Como traduzir poesia? Teorias e práticas da tradução – Vanessa Geronimo

Como traduzir poesia? Teorias e práticas da tradução

 

Vanessa Geronimo*

 

Neste ensaio procuro apresentar e discutir teorias e práticas de tradução que envolvem a necessidade em ter um olhar crítico para a escolha dos elementos mais importantes a serem traduzidos, com o objetivo de buscar melhores soluções para a tradução de textos poéticos. Para tanto, serão apresentadas concepções de Paulo Rónai em relação à tradução literal e em relação à tradução de textos literários; concepções de Paulo Henriques Britto e de Antoine Berman, os quais mostram em suas teorias o contraponto entre forma e conteúdo; e também será abordado o conceito de “trabalho de luto”, desenvolvido por Paul Ricoeur, em sua obra Sobre a Tradução (2011).

Paulo Rónai, em sua obra A Tradução Vivida, afirma que tradução literal não existe e cita exemplos de traduções consideradas fiéis ao texto de partida, como a frase do latim Puer ridet, mostrando que na tradução para o português são necessárias três palavras: “Um menino ri” ou “O menino ri”, mesmo que em nenhum dicionário exista a palavra puer como equivalente de “o menino” ou “um menino.” Outro exemplo citado pelo autor é a tradução da palavra italiana arrivederci e das palavras inglesas so long. Ambas, no português, são traduzidas para “até logo”. Essas traduções, segundo Rónai (2012, p.22), não são traduções livres “já que representam as únicas versões possíveis, exatas e fiéis das fórmulas originais.” E, ao mesmo tempo, não são literais, pois devido às diferenças estruturais de cada língua e diferenças culturais nem todas as palavras possuem equivalentes perfeitos. Para Rónai (2012):

o bom tradutor, depois de se inteirar do conteúdo de um enunciado, tenta esquecer as palavras em que ele está expresso, para depois procurar, na sua língua, as  palavras exatas em que semelhante ideia seria naturalmente vazada (RÓNAI, 2012, p.69).

Por isso é importante, na tradução, compreender o contexto da obra a ser traduzida, pois não há como traduzir palavra por palavra e, além disso, Rónai (2012, p.21) relata que “as palavras não possuem sentido isoladamente, mas dentro de um contexto.” E, devido às peculiaridades dos textos poéticos, é necessária uma tradução crítica e criativa, pois quando tratamos dos chamados “textos complexos” de que trata Haroldo de Campos, ele sugere a recriação desses textos, assim como afirma Paulo Henriques Britto:

Traduzir – principalmente traduzir um texto de valor literário – nada tem de mecânico: é um trabalho criativo. O tradutor não é necessariamente um traidor; e não é verdade que as traduções ou bem são belas ou bem são fiéis; a beleza e fidelidade são perfeitamente compatíveis (Britto, 2012, p.18-19).

É possível traduzir, recriar uma obra, levando em consideração tanto a forma quanto o conteúdo, tornando-a tanto bela quanto fiel. É claro que, em uma tradução haverá perdas, mas, do mesmo modo, também haverá ganhos e certamente haverá mais perdas se o tradutor preocupar-se apenas em transmitir o conteúdo, é o que afirma Paulo Rónai:

A espécie de tradução em que a poesia se perde é aquela que se preocupa unicamente com o sentido e a mensagem. Ainda que o ritmo seja apenas aproximado, que não seja possível salvar todas as rimas, que a harmonia imitativa de certos sons se perca, o leitor sentiria algo da magia do original, que só uma transposição das ideias nunca lhe haveria dado (RÓNAI, 2012, p.173).

Ademais, submeter-se a algumas perdas do sentido de que trata o autor, que seria o conteúdo da mensagem, pode garantir maior fidelidade ao texto de partida. É raro, em um único verso de um poema, manter o conteúdo e a sonoridade. Na maioria dos casos é necessário optar entre um e outro e não pensar em uma tradução unicamente levando em consideração o conteúdo. Isso significa que o tradutor, quando for submetido à tradução de um texto poético, por exemplo, deverá ter ciência de que em sua tradução, às vezes, terá de optar em manter a sonoridade, perdendo o significado da palavra e, outras vezes, terá de manter o significado da palavra, perdendo em relação à sonoridade; embora, somente assim, conseguirá recriar, de maneira mais fiel possível, o texto de partida. Segundo Britto (2012),

O tradutor de uma obra literária não pode se contentar em transportar para o idioma-meta a teia de significados do original: há que levar em conta também a sintaxe, o vocabulário, o grau de formalidade, as conotações e muitas outras coisas. No caso do texto poético, o caso limite da literariedade, podem ter importância igual ou ainda maior o som das palavras, o número de sílabas, a distribuição de acentos nelas, as vogais e consoantes que aparecem em determinadas posições de cada palavra; além disso, também pode ser relevante a aparência do texto no papel, a começar pela localização dos cortes que separam um verso do outro (BRITTO, 2012, p.49-50).

Diante do exposto, percebe-se que são vários os fatores a serem levados em conta no momento da tradução e esses fatores vão além do significado. Isso prova que traduzir está longe de ser uma atividade meramente mecânica, pois traduzir é muito mais do que transpassar o significado das palavras, traduzir é compreender o texto a ser traduzido, é refletir sobre este texto e dosar os elementos mais importantes e essenciais a serem mantidos no momento da tradução, isto é, saber capturar a essência do texto de partida. É nesse sentido que utilizo a palavra “essência.” É por isso que traduzir é uma arte, assim como afirmam os teóricos Britto (2012) e Rónai (2012). E do mesmo modo pensa Antoine Berman (2013), como podemos perceber em sua obra A tradução e a letra ou o albergue do longínquo:

Partir do pressuposto que a tradução é a captação do sentido, é separá-lo de sua letra, de seu corpo mortal, de sua casca terrestre. É optar pelo universal e deixar o particular. A fidelidade ao sentido opõe-se – como para o crente e o filósofo – à fidelidade à letra. Sim, a fidelidade ao sentido é obrigatoriamente uma infidelidade à letra (BERMAN, 2013, p. 45).

Sendo assim, vemos que não é suficiente uma tradução que se pauta somente pelo significado das palavras. A fidelidade à letra é também a fidelidade ao ritmo, à rima, à forma. O sentido completo de uma obra não está somente no conteúdo, no significado das palavras. Captar o sentido completo de uma obra, ou seja, a sua essência, é perceber que ele está tanto no conteúdo quanto na forma.

Vale ressaltar que o significado também tem grande importância. O argumento em questão é que o significado não é o único importante, mas que faz parte de um conjunto, de um todo, e é isso que deve ser levado em consideração para que o texto traduzido possa se passar pelo texto de partida. De acordo com Britto (2012),

No poema, tudo, em princípio, pode ser significativo; cabe ao tradutor determinar, para cada poema, quais são os elementos mais relevantes, que portanto devem necessariamente ser recriados na tradução, e quais são menos importantes e podem ser sacrificados – pois, como já vimos, todo ato de tradução implica perdas (BRITTO, 2012, p.120).

Sabemos que em uma escolha, o mais importante será privilegiado e o menos importante será perdido. Sendo assim, “todo ato de tradução implica perdas”, mas são essas perdas que farão da tradução tanto bela quanto fiel. Lidar com essas perdas é o necessário “trabalho de luto” que há na tradução, segundo Paul Ricoeur (2011), em sua obra Sobre a Tradução, onde faz comentários consagrados às grandes dificuldades e às pequenas felicidades da tradução e cita “dificuldades ligadas à tradução como aposta difícil, por vezes impossível de se manter” (RICOEUR, 2011, p.21). Essas dificuldades são resumidas pelo termo “prova” (colocar-se à prova de uma pulsão: a pulsão de traduzir). Para esclarecer essa prova, Ricoeur (2011) sugere comparar a “tarefa do tradutor” (de que trata Benjamin) com o duplo sentido que Freud dá à palavra “trabalho” – ao falar “trabalho da lembrança” e “trabalho do luto”. O “trabalho da lembrança” refere-se à salvação na tradução e o “trabalho de luto” refere-se à perda. Ricoeur (2011, p.22) ressalta que “na tradução também se procede a uma certa salvação e a um certo consentimento de perda.” Essa perda é o “luto”, mas “é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir” (RICOEUR, 2011, p.29).

Às vezes, devido à complexidade do texto de partida, é necessário alterar alguns elementos no momento da tradução. Complexidade em relação à impossibilidade de manter, na maioria das vezes, concomitantemente o significado da palavra e a rima. É por isso que a alteração é inevitável. Segundo Paulo Henriques Britto,

Uma tradução que altera um elemento importante do original é melhor do que uma que omite um elemento importante. (…) Toda tradução é obrigada a alterar o original, mas idealmente essas alterações deverão ser discretas, de modo a não descaracterizar aspectos importantes do poema; e as eventuais omissões e acréscimos também devem se dar sobre elementos que não sejam cruciais (BRITTO, 2012, p.145).

Com as alterações é possível estabelecer um equilíbrio entre a forma e o conteúdo para manter a essência do texto de partida. Por exemplo, a obra Four Saints in Three Acts (1949), de Gertrude Stein, inicia com o verso “To know to know to love her so”. Nele notamos a existência de dois verbos: “to know” e “to love”. Não deixando de lado a possibilidade de que o “to” que forma o infinitivo, também pode ser a preposição “para”, “a”. Também notamos a repetição do verbo “to know”, tendo, com isso, três verbos no verso, e três rimas: “know”, “know” e “so.” Uma alternativa de tradução deste verso com a manutenção do significado das palavras, ou seja, do conteúdo, ficaria: “Saber saber para amá-la muito” ou “Saber para saber para amá-la muito” ou “Conhecer conhecer para amá-la muito”, etc.

São possibilidades de tradução que buscam o sentido literal das palavras. O que pretendo mostrar a seguir é o que pode ser perdido com essa maneira de traduzir.

Nos três exemplos de tradução perdeu-se o conjunto das três rimas e com as palavras que tomaram lugar das rimas: “saber”, “saber” e “muito” perdeu-se também a melodia. Manteve-se a repetição do verbo “saber”, mas os poucos ganhos estão no significado das palavras. Também se perdeu a ambiguidade de verbo e preposição em “to know to know to love…”, pois em português não existe uma partícula como o “to” que forma o infinitivo dos verbos e também serve como preposição. Para não haver perdas, pensando tanto em conteúdo quanto em forma, algumas alterações são necessárias e, para isso, é necessário escolher os elementos que, neste caso, têm maior importância para a tradução; é necessário, então, recriar. O verso “To know to know to love her so” poderia ser traduzido como: “Saber Saber para amá-la assim”. Nessa tradução do verso também foi perdido o conjunto das três rimas, mas manteve-se a repetição do verbo “saber” e houve ganhos através da aliteração em “s”. Foi alterado o sentido de “love her so” – “amá-la muito”, para “amá-la assim”. Trocou-se as rimas pela aliteração e, assim, foram recuperados o ritmo e a melodia do verso, não causando uma alteração semântica da palavra que fizesse se perder totalmente o sentido. Nas palavras de Britto (2012, p.133): “o significado do texto é, na grande maioria dos casos, fundamental; mas os elementos formais podem ser tão importantes quanto o significado, e em alguns poemas sua importância é até maior” e “a tradução de um poema cheio de efeitos musicais, como padrões rítmicos e rimas, deve conter efeitos semelhantes ou de algum modo análogos” (BRITTO, 2012, p.48)

Em relação à poesia, Rónai (2012) afirma que:

a sonoridade e o acento dos vocábulos, o seu aspecto visual, a harmonia das rimas, o comprimento e o ritmo dos versos, a composição das estrofes, tudo isso é conteúdo e forma ao mesmo tempo e portanto o tradutor tem de guardá-los presentes ao espírito enquanto recria o poema em seu idioma (RÓNAI, 2012, p.156).

Sendo assim, percebe-se que o sentido está tanto no significado das palavras, das frases, quanto na forma. Ou seja, na tradução tanto o contexto quanto a forma devem ser levados em consideração para melhor transmitir o texto de partida em outra língua.

Conforme afirma Britto (2012):

O tradutor deve produzir um texto que possa ser lido como “a mesma coisa” que o original, e portanto deve reproduzir de algum modo os efeitos de sentido, de estilo, de som (no caso da tradução de poesia) etc., permitindo que o leitor da tradução afirma, sem mentir, que leu o original (BRITTO, 2012, p.28-29).

Isso não significa abandonar o sentido, mas que às vezes ele está na forma, então é necessário ser seletivo e reflexivo, conforme afirma Paulo Rónai, pois para manter a essência de uma obra, devemos antes de tudo conhecê-la, também conhecer outras obras do autor e até mesmo ter conhecimento sobre o próprio autor, para adquirirmos maior capacidade de fazer essa dosagem em que às vezes a sonoridade será mais importante e outras vezes será o significado da palavra e, de acordo com Britto (2012, p.122), tratando de poemas: “todos os aspectos são potencialmente de igual importância, e a poeticidade do texto muitas vezes depende mais de aspectos formais do que do significado das palavras.”

 

REFERÊNCIAS

 

BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução: Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini; revisões Luana Ferreira de Freitas, Marie-Hélèle C. Torres, Mauri Furlan, Orlando Luiz de Araújo. 2ªed. Florianópolis: Tubarão. Copiart PGET/UFSC, 2013.

 

BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2010.

 

RICOEUR, Paul. Sobre a Tradução. Tradução e prefácio de Patrícia Lavelle. Belo Horionte: Editora UFMG, 2011.

 

RÓNAI, Paulo. A tradução Vivida. 4ªed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

 

STEIN, Gertrude. Last Operas and Plays. Edited by Carl Van Vechten; with an introduction by Bonnie Marranca. New York: Rinehart, 1949.

 

 

 

 

* Mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Dirce Waltrick do Amarante.