Arquivos Poéticos: um olhar eclético no Novecento italiano – Elena Santi

Arquivos Poéticos: um olhar eclético no Novecento italiano

 

Elena Santi*

 

Gabriele d’Annunzio

Gabriele d’Annunzio

 

“Poesia é pensamento, é um espaço de confluência de vários tempos e de diferentes imagens, mesmo que incompletas. Poesia é também a crítica que a linguagem faz de si mesma. Todos esses pontos fundamentais, colocados em diferentes momentos do Novecento literário, não só italiano, são trazidos para o debate em estas páginas”[1].

É com essas palavras que as organizadoras dos volumes Arquivos poéticos, desagregação e potencialidades do Novecento italiano e Archivipoetici, disgregazione e potenzialità del Novecento italiano, introduzem o conteúdo dos livros apresentados. Os dois volumes representam a edição bilíngüe, realizada pela editora 7Letras, em 2015, das falas apresentadas no Congresso internacional dedicado à poesia italiana Arquivos poéticos, que ocorreu na Universidade Federal de Santa Catarina em março 2014.

Objetivo do congresso foi reunir alguns importantes pesquisadores para dar a própria contribuição na análise de determinados aspectos caracterizadores da poesia italiana do século XX, visando evidenciar as ligações entre diferentes décadas e autores, focando o olhar nas novas tendências que estão percorrendo a poesia italiana, por meio da comparação e a aproximação com outros autores, brasileiros e de outras nacionalidades, e grandes autores italianos do passado.

A publicação bilíngue manifesta a intenção de criar laços cada vez mais fortes, de colaboração e intercâmbio de ideias com em um contexto internacional. Também a vinda dos pesquisadores convidados para participar, cada uma trazendo consigo a sua heterogeneidade, demonstra uma vontade de ecletismo geográfico e temático que abre as portas a todo tipo de contribuição, deixando o livro viajar por temas diferentes e autônomos na interdependência deles.

A capacidade de renunciar a um olhar canônico e canonicistico, deixando de lado qualquer pretensão de exaustividade, faz com que a obra possa abordar de maneira sútil e precisa, argumentos diferentes do campo de pesquisa delineado na introdução.

O livro, portanto, oferece um ponto de vista privilegiado na análise de alguns temas típicos do Novecento, como a relação entre poesia e imagem, a questão da memória, os desdobramentos do lirismo no século XX, o diálogo com a tradição literária, a linguagem poética como ruína da língua e outras perspectivas.  O panorama de autores apresentados e lidos por meio metodológicas propostas é consistente e variado, compreendendo os versos de Umberto Saba, Eugenio Montale, Cesare Pavese, Giorgio Caproni, Vittorio Sereni, Mario Luzi, Edoardo Sanguineti.

A riqueza deste livro não está só na qualidade e interesse dos textos reunidos, mas, sobretudo, na capacidade que estes têm de se compenetrar, de instaurar uma discussão viva e construtiva entre eles, abrindo ao leitor um cenário diferente para o debate e o confronto. E os versos destes grandes nomes da poesia italiana são colocados ao lado das experiências de outros grandes autores, críticos e filósofos, como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Marco Lucchesi, Dante Alighieri, Furio Jesi, Gabriele D’Annunzio, Heidegger, Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Massimo Cacciari, Marc Augé e outros, com o objetivo de problematizar ainda mais o panorama que até aqui foi delineado.

De grande importância é então a capacidade de transcender as fronteiras geográficas e estilísticas, porque elevando o ponto de vista, é possível observar o fenômeno globalmente. E é, assim, no corpo a corpo com outras literaturas e gêneros literários que é possível perceber as peculiaridades e afinidades que fazem com que um determinado fenômeno ou movimento seja objeto de estudo privilegiado.

O olhar de Arquivos Poéticos, portanto, não (se) propõe como objetivo um discurso orgânico, uma observação sistemática e exaustiva do tema apresentado, mas visa abordar este tema de diferentes pontos de vista, fracionando-se em diferentes olhares, multiplicando os planos de observação e enternecê-los entre eles, para formar desenhos novos, buscar novas imagens e proporções.

O foco central da obra é a vontade de eludir, pelo menos em parte, as categorias principais de atribuição e a separação que existe entre as disciplinas literárias, valorizando as diferenças tanto de método e problemáticas quanto culturais dos pesquisadores convidados a participarem do projeto.  Essa nova liberdade que existe fora das categorias canônicas permite que possam coexistir no mesmo livro, intervenções que abordem temas e assuntos diferentes, mas que não deixam de ser coerentes entre eles, proporcionados justamente pelas capacidades de se compenetrar e criar ligações profundas em superfície e em profundidade.

No livro podemos encontrar as reflexões de Fabio Pierangeli e Enrico Testa sobre o sujeito poético na poesia do século passado, que ainda vive e dialoga com a poesia do século XXI. Temos o texto sobre Vittorio Sereni escrito por Prisca Agustoni, que analisa as diferentes fronteiras na produção do poeta lombardo, e a apresentação que PatriciaPeterle faz de Giorgio Caproni, se concentrando principalmente no seu lado de “ruína”, de resultado do passar do tempo, de memória que os pedaços ainda visíveis do passado são do tempo que foi. Lucia Wataghin trabalha com a figura das mulheres em Saba e Caproni, confrontando Lina, Rina e Annina e os versos a elas dedicados. Alfredo Luzi faz um percurso na produção do poeta Mario Luzi, repercorrendo os fundamentos da metafísica na poesia do autor italiano. Silvana de Gaspari viaja nos séculos da poesia italiana pesquisando as tangencias entre Eugenio Montale e Dante Alighieri, enquanto Aurora Bernardini oferece uma comparação internacional confrontando Montale com Drummond e analisando eventuais caminhos para a pesquisa futura. Nesse leque, não falta uma análise do antifascismo a partir de Cesare Pavese, pensando o tema do sacrifício e aproximando-o a Murilo Mendes por Susana Scramin. Para fechar o livro, há o texto de Sergio Medeiros que intervém neste debate analisando a figura do poeta na novela Il fuoco e em outras novelas.

O livro não se limita a falar de poesia italiana, mas se projeta em um campo bem mais interessante: falar através da poesia italiana, do pensamento ético e filosófico que acompanha a grande produção poética do século passado, a reflexão que a mesma poesia faz da linguagem, das suas mutações, das evoluções linguísticas do Novecento, como se esta fosse o espelho que nos mostra o verdadeiro estado da língua e suas mutações, instrumento privilegiado para perceber como muda a nossa relação com o idioma, e como este evolui e muda no curso do século.

E se, como falam as organizadoras do evento, poesia é também a capacidade de anular as distâncias geográficas, temporais e culturais, sincretismo no seu estádio mais puro e natural, então nenhum contexto pode ser melhor que este, onde convergem ideias diferentes, frutos de pesquisas e ambientes culturais às vezes distantes, mas que têm como objetivo comum o de participar à construção de um quadro fiel e verídico da variedade que a poesia encarna.

Se é verdade que em poesia nos enfrentamos à democracia extrema, onde tudo pode caber, não podemos não admitir que falar de poesia seja necessariamente falar de algo, que o discurso poético não tenha obrigação de ser só esteticamente relevante, mas pode ser empregado para apagar as distâncias e poder falar coerentemente de aquilo que, no discurso normal, não poderia caber.

 

[1]Arquivos poéticos desagregação e potencialidades do Novecento italiano, organização P. Peterle, S. De Gaspari, Rio de Janeiro, 7Letras, 2015, p. 7.

 

* Graduanda da UFSC