Cinema no contexto da história da arte – Donny Correia

CINEMA NO CONTEXTO DA HITÓRIA DA ARTE[1]

Donny Correia[2]

 

Antes de mais nada, é preciso dizer que este ensaio é fruto de minha dissertação de mestrado defendida pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte, na Universidade de São Paulo, em agosto de 2014, com orientação do Prof. Dr. Edson Leite. Sob o título Estética da metrópole no cinema de autor dos anos 1920, o trabalho pretendia estabelecer algumas relações de ordens histórica e estética entre as vanguardas na arte do início do século XX e o cinema experimental, sobretudo nos filmes dadaístas e nas “sinfonias da grande cidade”.

À época, não foi possível abarcar toda a discussão em torno das questões do cinema autoral e sua relação de “restroestética”, ou uma relação estética de retroalimentação com a arte moderna por uma questão de objetividade quanto ao recorte da pesquisa, conforme me advertira a banca examinadora em meu exame de qualificação, um ano antes.

Nos cursos que ministro e nas palestras e seminários dos quais participo, em que o assunto se concentra nos diálogos multidisciplinares das artes plásticas, tenho insistido para que meus espectadores reflitam com atenção sobre a relação seminal que o cinema, sobretudo o cinema ensaístico produzido entre as décadas de 1920 e 1930, tem com a evolução das Artes Visuais ao longo da História.

Não se trará de fazer do cinema uma consequência ou última paragem para a evolução da técnica figurativa ou representacional. Nem mesmo se trata de pensar que o legado das artes apontasse necessariamente para o domínio da imagem em movimento. Pelo contrário, trata-se de considerar a hipótese de que a necessidade de capturar mecanicamente certos momentos-âncora da caminhada evolutiva humana atingiu seu ápice a partir do diálogo que foi possível se estabelecer entre o figurativo e o tecnológico, desde fins do século XIX.

O que quero dizer é que, de maneira inconsciente, nossos ancestrais necessitavam da recordação, da documentação, da cristalização de dado fato para, talvez assim, afirmarem-se enquanto seres diferentes de quadrupedes que serviam aos bípedes desenvolvidos.

Creio que esteja no DNA de nossos antepassados a gênese do que veio a se chamar cinema, pelo simples fato de queremos rever constantemente por onde nossas habilidades, falhas, virtudes e erros passaram na cronologia da espécie.

Fenomenologicamente, ousaria dizer que a arte figurativa encontrou no cinema o corpo reflexivo do artífice. O filme, por mais abstrato que seja, valeu-se da “caixa-preta” da civilização para devolver-lhe a síntese de uma existência didaticamente elaborada.

É fácil enxergar alguns procedimentos protocinematográficos já nas paredes de Lascaux, quando o nômade, em seu ímpeto de magia, conforme define Hauser (2010), “capturava” o animal representado na garatuja rupestre antes mesmo de sair à caça. Seria como uma maneira de contar um fato antes desse acontecer. Um flashback solto no tempo narrativo de uma mente ainda primitiva. Quando Hauser fala em representação mística, num segundo momento, em que nossos ancestrais já se organizavam em comunidades, não é muito diferente. Representar animais e fenômenos da natureza em paredes de cavernas em reverência a uma força que deve ser louvada para recompensar, ou, no mínimo, não punir, já se observa o princípio da documentação imagética dos mitos e de suas ações de reprimenda ou recompensa.

Não chega a ser um absurdo que o leitor deixe fluir esta espécie de teoria, se consideramos que o cineasta inglês Derek Jarman verbalizou durante as filmagens de seu Caravaggio (1986) que, se Michelangelo da Caravaggio vivesse no século XX, com certeza seria no mínimo um fotógrafo, mas muito provavelmente um cineasta. Jarman disse isso em referência à forma de composição nas telas do artista italiano que, ao invés de atrair a visão do espectador para o centro da imagem, como a estética de sua época professava, constantemente deixava “buracos negros” próximos às bordas, expandindo a cena para, em linguagem cinematográfica, além do campo.

O fato é que observo na arte egípcia duas curiosas formas de trabalhar a imagem como se o artista fosse um montador e a tela, sua moviola.

Vejamos:

Deixemos de lado a questão do domínio técnico da representação anatômica no período em que o artista pintou esta figura masculina, e nos concentremos em sua intenção de capturar aquilo de mais importante na figura humana.

De cima para baixo, observamos que a cabeça é representada lateralmente, enquanto o olho parece voltar-se para o espectador da obra, portanto, frontalmente, assim como o tronco desse homem. Da cintura para baixo, no entanto, a lateralidade retorna e se completa nos pés, voltados para frente.

O que quero dizer é que numa mesma figura representada há uma sugestão de decupagem que busca somente o mais importante da figura mostrada, planos próximos e closes daquilo que interessa à capacidade de identificação daquele povo.

Mas há uma sofisticação ainda maior.

A percepção protocinematográfica inata à qual já me referi encontra neste fragmento de um túmulo em Tebas uma decupagem narrativa incrivelmente próxima do que viria a ser a construção do cinema a partir de 1915.

Em primeiro lugar, não interessou ao artista escolher somente um ponto de vista e reproduzir o que via de forma total e linear. Ao contrário, preferiu dispor a floresta em volta do tanque de peixes e aves de modo que o espectador dê igual atenção a cada um dos elementos. Assim, quando passemos o olhar pela pintura, construímos em nossa mente uma cena totalizada por meio de fragmentos, ou cortes, que nos trazem aquilo que é importante para a obra.

Forçosamente, seremos compelidos a construir uma cena total a partir de um “amontoado” de imagens em diferentes ângulos, que, em nosso poder de construção mental, tornam-se um todo natural.

Não preciso me aprofundar, além disso, na pintura de retábulos e vitrais durante a Idade Média, que tinham por objetivo contar a paixão de Cristo aos fiéis analfabetos. E estas são apenas algumas relações sutis que identifico entre o Cinema e a História da Arte.

Tampouco pretendo elencar infinitos exemplos que caberiam, e que estão espalhados pelas décadas seguintes até o século XIX. Basta que nos lembremos da atração que Las meninas, de Velázques  exerceu sobre Foucault em seu ensaio sobre os pormenores da composição do quadro, e dizermos que, para além do estudo da composição estilística do espanhol estão, em primeiro lugar, uma disposição de caracteres cuidadosamente colocados numa mise-en-scène no mínimo teatral, para não dizer das marcações dentro de um set de filmagens. Além disso, o pintor que quebra a quarta parede ao dirigir seu olhar para o espectador, na verdade mira o casal real que pousa ele. Uma subjetividade nos faz os próprios monarcas e testemunhas passivas do pintor. Ao fundo, o reflexo do casal que pousa, portanto uma complexa encenação posta em termos cinematográficos antes que pudesse, sequer, haver uma noção de imagem em movimento.

Darei um salto cronologicamente quantitativo para relembrar de como Jacques Aumont me fez, com suas teorias, enxergar, de fato a sólida relação que o cinema estabeleceu com o final do Impressionismo.

Pretendo partir da confluência entre o fim da arte figurativa, o nascimento do cinema e a explosão da modernidade.

 

Cinema: a última pintura impressionista

A origem do cinema, em 1895, é senso comum a qualquer estudioso do assunto, mas sinto-me obrigado a retomar alguns lugares comuns, em princípio, para propor certos desvios sincrônicos que visam a explicar meus pontos de vistas.

É sabido que os irmãos Lumière não podiam imaginar, na verdade não imaginavam porque nem sequer acreditavam em sua própria invenção, mas, hoje, poucos são os assuntos, as áreas do conhecimento que não podem ser associados ao cinema para serem tratados.

Como uma relação fenomenológica entre o ser e seu corpo reflexivo, o cinema tornou-se a carne do registro da modernidade. Isto porque o cinema é, sobremaneira, filho da modernidade que representa. O cinema nasceu sob a égide das grandes revoluções tecnológicas da modernidade, e, como um édipo freudiano, superou o pai e tornou-se o repositório se sua memória crítica. Não se pode pensar o curso da humanidade ao longo do último século sem se recorrer às fantasmagóricas imagens que ela produziu sem saber que criava um diário da ascensão e queda do ideal de um futuro corroído pela aniquilação da personalidade, do ego hedonista incrustado na romântica flânerie baudelairiana.

Na segunda metade do século XIX o mundo viu emergir uma irremediável tendência pela idolatria científica. O Positivismo, a Psicanálise, o avanço tecnológico das estradas de ferro, do telefone, da luz elétrica e das engenhocas que enchiam salões como foi o caso da Great Exhibition of the Works of Industry of all Nations no Crystal Palace de Londres, por exemplo, já em 1851, que mostrava ao mundo as últimas novidades da ciência. Assim,

Com a revolução científico-tecnológica ocorrida a partir de 1870, uma série de fatores passaram a alterar drasticamente a vida das pessoas que habitavam as cidades da Europa e dos Estados Unidos. A estrutura de produção industrial […] deu lugar à formação de grandes conglomerados produtivos. Por suas dimensões, essas indústrias exigiam o investimento de capitais privados […]. A chegada da eletricidade certamente transformou as percepções. […] os aparelhos de produção/reprodução visual de imagens entraram na corrente da industrialização massiva no momento mesmo em que acenaram com capacidade de gerar lucro e de expandir mercado (COSTA, 1995, p. 2).

Jacques Aumont (2004) afirma que os Lumière foram o último dos impressionistas, com seus filmes, o que podemos tomar como verdade se nos debruçarmos sobre a história dos irmãos inventores do advento cinematográfico tal e qual vemos hoje[3].

Não busco investigar uma relação consciente entre o cinema de Lumiére e o Impressionismo, acredito que tal enfoque seria frustrado em sua raiz, já que é pouco provável que sequer os irmãos Lumiére amassem a arte, mesmo que de longe. O que há é uma relação de sincronicidade repousada sobre um fenômeno social inerente ao período que compreende toda a segunda metade do século XIX.

 

A vaga similitude (excepcional, aliás) que pode ser notada entre O jogador de cartas, rodado no “Castelo Lumière” e, digamos, os Jogadores de cartas, de Cézanne, não significa grande coisa, não mais que um duvidoso encontro entre O almoço do bebê e O almoço na relva (AUMONT, 2004 p. 28).


 Jogadores de carta (1892), de Paul Cézanne  e Fotograma de O Jogo de cartas (1896), de Irmãos Lumière

 

Aumont (2004) afirma que os irmãos Louis e Auguste Lumière jamais acreditaram que seu cinematógrafo algum dia seria o iniciador de uma nova arte com autonomia própria. Para eles, a câmera não era mais do que um invento de avanço tecnológico cuja importância seria logo suplantada. No entanto, o cineasta Jean Renoir, filho do pintor impressionista Renoir, em entrevista a Eric Rohmer[4], não concorda que as “tomadas de vistas” dos Lumière sejam mera reprodução mecânica ou mesmo transmissão de consciência tecnológica. Ele crê que os primeiros filmes que capturam cenas da vida cotidiana, a exemplo dos quadros de seu pai, “não se tratam de ‘enlatados’ para serem enviados como registro da história ao futuro”.

Para Jean Renoir (in ROHMER, 1968), os Lumière estariam criando uma nova forma de expressão pura em arte, já que, “mesmo que a filmagem seja puramente documental, há um tipo de recriação da atmosfera da época”, que ele crê que no século XX pode ser chamada de “obra de arte”.

Dito isto, e considerando o que até agora descrevi, é possível se observar a relações de pintura e filme a seguir.

 

A primeira imagem reproduz uma tela da série de Claude Monet sobre a estação de trem de St. Lazare, pintada em 1877. O fotograma ao lado é tomado de um dos primeiro filmes rodados pelos irmãos Lumère[5], em 1895. Em ambas as imagens, como observa Aumont (2004) é possível notar uma relação de simetria no enquadramento, uma busca pela reprodução do plano geral capturando em detalhes a maravilha do mundo moderno: os trilhos, a máquina a vapor, a população burguesa em sua relação de dependência do progresso, e a luz. Em Monet vemos as pinceladas características da escola impressionista servindo para criar a impressão da variabilidade da luz sobre os objetos, em Lumière temos a luz – neste caso, necessariamente a luz natural –  como elemento principal para que se imprima na película a imagem do trem.

 

Nas figuras acima temos, outra vez, a cena burguesa do cotidiano, em que por trás repousa o fetichismo capitalista e o mundo do prazer fugaz.

Lumière constitui uma verdadeira iconografia da burguesia ascendente por si mesma; não é de se surpreender, portanto, que ele pareça encontrar pintores que […] elaboravam, também eles, uma iconografia do burguês em todos os seus estados […] (AUMONT, 2004, p.28).

Não se pode, contudo, afirmar que tais filmes já tencionavam constituir de forma consciente uma linguagem própria ao cinema. No documentário citado anteriormente, Jean Renoir irá elucubrar sobre como é interessante a forma como muitas obras foram pintadas a partir de escolhas inconscientes, atribuindo às tomadas de vistas dos Lumière uma aleatoriedade de escolha dos planos e assuntos. Neste ponto, Henri Langlois (in ROHMER, 1968) discorda, alegando que dada a limitação da metragem da película, restrita a, no máximo, um minuto de tomada, os planos eram estudados de forma a captarem o máximo do assunto quanto possível, e de maneira o mais interessante possível. Segundo ele, “não há nada mais chato que a inauguração de um monumento, reis e rainhas e coisas do tipo. O incrível nos Lumière é que eles não nos mostram a história, e sim a vida”.

Aumont (2004) aponta, finalmente, os Lumière como o último impressionista, posto que não há mais a necessidade de se tentar reproduzir o movimento da luz e da natureza em quadros, quando se tem a própria natureza em movimento diante de si numa película cinematográfica. A fidelidade observada nas vistas de Lumière termina por colocar um ponto final nos obsessivos estudos dos pintores de sua época, e contribui para o surgimento de novas escolas no campo das artes visuais que irão buscar outros métodos estéticos para a representação do olhar do artista.

Henri Langlois, aponta que

Toda a evolução da arte desde os meados do século XIX desemboca em Lumière. Toda a pintura impressionista, toda a grande arte da época, tudo e mais vital, novo e inovador passou pelo cinema graças a eles. O Impressionismo buscava o imponderável da vida, assim como seus filmes. Quando um pintor pinta uma sociedade, ele pinta uma sociedade que não existe, imaginária, que é a sua visão. Eis a força do cinema: pela primeira vez se pode ver a sociedade como ela é (LANGLOIS, in ROHMER, 1968).

A partir do retrato fidedigno do mundo impresso na película dos Lumière, um vasto campo se abriu para a produção de imagens em movimento. Assim, para Langlois (ROHMER, 1968), se por um lado temos a vida do homem comum e a ultrapassada burguesia nestes filmes, por outro, novos expoentes da arte cinematográfica começam a surgir naquele tempo, para imprimirem neste meio suas impressões e percepções muito pessoais. É o caso de Meliés, ilusionista por profissão que, ao contrário dos irmãos inventores, irá desenvolver uma linguagem lúdica e fantasiosa, algo possível para o novo suporte. Porém, isto não me cabe explorar no âmbito deste trabalho.

O cinema ganhou o mundo e formou diversos profissionais cada qual com seu conceito próprio de utilização. Nos Estados Unidos, ganhou uma linguagem formal e coerente que permitiu contar histórias mais sofisticadas que o teatro e a literatura. No entanto, após um salto de mais ou menos 25 anos, observamos, novamente, os recursos visuais deste invento usados para o registro da sociedade e do mundo que a abrigava, não mais de uma forma ingênua e primária como seus inventores o fizeram, mas de uma forma mais crítica e esteticamente pensada e elaborada, com uma gramática (ou antigramática) própria.

 

Pré-cinema como forma de domínio técnico

Ao longo da década de 1910, o cinema conheceria a distinção entre a linguagem formal e narrativa cunhada por D. W. Griffith e seus contemporâneos de Hollywood, e as experiências de radicalidade dos artistas visuais, pintores, poetas e cineastas europeus.

Segundo o cineasta Luis Buñuel (in XAVIER, 1983), o filme é um instrumento libertador, de subversão da realidade, de limiar do mundo subconsciente. Ele ressaltou que a invenção do cinema tem por função viabilizar a expressão da vida subconsciente que está tão profundamente presente na poesia.

Para se compreender melhor este conceito, cabe interpretar o que Buñuel entendia por “espectador”. Se o cinema, em seus primórdios, era duramente achacado pela crítica – por vezes composta de cronistas da mais explícita má vontade, que frisavam a condição de produto de entretenimento barato e fadado às classes menos instruídas (AUMONT, 2004) – por condicionar a plateia de uma sala de cinema à mera contemplação de cenas que travestiam a realidade com romantismo frívolo, Buñuel enxergava o mecanismo cinematográfico como

[…] aquele que mais se assemelha à mente humana, ou melhor, mais se aproxima do funcionamento da mente em estado de sonho. Jacques B. Brunius assinala que a noite paulatina que invade a sala equivale a fechar os olhos. Começa então na tela, e no interior da pessoa, a incursão pela noite do inconsciente; como no sonho, as imagens aparecem e desaparecem mediante fusões e escurecimentos (BUÑUEL, in XAVIER, p. 336).

Seguindo este raciocínio, Buñuel refletiu sobre questões relativas à narrativa como complemento de imersão onírica enfatizando que na experiência da sala de cinema abolem-se as noções de tempo, espaço e toda a continuidade inerente à obra exibida. Essa noção, uma vez contrastada com o cinema comercial, assume papel de oposição contra o padrão realista de Hollywood.

Na prática, o que Buñuel executou em sua obra de estreia, Un chien andalou (1928), pode ser assistido como um encadeamento de planos experimentais – considerando a ousadia da ação, os elementos de cena e as posições de câmera –, que uma vez ordenados ao critério do autor, passam a dar margem a uma infinidade de interpretações que transcendem à experiência surrealista na acepção plena do termo. Neste filme, Buñuel não organizou o material filmado de acordo com uma linha narrativa obrigatória, mas construiu uma teia subjetiva de maneira a possibilitar a interação. Como veremos mais adiante, o documentário experimental (autoral), que nasce a partir desses experimentos, buscou inspiração exatamente no surrealismo, no formalismo russo e no dadaísmo.

Contemporâneo de Buñuel, Jean Epstein, avesso ao naturalismo e ao racionalismo, que julgava serem as reais influências do cinema mudo (AUMONT, 2004, p. 91), defendia que, ao filmar, não se devia contar nada, mas indicar. Para ele, “[isso] permite o prazer de uma descoberta e de uma construção” (in XAVIER, 1983, p. 271). Levado ao âmbito da criação, este raciocínio acaba por se tornar uma condição sine qua non presente nas obras de criadores que aspiravam ao rigor investigativo de um aparato tecnológico – o cinema – que, ainda nos anos 1920, vivia no limiar da arte e do entretenimento popular e popularesco. Negando o cinema industrial de Hollywood mais uma vez, Epstein proclamava que o artista não deveria olhar a vida, mas penetrá-la. Eis a chave do antagonismo presente na relação do cinema americano, fruto da linguagem embebida de romance naturalista, e o cinema europeu experimental e de poesia, batizado com uma boa dose de engajamento. Não só isso, mais do que optar pela provocação ao instinto do espectador, como postulava Buñuel, para Epstein (in XAVIER, 1983, p. 272) o princípio da metáfora visual é exato na vida onírica ou normal, sendo que na tela este princípio se impõe.

Tendo em vista o documentário experimental, se partirmos da premissa de que se trata de um gênero de filme, em que um dos aspectos é o apelo ao nosso inconsciente a partir de imagens “abertas”, será correto afirmar que outra característica importante deste estilo em relação à narrativa convencional do cinema é a quebra da hierarquia entre planos e sequências, pois a extinção dessa hierarquia torna-se um facilitador de indução para nós, espectadores, pois o conjunto final passa a não impor uma continuidade que nos dirija ao longo do filme. Porém, para chegar a este resultado, foi necessário repensar a forma do filme e a organização de planos, para criar um efeito de sentido estético que permitisse experimentar o retrato da metrópole de maneira poética e sensorial.

O cineasta Sergei Einsenstein formulou algumas teorias de montagem cinematográfica que buscam solucionar tal questão. A principal delas desejava metodizar o sistema de acabamento dessa montagem de maneira que todos os elementos do filme, do cenário às atuações, passando pelos objetos de cena e pelo figurino, constituíssem uma lógica estética que evitasse a aleatoriedade. Isso, segundo ele (ANDREW, 2002, p. 50) criaria uma forma estética a que chamou “montagem intelectual”, em que os planos de um filme deveriam ser organizados de maneira a produzirem um efeito dialético a partir da colisão entre imagens aparentemente distintas entre si, permitindo ao espectador refletir sobre o que vê e sobre o apelo do que vê.

 

Porque a arte é sempre conflito:

[…] porque é tarefa da arte tornar manifestas as contradições do Ser. Formar visões justas despertando contradições na mente do espectador, e forjar conceitos intelectuais acurados a partir do choque dinâmico de paixões opostas.

[…]

A lógica da forma orgânica versus a lógica da forma racional produz em colisão,

a dialética da forma artística.

[…] Arte é sempre conflito, de acordo com sua metodologia (EISENSTEIN, 2002, p. 50).

 

Se no cinema convencional a hierarquia servia para padronizar certos “setores” de um filme, no cinema poético e experimental essa relação de subordinação e ordem não tem função.

***

Fiz uma digressão estratégica para estabelecer as bases do pensamento do cinema experimental, ou avant-guarde, para esclarecer as raízes do estilo que obedece a uma estética experimental para retratar a realidade de maneira poética e ao mesmo tempo elucidativa. O filme experimental não busca o escapismo do drama hollywoodiano, e se utiliza de recursos técnicos originais, que nos desprendem do olhar natural, visam ao choque estético que traduz aos olhos do espectador muito mais do que o faria, caso seguisse a mesma forma dos Lumière no trato da vida cotidiana.

A Primeira Guerra Mundial parece ter traído o ideal positivista, colocando em cheque o otimismo cientificista de uma sociedade fadada ao progresso. Com isso, os artistas, que antes encarnavam uma psicologia social em franca evolução, utilizando-se de suportes distintos da arte, como a pintura, a escultura e a literatura, passaram a enxergar o filme – e dele se apropriaram – como o meio ideal e mais direto de expressão e comunicação com a massa.

A investigação proposta por esses artistas mudaria drasticamente todas as formas de expressão, e numa fase um pouco adiantada do dadaísmo, por volta de 1920, o uso exclusivo da película cinematográfica era uma tentativa de solucionar algumas inviabilidades impostas pela pintura ou pelas colagens.  Mencionando seu amigo e colaborador Viking Eggeling, Hans Richter conta que

We had both turned to the film for the solution of a problem we had encountered in painting. I had no intention whatsoever of continuing to make films, but […] the possibility of orchestrating time as I had orchestrated form, drew me to the film more and more. For the last forty years I have persuaded the film as a means of artistic expression, alongside my activities as a painter (RICHTER, 1978, p. 197)[6].

Segundo Kracauer, o cinema experimental, de fato, nasce na avant-guarde europeia dos anos 1920 que, por sua vez, inspirava-se sobremaneira na arte contemporânea. O cinema passa a ser uma pintura em movimento.

It was painting in motion, “drawings brought to life”. But Richter-Eggeling`s abstractions initiated only one of the trends which make up the avant-guarde. With headquarters in Paris, this very complex movement was also influenced by surrealism in literature and painting[7] (KRACAUER, 1997, p. 177).

Alguns dos documentários experimentais dos quais trataremos, de fato utilizaram uma estrutura por vezes surrealista no retrato que fazem da metrópole.

A partir do momento em que artistas das escolas dadaísta, futurista, cubista  e formalista passaram a experimentar em seus filmes a mesma liberdade já explorada na pintura, o cinema começou a constituir uma linguagem alternativa consciente, mais próxima das artes visuais. Estes artistas consideravam o novo meio de comunicação uma autonomia de expressão e renegaram o ato de se contar estórias por meio de um filme (KRACAUER, 1997, p. 180). Portanto, buscavam realizar um “cinema puro”, que não dependesse dos recursos dramáticos inerentes ao teatro ou à literatura folhetinesca. Em suma, um cinema muito distante do entretenimento americano.

Béla Balász salientava que

The angle is what gives all things their shape and the same thing taken from different angles often gives a completely dissimilar Picture. This is the strongest means of characterization the film possesses; and it is not reproduction but genuine production. The cameraman`s vision, his artistic creative work, the expression. Of his personality, can be seen in the screen projection[8] (BALÁSZ,1952. p. 47).

Sigfried Kracauer (1997, p. 181), apontava como intenção do cineasta de vanguarda a organização do material filmado de acordo com o ritmo inerente aos seus impulsos, mas do que uma imitação de padrões da natureza. A questão do ritmo nos leva a refletir a respeito da composição rítmica de imagens, que Richter e Eggeling já haviam desenvolvido no cinema abstrato, mas logo passa a ser um elemento de pesquisa exaustiva por parte de cineastas como Dziga Vertov e Walter Ruttman, que curiosamente vão voltar suas câmeras para a cidade, a metrópole. Novamente buscando aquele registro do cotidiano almejado pelos Lumière, e antes dele, pelo impressionistas, havendo uma relação íntima entre a evolução do homem e a evolução da máquina e da arte. “A arte do movimento e o ritmo visual da vida e da imaginação”, diz Kracauer (1997, p. 184), que ainda irá observar que os artistas pretendiam, com genuíno uso dos recursos cinematográficos – e tão somente – detalhes interessantes e vistas inusitadas para estimularem a visão sensível da audiência. Algo similar que notamos na intenção impressionista.

Em 1903, Frederick Armitage, precursor da cinematografia americana registrou os arredores do Lago Rudson a partir de um iate em movimento, capturando vistas de Manhattan. O efeito conseguido por Armitage por vezes nos lembra dos antigos quadros impressionistas, pois a velocidade (intencionalmente acelerada) do filme faze com que a paisagem se torne turva, indefinida, destituída de contornos claros. Desta forma temos um belo retrato de Nova Iorque aos modos da moderna pintura europeia.

 

Fotograma de Seeing New York by Yatch (1903), Frederick Armitage. (Fonte: Cinema Avant-Garde vol. 5, Magnus Opus DVD)

 

Ex-funcionário de Thomas Edison, Edwin Staton Porter, em 1905, empreendeu um experimento até então raro. Naquele tempo, as filmagens tinham de, necessariamente, acontecer sob a luz do dia, posto que do contrário, dificilmente a imagem seria capturada com qualidade. Com a evolução das emulsões fotográficas, o filme foi gradativamente sendo adaptado para outras condições de luzes. Desta formar, Porter filma Coney Island, também em Nova Iorque, à noite. O efeito conseguido pelas luzes dos parques de diversão em contraste com o fundo totalmente negro nos transmite um efeito visual muito peculiar, que dialoga com a forma pictórica das artes visuais na virada do século.

Fotograma de Coney Island at night (1905), de Edwin Porter. (Fonte: Coleção Avant-Garde vol. 5, Magnus Opus DVD)

 

Em ambos os casos, não estamos mais no período de descoberta em torno do uso do cinematographo, mas num período posterior, em que os cinegrafistas, agora não mais meros operários, permitem-se deliberadamente experimentar novas possibilidades. O mais notável neste ato é o assunto escolhido por tais cinegrafistas para experimentarem tomadas e ângulos inusitados. A intenção permeia sempre o olhar para a cidade, os prédios, as luzes e a máquina.

 

Fotograma de Westinghouse work series (1904), de George Bitzer. (Fonte: Cinema Avant-Garde vol. 5, Magnus Opus DVD)          

 

Fotograma de Mechanical principles (1930), de Ralph Steiner (Fonte: Cinema Avant-Garde vol. 5, Magnus Opus DVD)

 

Na primeira imagem temos um plano geral em plongé em que a câmera parece estar presa numa espécie de guindaste que desliza em panorâmica por sobre uma das fábricas da Westinghouse dos EUA. O filme, realizado por George inovou no assunto, isto é, no retrato de operários do capitalismo em plena atividade em meio à moderna maquinaria e, sobretudo, no ato de retratar esta cena em plano sequência, de um ângulo inusitado e inventivo. Em 1904, ano desta produção, não havia ainda ferramentas como travellings e gruas.

Em seguida, um filme abstrato de exaltação ao progresso. Ralph Steiner, cineasta americano, filma em 1930 uma longa sucessão de polias, engrenagens e rodas dentadas em pleno funcionamento. O movimento da máquina adquire um status de fetiche e o deslocamento dessas peças, algumas um tanto estranhas, evolui em um movimento sensual do inanimado. Neste momento, já não vemos mais meras peças mecânicas, uma vez que o efeito de sentido desejado pelo realizador acontece na medida em que passamos a observar os delicados movimentos da máquina, que já ocupa outra função dentro da microestrutura do filme.

O orgulho americano pela máquina e pelo progresso é mais explícito e foi o responsável pela evolução, do ponto de vista técnico, da arte cinematográfica que marcaria a Europa.

The film camera went to America from Europe. Why did film art nevertheless come from America to Europe? Why did Hollywood rather than Paris hit on the new and specific forms of expression of the new art? This was the first time in history that Europe learnt an art from America.

The reason is that the film is the only art born in the epoch of capitalism[9] (BALÁSZ, 1952, p. 48).

Sendo os Estados Unidos um país jovem, sem tradição na arte e com uma estrutura social e econômica distinta, o uso do novo meio de expressão rapidamente foi assimilado com inventividade e fins capitalistas.

 

Considerações finais

Em seguida, sabemos do marco do filme expressionista alemão e dos filmes dadaístas de Man Ray, mas, por ora, creio que o objetivo de se estabelecer uma relação entre o nascimento do cinema no contexto da História da Arte tenha sido preliminarmente e parcialmente satisfeita.

O fato a ser considerado é que, ao longo dos anos 1920, as distâncias entre o cinema de entretenimento e o filme de arte aumentaram drasticamente.

Nos Estados Unidos, conhecemos a construção da fábrica hollywoodiana de grandes clássicos comerciais. Por seu turno, a Europa viu seus cineastas empreenderem um verdadeiro exame e uma inegável releitura de seus movimentos das artes visuais. O surrealismo de Buñuel e Dali, o cinema construtivista dos soviéticos e o filme abstrato dos alemães dão conta de uma intrínseca simbiose entre o filme e a pintura de vanguardas. Na segunda metade dos anos 1920, surgiriam, como consequência da reflexão em torno da modernidade e do uso inventivo do filme, as “sinfonias”, documentários sobre as grandes metrópoles que, por um lado enalteciam a era das máquinas e das faraônicas cidades modernas, por outro, eram veladas críticas ao desmantelo da personalidade do indivíduo numa era em que não se admitem erros ou más escolhas, sob risco de se ser obliterado pelo ritmo do futuro.

Futuramente, gostaria de propor um estudo mais aprofundado sobre o papel dos documentários de vanguarda na construção do imaginário do homem moderno, tanto no âmbito coletivo, nas tomadas de grande multidões em pleno rush, quanto nos filmes oníricos, que exploram os limites da psique de uma sociedade composta por indivíduos que foram destituídos do romantismo de uma vida plena para se tornarem peças na engrenagem amorfa da modernidade.

 

 

Referências

ANDREW, J. Duddley. As principais teorias do cinema: Uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

 

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Do Iluminismo aos movimentos modernos. 5 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

ARMITAGE, Frederick S. Demolishing and Building Up the Star Theatre. 1901. Filme.

 

______. Seeing New York by yatch. 1903. Filme.

 

AUMONT, Jacques (org.). A estética do filme. 9 ed. Campinas: Papirus, 1995.

 

______. O olho interminável: Cinema e pintura. São Paulo: CosacNaify, 2007.

 

BALÁSZ, Béla. Theory of film, character and growth of a new art. Londres: Dennis Dobson Ltd, 1952.

 

BITZER. G. W. New York subway. 1905. Filme.

 

BUÑUEL, Luis. Cinema, instrumento de poesia. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp.331-337.

 

CHARNEY, Leon; SCHWARZ, Vanessa R. Cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

 

COSTA, Fávia Cesarino. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995.

 

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Joge Zahar Editor, 2002.

 

GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2009.

 

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010.

 

ROHMER, Eric. Louis Lumière. 1968. Telefilme.

 

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

 

 

[1] Este ensaio é um compilado das ideias desenvolvidas na primeira parte do livro, ainda inédito, A modernidade vai ao cinema: relações entre História da Arte e o filme, de Donny Correia.

[2] É poeta, crítico e pesquisador; mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela USP e autor dos livros Cinematographos, de Guilherme de Almeida (2016e), Zero nas veias (2015), Balletmanco (2009), entre outros. Contato: donnycorreia@usp.br

[3] Embora Thomas Edison tenha o crédito de pioneiro da imagem em movimento, tendo patenteado o Kinetoscópio já em 1894, foi somente com os Irmãos Lumiére que o mundo conheceu o espetáculo cinematográfico tal qual conhecemos até hoje: uma sala de exibição coletiva, em que se paga para ver as projeções. O kinetoscópio possibilitava a projeção de filmes curtos para somente uma pessoa de cada vez, enquanto o cinematógrafo podia filmar e projetar filmes para plateias inteiras.

[4] Programa de TV francês Louis Lumière, conduzido pelo cineasta Eric Rohmer, entrevistando o cineasta Jean Renoir e o diretor da Cinemateca francesa, à época, Henri Langlois, produzido em 1968.

[5] É importante deixar claro que quando nos referimos a “filmes de Lumière”, na verdade estamos nos referindo a tomadas de vistas provavelmente realizadas por operários da fábrica dos irmãos. Os estudos dessa área jamais foram capazes de provar que August e Loius Lumière tenham, de fato, operado o cinematographo para registrar boa parte dos filmes que conhecemos hoje. Trata-se de uma autoria virtual, portanto.

[6] Nos voltamos para o filme para solucionar um problema que havíamos encontrado na pintura. Eu não tinha a intenção, até então, de continuar a fazer filmes, mas […] a possibilidade de orquestrar o tempo, assim como eu havia orquestrado as formas, levou-me para os filmes cada vez mais. Tenho, nos últimos quarenta anos, insistido no filme como meio de expressão artística, tanto quanto é a minha atividade de pintor Tradução minha).

[7] Era a pintura em movimento, “desenhos que ganhavam vida”. Mas as abstrações de Richter-Eggeling iniciaram somente uma das direções que compõem a avant-guarde. Com base em Paris, este complexo movimento foi também fortemente influenciado pelo surrealismo na literatura e na pintura. (Tradução do autor desta dissertação)

[8] O angulo é o que dá forma às coisas, e as mesmas coisas tomadas de diferentes ângulos, com efeito dão formas diferentes ao filme. Este é o mais forte meio pelo qual o filme opera; e não se trata de reprodução, mas uma genuína produção. A visão do operador da câmera, seu trabalho criativo artístico, a expressão de sua personalidade, pode ser vista somente projetada na tela. (Tradução do autor desta dissertação)

[9] A câmera de filmagem foi da Europa para a América. Por que, não obstante, a arte do filme veio da América para a Europa? Por que Hollywood, e não Paris, alcançou primeiro a nova e específica forma de expressão da nova arte? Foi a primeira vez na história em que a Europa aprendeu uma arte com a América. A razão é que o filme é a única arte nascida na era do capitalismo. (Tradução do autor desta dissertação)