“Sames, Joyce et Beckett” – Ludovic Janvier – Tradução: Leide Daiane de Almeida Oliveira

“Sames, Joyce et Beckett”, de Ludovic Janvier

 

Tradução: Leide Daiane de Almeida Oliveira

 

James Joyce e Samuel Beckett

James Joyce e Samuel Beckett

 

Notas

1. Tudo nos assegura que James Joyce e Samuel Beckett se encontraram e foram amigos. O tempo, em um, para apreciar o domínio de uma linguagem que chegou “ao limite do Inglês”, o tempo, no outro, para descobrir um interlocutor de raça, para quem a cultura, como o foi para ele, levasse à solidão completa. As memórias guardaram desses anos apenas as narrativas do passado, para nosso aborrecimento, situadas entre a epopeia e a hagiografia, a memória, nesse caso, possuidora de um afeto um pouco tagarela e fiel, de uma grande solicitude das duas partes, apesar da reserva recíproca.
Desde o encontro em 1928, até os dias sombrios do verão de 1940 em Vichy, passando pelo almoço de Ulysses, os sutis jogos poéticos (Ellmann cita um intricado acróstico com o nome de Joyce), os silêncios pontuados de sentenças e a afeição de Lucia Joyce por Beckett, a anedota tem do que se nutrir.

A literatura também, já que dois traços importantes permanecem: a participação de Beckett em Our examination Round His Factification For Incamination  Of Work in Progress (1929) que, no título enciclopédico de Dante…Bruno. Vico… Joyce, passa facilmente pelo melhor ensaio da coleção e projeta uma luz alta ao que era ainda Work in Progress – e o primeiro ensaio de tradução (1930) de Ana Lívia Plurabelle, de Alfred Perron, passado na tradução definitiva onde entram num abismo tradutório Yvan Goll, Philippe Soupault, entre outros, e o próprio Joyce.

Em tudo isso podemos encontrar o sinal de uma relativa cumplicidade sancionada pelo reconhecimento, excepcional em Joyce, do talento de Backett — Ele adorou Murphy —, difundida também pelo falatório de cronistas e de críticos juramentados, para designar a filiação do primogênito ao caçula, que começou de secretário para terminar como discípulo.

Sam e James merecem ser colocados no mesmo balaio Joyceano: SAMES? Parecidos?

2. Encontro. Conjunção no mesmo espaço-tempo. O que a interrogação do autor de Murphy ao universo Joyceano permite reconhecer é, a princípio e largamente, o mesmo espaço. Ao que parece, o mesmo ar do contínuo da história. Com certeza não é por acaso que, com uma perspicácia que não é unicamente produzida pela cultura, o ensaísta de Our exag… amarra acima de Work in Progress os fios onde estão agarrados Dante, Bruno, Vico e Joyce. No Totum Simul bruneano esua coincidência dos contrários, já que não há mais nem alto nem baixo em um mundo em infinita expansão, reconhecemos não só o multidimensional (a palavra é de Beckett) do opus joyceano, estrutura pluridimensional pela totalidade da palavra (o trocadilho, o equívoco do sentido), da sequência (lembrança sonora, estribilhos, mimesis), do livro inteiro (retorno do mesmo, equívoco geral do sentido).

Desembarcamos também “nos tempos enormes” do percurso beckettiano e sua combinatória sonora, o que parece fixar o discurso em círculo. As figuras do círculo, de Bruno a Vico, se misturam para evocar o eterno retorno do Mesmo que assombrava a obra e a vida de Joyce, como ele escreveu, de Godot à Comédia, a palavra no canto da repetição e do refrão, o pensamento dentro do refúgio das “velhas questões e das velhas respostas.

E ouvimos ainda, a partir da mesma perspectiva, os jogos de palavras onde confluem simultaneamente riso e infortúnio: o humor beckettiano, as manipulações engraçadas (“Lucky, o sortudo, ou O capturado está dobrado” [Le pris est pli]) nas expressões cruéis (“Isto seria assinar uma sentença de vida, ao invés de se mexer de lá onde ele está, ou Isso não faz nenhum mal a ninguém, não há ninguém”), é o produto da relatividade generalizada onde se dá a obra de Joyce.

Dessa forma, sempre a partir do ensaio de 1929, a imagem do purgatório da Divina Comédia é o que permite que Beckett afirme que há no autor de Ulysses um processo de purgatório acontecendo continuamente, de fazer entrar os dois contrários, vício e virtude, no progresso do tempo humano. É a mesma imagem que parece ser transportada, com uma nuance trágica, dentro do tempo imenso e cruel da espera onde são fixadas as criaturas, Belacqua, Estragon, Vladimir, Malone, etc., que expiam a falta inocente de existir.

3. Mas, são as primeiras palavras do artigo que abrem a carreira e o trajeto de Beckett: o perigo está exatamente na clareza das identificações.

Beckett é o avesso de Joyce. Mesmo céu, outra luz. Aqui polifonia. Lá monodia.

Fazendo uso de hic et nunc de todas as fontes que a língua oferece a ele, Joyce faz um objeto múltiplo onde tudo ressoa e consoa, um objeto perfeitamente musical no qual a plenitude e a riqueza vibratória são a armadilha mais sutil — ou a mais ingênua — inventada contra o acaso e a aproximação da palavra humana. Subversão da escrita para obter da escrita sua função maior. Ao ligar as palavras, a sequência e o livro à maior cadeia paradigmática possível, Joyce instala a totalidade dentro da linguagem. Ao fazer dormir as palavras de Anna Lívia, ao fazer cantar, fluir, peidar, bater, murmurar indefinidamente o joyceano, ele que escutou melhor que os outros, crê falar melhor que os outros. Falar é para ele o antiacaso, a história, o mundo. O livro.

Sob o mesmo céu, outra luz está piscando. É a incerteza, é a busca, dentro de um monólogo teimoso, porém humilde e sem fim, de qualquer coisa que virá a se fazer, a dizer, sempre a vir, a contínua troca entre dicção e ficção. Certamente essa incerteza tem lugar mais ajustado no espaço sonoro, o mais submisso à articulação e ao fôlego da voz humana. Mas não é nada além de uma voz, dentro da noite, sem contar jamais, senão para avançar nos momentos de crise, com os paradigmas da cultura e os encadeamentos da polifonia. Ela apenas continua a sair, sobre duras penas, falando pouco, falando mal, dominada pelo pavor do tempo interminável e o pavor de parar, em pane.

Joyce: uma estética da dominação.

Beckett: uma estética do não-poder.

Um possui a cultura e aí estabelece seu discurso, seguro de si, onipresente, feliz como Gott in Frankreich. Palavra triunfante.

O outro é desprovido, ele libera a segurança da cultura, ele tenta, ele experimenta, não encontra nada, do zero ao infinito pendurado pelo fio frágil de um discurso a se refazer sem cessar.

Para um, o canto, o bel canto, o qual ele não somente apreciava como um alimento, mas o fabricava. Ópera múltipla.

Para o outro, escuta tensa da pequena voz que pede para sair, e sua dicção prudente em voz baixa e por fragmentos. Na melhor das hipóteses, um Sprechgesang sem fôlego e fora de timbre.

Para um, as palavras-valise. Completo. A presença. O brilho. O sabor.

Para outro, a palavra-ampulheta. Esvaziando-se. A ausência. Em direção ao branco.

Em Joyce, o veredito sem misericórdia do inventor.

Em Beckett, os problemas de quem explora.

A história, sou eu.

A história, eu estou longe dela.

O lance de dados de Joyce. Relançar sempre.

O defeito de Beckett. Daqueles que fizeram Giacometti hesitar / não hesitar entre expor ou jogar fora a escultura “acabada”.

Orgulho tônico.

Humildade benéfica.

Próximo.

Sames? Não, others: Joyce não pariu ninguém. Beckett não tem ancestrais conhecidos.

 

Referência

JANVIER, Ludovic. Sames, Joyce et Beckett. In : Joyce et le roman moderne. Revista L’arc. Paris, Duponchelle, 1990.