Teatro, linguagem e tradução: Samuel Beckett e a tradução de Fim de partida – Larissa Ceres Lagos

Teatro, linguagem e tradução: Samuel Beckett e a tradução de Fim de partida

 

Larissa Ceres Lagos*

 

Samuel Beckett

Samuel Beckett é hoje muito conhecido tanto no mundo teatral pelas suas peças de vanguarda como Esperando Godot e Fim de partida, quanto no campo dos romances do pós-guerra com Molloy, Malone Morre e O Inominável. Mas para além disso, também foi muito mais plural: abordou a poesia, ensaio crítico, contos e peças para rádio, em que estendeu e explorou o uso do seu projeto de esgarçamento da linguagem.

Entre os anos de 1955 e 1984, Beckett se correspondeu com o diretor de teatro estadunidense Alan Schneider, um grande leitor e aficionado por sua obra. Schneider organizou montagens de peças, festivais e filmou o roteiro escrito por Beckett de Film (1965), a correspondência foi compilada e editada por Maurice Harmon, professor da Universidade de Dublin e publicada pela Harvard University Press em 1998 e publicada sob o nome de No Autor Better Served: the correspondence of Samuel Beckett and Alan Schneider. Nesse volume de correspondências, é possível notar os grandes questionamentos que o diretor faz a Beckett tentando entender melhor sua linguagem e suas direções para as cenas. Perguntas sobre o significado das palavras ou de determinada direção que as personagens tomam no palco são frequentes, assim como pronúncias de palavras.

Fim de partida, que estreou em 1957, foi originalmente escrita Fin de partie, assim como grande parte da obra de Beckett, e traduzida por ele mesmo para o inglês como Endgame. A troca da língua materna pela língua estrangeira foi um grande e complexo passo para o autor, bem como a prática da autotradução[1].

É importante ressaltar que a atividade de autotradução não foi a primeira vez que Beckett traduziu. Sua prática já havia começado anteriormente através da tradução de poesia do francês para o inglês (como a de Paul Éluard) e também traduções do “inglês” para o francês, cujo projeto era a tradução do capítulo oito de Finnegans Wake, o capítulo de Anna Livea Plurabelle, projeto que ele não conseguiu concluir.

A carta aqui traduzida, escrita em 16 de abril de 1957, foi uma resposta a uma carta enviada por Schneider em que Beckett relata as dificuldades em “acertar” Fim de partida, mas chama também atenção o posicionamento do autor que se declara contra a tradução, afirmando que o texto perderia, qualquer que fosse, sua qualidade.

 

 

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 Rue des Favorites

Paris 15me

16.04.57

 

Dear Alan,

Many thanks for your two letters[1]. I can’t face my typewriter these days so you’ll have to make the best you can of my foul fist.

We “create” Fin de partie and mime at Royal Court and played from April 1st to 6th[2]. The press was hostile. A fine article from Hobson[3]. We go here at the end of the month at the Studio des Champs-Elysées. Much advanced hostility in the air, and the papers, here, which I do not understand, but rather welcome. I shall probably take control of U.S.A. performance rights away from Curtis Brown and give to Rosset. But I have not yet got down to translating the play into English. I have undertaken to have it ready by August and to give the U.K. rights to the Royal Court. The text will lose much in translation of whatever quality it may have, and my feelings always was against translation. But if I had not contracted to it for the Royal Court the week in French in London would have been financially impossible.

I left London very tired. Fin de partie is very difficult to get it right. Perhaps I have the wrong idea as to how it should be done. Blin and Martin have done a very good job – in spite of me!

A group of American students are doing Godot in English in a little theatre near the Halle aux Vins (5th arondissement), opening I think today. At the moment I am in the country and aspiring to stay there.

Write and tell me of your own doings. Enough about this old bastard, meaning

your friend

Sam

Kindest remembrance to Jean.

 

6 Rue des Favorites

Paris 15me

16.04.57

Caro Alan,

Muito obrigado pelas duas cartas[4]. Não consigo encarar minha máquina de escrever esses dias, então você vai ter que fazer o melhor que puder do meu faltoso punho.

Nós “criamos” Fin de partie e apresentamos a mímica no Royal Court e encenamos de 1º de abril até o dia 6[5]. A imprensa foi hostil. Um bom artigo de Hobson[6]. Continuamos aqui até o final do mês no Studio des Champs-Elysées. Muita hostilidade no ar, e os jornais, aqui, que eu não entendo, mas muito agradeço. Provavelmente tomarei o controle dos direitos de performances de Curtis Brown nos EUA e os darei à Rosset. Mas ainda não deslanchei a tradução da peça para o inglês. Pretendo terminá-la até agosto e dar os direitos do Reino Unido para o Royal Court. O texto perderá muito, qualquer que seja sua qualidade, com a tradução e meus sentimentos são sempre em oposição à tradução.  Mas se ainda não tivesse obrigações contratuais com o Royal Court a semana francesa em Londres seria financeiramente impossível.

Deixei Londres muito cansado. Fin de partie é muito difícil de fazer certo. Talvez eu tenha a ideia errado de como deve ser feita. Blin e Martin fizeram um trabalho muito bom – apesar de mim! E o trabalho em Londres melhora nossas chances aqui.

Um grupo de americanos está fazendo Godot em inglês em um teatro perto de Halle aux Vins (5° arondissement), acho que estreiam hoje.  No momento estou no país e pretendo continuar aqui.

Escreva-me e conte o que tem feito. Chega desse velho bastardo, quero dizer

 

Seu amigo

Sam

Sinceras lembranças à Jean

 

REFERÊNCIAS

 

HARMON, Maurice (Ed.). No author better served: The correspondence of Samuel Beckett and Alan Schneider. Cambridge: Harvad University Press, 1998.

[1] Para um estudo mais aprofundado é recomendada a leitura do livro de Ana Helena Souza ‘A TRADUÇÃO COMO UM OUTRO ORIGINAL’.

[1] Missing

[2] Fin de partie (Endgame) and the “mime”, Act sans parole (Act Without Words), were first performed, in French, at the Royal Court Theatre in Sloane Square, London, 3 April 1957, produced by George Devine, direct by Roger Blin, designed by Jacques Nöel. Fin de partie: Roger Blin (Hamm), Jean Martin (Clov), Georges Adet (Nagg), Christine Tsingos (Nell). Act sans paroles was directed and danced by Deryk mendel (Man), for whom it was written, with music composed and performed by SB’s cousin, John Beckett (piano), with Jeremy Montagu (percussion), T.G. Clubb (xylophone).

[3] Sir Harold Hobson (1904-1992), English theatre critic, Sunday Times, 4 and 15 April.

[4] Faltando.

[5] Fin de partie (Fim de Partida) e a “mímica”, Act sans parole (Ato sem Palavras), foram primeiro apresentadas em francês, no Royal Court Theatre em Sloane Square, Londres, 3 de abril de 1957 com produção de George Devine, direção de Roger Blin, design de Jacques Nöel. Fin de partie: Roger Blin (Hamm), Jean Martin (Clov), Georges Adet (Nagg), Christine Tsingos (Nell). Act sans paroles foi dirigido e dançado por Deryk Mendel (Homem), para quem foi escrito, com musica composta e tocada pelo primo de Samuel Beckett, John Beckett (piano), com  Jeremy Montagu (percussão), T.G. Clubb (xilofone).

[6] Sir Harold Hobson (1904-1992), crítico de teatro inglês, Sunday Times, 4 e 15 de abril.

 

*Doutoranda na UFSC.