenção positiva dos estudantes do ensino médio de vários colégios da capital, a atenção cética e desdenhosa da imprensa e até mesmo aquela, cautelosa, da polícia. Hoje, em meio a tantas atrações mais ruidosas e acessíveis, é difícil fazer chegar ao público em geral a lembrança desse momento crucial da nossa história e da expressão literária que aí se formou. Com enorme sensibilidade, o artista plástico Paulo Schmidt decidiu imprimir os poemas de 50 anos atrás em longas faixas de acetato, através de cuja transparência os vários poemas dialogam entre si, dificultando propositalmente a leitura e a movimentação dos visitantes. O alvo: a cultura do fácil, do já-à-mão, do imediatismo. Os poemas que, surpreendentemente, têm um caráter político participante muito em consonância com os anseios que o povo vem levando às ruas do país nos últimos meses, assumem assim uma aparência ao mesmo tempo elusiva e incômoda, colocando em pauta uma das reinvindicações mais frequentes dos cidadãos: a transparência.
No entanto, há aqueles que preferem ver nesses obstáculos poéticos um correlato dos verdadeiros obstáculos que se colocam à sua felicidade. Conviver durante três semanas, ludicamente, com a dificuldade de ultrapassar uma cortina de poesia que se interpõe entre nós e nossas tarefas não me parece ser um preço alto demais a se pagar pela desautomatização de nossas reações.
Infelizmente, a força dos acomodados está se impondo e exigindo a retirada de parte da exposição.
Colocando a questão em rima, sem solução em vista, só nos resta dizer que tropeçar em poemas é antes um privilégio do que um problema.
* Professora de literatura da UFMG.