Uma crítica a visão burguesa da caridade: Estudo do monólogo “Caridad” de Jacinto Benavente – Rodrigo Conçole Lage
Uma crítica a visão burguesa da caridade: Estudo do monólogo “Caridad” de Jacinto Benavente)
Rodrigo Conçole Lage[1]
Introdução
Jacinto Benavente, prêmio Nobel de Literatura de 1922, foi um dos mais importantes dramaturgos espanhóis do século XX. Dos monólogos que escreveu somente “Caridad” (1911), “De alivio” (1897), e “En este Madrid” (1903), tem como protagonista uma mulher. Além disso, todos os três foram escritos especificamente para uma atriz. No volume 24 do Teatro somos informados de que “Caridad” foi “escrito expressamente para a eminente atriz D. Rosário Pino”[2] (BENAVENTE, 1924, p. 293, tradução nossa). O fato de termos reunidos na peça aqui estudada uma mulher como protagonista e o tema da caridade não pode ser visto como uma mera coincidência. A reunião desses dois elementos é uma característica essencial de sua produção e atende a finalidade educativa que move seu trabalho:
Se o teatro de Benavente tem como dizem alguns de seus críticos uma grande força educativa, esta a possui o Amor que aparece como tema central em quase todas as suas comedias. Consequencia direta de sua opinião sobre a mulher, que, se existe, é porque tem um só fim: amar e amar com fruto, sendo mãe. Suas melhores personagens são femininas. (…) Se a mulher é o eixo central da obra de Benavente, o Amor é a razão de existir desse eixo e, portanto, o tema de suas obras. Pelo amor as mulheres se engrandecem ou se debilitam; por ele triunfam ou se denigrem; por ele são felizes ou perdem a vida. Mas fora dele não tem, não tem por que ter, de acordo com Don Jacinto, vida e utilidade (ARVIZU, 1963, p. 46, tradução nossa).
Assim, partindo do pressuposto que o monólogo também tem um caráter educativo relacionado a ideia de caridade, dividimos nosso trabalho em quatro seções. Na primeira discutiremos a etimologia da palavra; na segunda apresentaremos um resumo da peça acompanhado de alguns comentários; na terceira apresentaremos o gênero literário a que pertence e, por fim, examinaremos a crítica feita a noção de caridade. Pelo fato de ser um texto desconhecido do público brasileiro apresentamos no apêndice uma tradução do monólogo, acompanhada do texto em espanhol, esperando assim contribuir para uma maior divulgação de sua obra.
1- Discutindo a origem etimológica da palavra caridade
Não pretendemos apresentar um estudo exaustivo dos diferentes sentidos encontrados nos autores latinos, ao longo do tempo, para a palavra amor. Nosso objetivo é apresentar os diferentes termos e significados encontrados no latim, visando a demonstrar como o termo caridade possui um sentido próprio. Nele são encontrados três palavras diferentes para a ideia de amor, cada uma delas com uma acepção diferente. São elas: “amor”, “dilectio” e “caritas”, de onde se origina o termo caridade. E temos também dois verbos para amar: “amare”e “diligere”. O desenvolvimento do sentido desses vocábulos está fortemente relacionado ao cristianismo, a sua ideia de amor e a necessidade de se traduzir os termos gregos, “eros” (ἔρως)e “ágape” (ἀγáπη).
A primeira delas (amor) tem o sentido de se gostar de alguém, assim como no português, que manteve a mesma grafia. Por exemplo, segundo Maria Simone Marinho (2008, p. 26), “Ambrósio[3], na maioria das vezes, relaciona amor a um ardor ou a uma afeição apaixonada”. Assim, do ponto de vista cristão o termo está relacionado ao amor carnal, isto é, ao amor no sentido profano, que está contraposto ao amor espiritual, que está relacionado a caridade. Nesse sentido, havia uma visão pejorativa desse sentimento, pois, o “amor era compreendido pelos autores cristãos como a tradução latina de éros e com o sentido revestido de paganismo, devendo ficar, portanto, à margem do mundo cristão” (Ibid., p. 27).
Contudo, segundo a referida autora, vamos encontrar autores cristãos que não fazem, diferenciação entre os termos. Ela afirma, por exemplo, que para santo Agostinho, bispo de Hipona, “não há diferença entre amor, caritas e dilectio ou entre amare e diligere” (Idem). Essa visão igualitária dos termos será posteriormente adotada pelos autores cristãos. Seja como for, o que nos interessa é apresentar as diferentes concepções presentes na origem dos vocábulos, de modo que não aprofundaremos a questão por fugir ao objetivo de nosso estudo. Apresentaremos na sequência o sentido do segundo termo.
O termo “dilectio” originalmente foi uma tradução do grego “storge” (στοργη). O termo grego tem o sentido de afeição natural e é usado quase que exclusivamente para descrever o amor que se manifesta dentro de uma família, como o amor entre pais e filhos, por exemplo[4]. Segundo Maria Simone Marinho o termo latino “é um derivado tardio, desconhecido do latim clássico” (Ibid., p. 23). Mais tarde passou a ser utilizado, assim como o termo “caritas”, como tradução de “ágape”de modo que o sentido original foi substituído para um mais amplo.
E finalmente, temos a palavra “caritas”, ponto central de nosso estudo. Não pretendemos abordar todos os diferentes significados que recebeu ao longo do tempo porque nosso objetivo é examinar o apresentado por Benavente em sua peça. Atualmente é usada com um sentido muito restrito, pois, como afirma Maria Simone (p. 53), “o conceito de caridade, nos nossos dias, termina por significar somente um dos aspectos do termo latino: «opera caritatis»”. Mas, se observarmos o termo grego ágape veremos que tem um sentido muito mais rico. Segundo Elton Moreira Quadros (2011, p. 169):
A primeira acepção do amor-Ágape é um dar primazia a Deus e, num segundo momento, temos o amor entre os homens como o princípio e como o mandamento, por excelência, da conduta dos cristãos. Mas, não o amor Eros (e seus ciúmes) ou mesmo o amor Fília (e seus interesses), aqui, no amor Ágape, temos um amor doação. (…) Sendo assim, Ágape enquanto amor cristão se revela em algumas formas: caridade e misericórdia. Nesse sentido, o exercício desse amor-ágape pressupõe benevolência, complacência, compaixão, indulgência e perdão ilimitados.
Não pretendemos aprofundar a modificações de sentido promovidas pelo cristianismo porque Benavente não trabalha com os sentidos teológicos do termo e, dentre eles. Mas, por esse pequeno resumo da questão, podemos ver que, apesar de alguns teólogos terem adotado a ideia de que os três termos latinos têm o mesmo sentido, existe sim uma diferença de significado. Diferença que não desaparece com o surgimento das línguas neolatinas. Assim, aceitamos a ideia de que a definição de caridade está hoje restrita a noção de obras de caridade porque tais obras são uma conseqüência do amor cristão presente na palavra “ágape”.
Na sequência, examinaremos a peça com o objetivo de verificar se a noção de caridade presente na obra e, em particular, no discurso da protagonista, está ou não baseada nessa definição.
2- “Caridad” de jacinto Benavente: um resumo da obra
Atuando como um tipo de mestre de cerimônias, após se dirigir ao público cumprimentando-o, a protagonista defende a ideia de que, sejam ou não capazes de atuar na política, existe uma pasta ministerial na qual as mulheres atuariam de forma mais eficaz que os homens: a da Fazenda. Essa superioridade está baseada no fato de que, para se trabalhar nesse cargo, a habilidade mais importante é a capacidade de tirar dinheiro de todo lugar e nisso as mulheres são mais capazes. Na sua visão, os homens que atuam nesse cargo conseguem dinheiro porque utilizam agentes de pressão para obrigar as pessoas a dá-lo e a Guarda civil, ou seja, por meio da força.
Mas, a principal habilidade da mulher não consiste apenas em retirar o dinheiro, mas em fazê-lo sem que a pessoa do qual foi retirado o sinta. Além disso, se os homens são capazes de elaborar grandes empreendimentos, eles vão pedir a ajuda das mulheres quando se vêem em dificuldades para obter o dinheiro necessário para realizá-los. Com ironia ela zomba dos maridos de modo geral ao afirmar que, mesmo se opondo tantas vezes a essa habilidade feminina de conseguir dinheiro, quando é preciso eles recorrem as esposas. Como exemplo de métodos de obter o dinheiro ela se refere as subscrições e aos benefícios. Tais exemplos compravam, na sua visão, a superioridade da mulher em conseguir que os outros lhe dêem dinheiro.
Contudo, havia quem as censurasse pelo que chamavam de caridade mundana. E, para seu horror, havia quem renegasse a caridade porque estava condenada a desaparecer porque será substituída pela justiça. Porém, na sua opinião, mesmo que isso ocorra haverá espaço para o amor. Elas não seriam coisas opostas, até porque o mundo seria um lugar muito seco se houvesse somente a justiça. A partir de então ela faz um longo discurso em defesa do amor baseado na ideia de que se comparada a justiça a caridade é uma debilidade humana, uma verdadeira injustiça, quanto mais injusta mais santa ela é, assim coma a compaixão é o amor. A protagonista deixa implícito que os que defendem a justiça defendem a igualdade, enquanto o amor exige a desigualdade.
Isso ocorre porque a caridade faz com que os homens dependam uns dos outros, o que os leva a viver em comunidade. Nesse sentido são diferentes das feras, pois, por não dependerem umas das outras vivem isoladas e não existe o amor entre elas. Já entre os é o oposto porque a desigualdade faz parte da natureza. Essa ideia de que tudo é de todos pode estar associada ao principio cristão de que os que são ricos não devem ver seus bens como uma coisa sua, mas algo a ser usado em benefício do próximo. Portanto, a verdadeira justiça seria o amor. Mas, mesmo que chegue o dia em que a justiça impere isso não seria razão para se abandonar a caridade. Nem mesmo o fato de ser feita por vaidade, e não por amor ao próximo, seria uma justificativa para rejeitá-la. Isso se justifica pelo preceito cristão de que Deus reconhecerá os seus, fazendo assim dos preceitos cristãos a base de discurso em defesa da caridade.
A partir dessa defesa da motivação em detrimento do mero ativismo ela volta a defender a caridade porque só o fato de algo tão imperfeito como a caridade agir como se fosse uma perfeição já é algo digno de elogio. Além disso, se a justiça significa dar ao homem o que ele pede a caridade já o faz e, com isso, pode-se dizer que antecipa o dia da justiça. Se até esse momento o monólogo tinha um tom cômico, como se fosse , o discurso é interrompido e a personagem se dirige ao público transformando a platéia em coparticipante da peça:
“Eu houvera querido alegrá-las com chistes de bom tom; mas eu sei que hoje não viestes ao teatro para exibir vossa beleza nem vossas galas, nem nós os artistas viemos para exibir nossa arte, nem os autores para se vangloriar de talento. É uma festa de amor esta, e não soa bem o riso quando os irmãos em quem pensastes ao celebrá-la são pobres enfermos”.
Assim, o monólogo é uma peça que está sendo encenada para um público, formado possivelmente de burgueses endinheirados, que a organizou com o objetivo de arrecadar dinheiro para ajudar alguns pobres enfermos. Assim, podemos classificá-la como um tipo de teatro dentro do teatro tal como encontramos em muitas peças, como o “Hamlet”de Shakespeare. Por sua menção a atores e atores podemos supor que o monólogo pode ser visto como o número de abertura de um evento de caridade no qual vários artistas irão se apresentar para arrecadar dinheiro em favor do algumas pessoas necessitadas. Assim, pelo tom do discurso podemos classificar o monólogo como a apresentação de um comediante “stand-up”. A revelação desse fato é importante ao quebrar o caráter ilusório da peça.
O discurso inicial a respeito da capacidade das mulheres em conseguir dinheiro pode ser então entendido como uma espécie de brincadeira com as mulheres da platéia, mas também com os maridos que bancavam o luxo das esposas. E o próprio discurso em defesa da caridade contra os que a criticam adquire outro sentido. Diante do peso do cristianismo na sociedade daquele período não se pode negar que sua fala representa a mentalidade da classe social a que pertence. Assunto que será discutido na próxima seção deste artigo. Ao mesmo tempo, a crítica feita a caridade passa a ter outro tom. Para se defender da acusação de mundanismo ela afirma que as mulheres não estão ali para exibir sua beleza ou a de seus trajes, nem os artistas para se exibir e os autores para se vangloriar de seu talento.
Todos estariam motivados pelo amor ao próximo. Essa generosidade tem seu limite. Como quando, por exemplo, afirma “Além disso, minhas senhoras, as mulheres são tão caprichosas…, o vestido, a jóia, o brinquedo caro… Que remédio! Também a indústria e o comércio têm de viver”. Olhando a partir desse ângulo sua fala se torna mais um elogio e defesa da generosidade das mulheres da platéia que organizaram aquela apresentação, assim como dos atores e autores que estão envolvidos na realização do evento. Na sequência, como as mulheres da platéia estão desejosas de ajudar os pobres, ela vai apresentar um método para obterem o dinheiro a ser doado. Como os homens estão sempre elogiando uma mulher elas deveriam pedir uma doação a todos os que disserem que é uma flor. Se ele for bem educado e foi sincero no elogio, ela afirma que ele dará o dinheiro, mas se for mal educado dirá alguma grosseria (uma proposta sexual). Nesse caso, deve chamar “a um guarda, se lhe exigirá uma multa, e que essa multa se aplique às nossas obras de caridade, já que nós temos que suportar essas impertinências, que, na verdade, não desagradam de todo, nós, as mulheres bonitas”. E com um humor ferino propões “que as feias, por amor próprio, pagarão de seu bolso para fazer crer que a elas também lhes dizem elogios”.
Para concluir, propõe que todas as vezes que forem comprar algum artigo de luxo se imponham uma espécie de imposto voluntário. E, ao mesmo tempo, sugere que peçam um desconto para o comerciante. O que nos leva a aprofundar na próxima seção a questão do sentido da caridade na peça. O final da peça é a melhor demonstração de que ao apresentar o discurso o dramaturgo pretendia fazer uma crítica a burguesia, a contradição entre as palavras e as ações, pois não foi sem motivo que os críticos classificaram sua caridade como uma caridade mundana.
A “comédia stand-up”: definindo o gênero do “Caridad”
A chamada “Stand-Up Comedy”, nome ligado ao fato de que o comediante normalmente se apresenta em pé, é um dos gêneros de comédia. Frederico Fonseca Soares informa que (2013, p 483), segundo as pesquisas do comediante Léo Lins ele “teve suas origens nos mestres de cerimônia, mais especificamente no mestre de cerimônia inglês Philip Astley, em 1770, ao inaugurar o Astley’s Royal Amphitheatre of Art”. Contudo, tais como outros gêneros dramáticos, foi sofrendo diferentes transformações até chegar ao formato atual. Assim, tal como o conhecemos hoje, ele surgiu no final do séc. XIX, na América do Norte, tendo sua origem nos diferentes tipos de entretenimento popular existentes naquele período:
As raízes do stand up está no vaudeville, o teatro de revista e nos monólogos de humoristas, do teatro dos grandes centros urbanos na América. Onde os comediantes eram vistos como meros contadores de piadas que esquentavam a platéia com um número de abertura ou mantinham o público entretido durante os intervalos. Os pais da comédia stand up eram os mestres de cerimônia, como eram chamados na época de ouro do rádio, Jack Benny, Fred Allen e Bob Hoe, que vieram do Vaudeville e geralmente abriam seus programas com monólogos ou números cômicos. (PAIVA, 2014, p. 41).
Como não requer cenários, nenhuma caracterização de personagem – o que elimina a necessidade de qualquer tipo de acessório –, ou efeitos especiais, somente um microfone, o gênero normalmente segue o formato de “um monólogo, com piadas, casos, tiradas e, principalmente, observações sociais do cotidiano” (SOARES, 2013, p. 481). Piadas cuja criação “exige esforço etnográfico dos humoristas” (Idem), pois utilizam nas piadas elementos culturais específicos de seu cotidiano social. Nesse sentido, Benavente adota as características básicas do gênero ao utilizar o formato do monólogo e criar uma protagonista que passa a impressão de seguir o mesmo processo na construção de sua fala.
Assim, o dramaturgo procurar criar uma personagem que é uma reprodução fiel dos comediantes reais. Realidade presente no próprio fato da protagonista agir como um mestre de cerimônia. Frederico Fonseca Soares caracteriza o comediante “stand up” como sendo uma pessoa audaciosa “porque foge da explicação óbvia da realidade e confecciona uma visão particular, às vezes absurda, para compreender a coisa em si, da sua existência, tudo fruto da sua subjetiva e criativa forma abstrata de enxergar o que está além da coisa apresentada (…)” (Ibid., p. 482). Mas, para a construção do humor é necessário que o comediante leve o público a se identificar com essa visão particular; o que é outro elemento desse tipo de comédia.
A identificação do público com a realidade descrita é uma das poderosas armas quetornaram esse gênero um fenômeno. O público se vê e se ouve no palco, e ri de simesmo, com o humorista. Que fala justamente de fatos verídicos e comenta ocotidiano (PAIVA, 2014, p. 48).
Essa identificação se dará por meio das piadas. Como já foi dito, no início do monólogo a protagonista faz uma brincadeira a respeito das mulheres servirem para trabalhar na política por sua capacidade de arrecadar dinheiro, mesmo com alguma oposição dos maridos. Mais tarde, vamos encontrar outras brincadeiras que deixam claro que o público é formado de pessoas ricas. Além disso, vamos encontrar as diferentes referências a mulher (a questão da beleza e da feiúra ou aos elogios masculinos, por exemplo) por causa do público feminino e, subentendesse, por serem as organizadoras do evento. Por tudo isso, podemos dizer que há uma tentativa de levar o público a se identificar com o que está sendo dito.
A partir do que foi dito podemos dizer que, ao contrário de outras formas de humor, ele obrigatoriamente está ligado “ligado à realidade vivida pelo humorista e pelos seus espectadores, dentro de uma atualidade abordando de forma crítica e verdadeira tudo que podemos considerar grandioso o prosaico dentro de uma determinada cultura” (Soares, 2013, p. 488). Essa realidade leva a presença de temas sexuais, políticos, religiosos e sociais, entre outros, que estão entre os principais assuntos em qualquer sociedade. Segundo Frederico Fonseca Soares (2013, p. 491), “o humor stand up se difere das outras formas de humor por tratar essencialmente de questões políticas, sociais ou prosaicas de forma particular, íntima e crítica, sem censuras ou vínculos institucionais midiáticos”.
Essa liberdade adotada pelo comediante em suas críticas explica porque no monólogo, apesar de um aparente elogio as caridosas mulheres, sua atitude é vilipendiada com brincadeiras sobre a cantada dos homens ou sobre as mulheres feias, por exemplo. Tais comentários podem ser vistos como fruto da observação da comediante o que tem paralelo com a atuação dos verdadeiros comediantes. Observando as características da “comédia stand up”, e a atuação dos comediantes, vemos que o dramaturgo que foi capaz de trabalhar com perfeição na criação de uma peça dentro da peça, reproduzindo com perfeição a realidade de sua encenação.
Tal fato demonstra o talento do dramaturgo e sua capacidade de trabalhar com os mais diferentes gêneros teatrais. Na sequência, examinaremos a peça discutindo o modo como o autor critica a forma como a burguesia faz caridade.
3- Uma crítica da visão burguesa da caridade
O primeiro ponto a ser examinado, se queremos discutir a critica a prática da caridade pela burguesia, é o fato de que a peça deixa claro que as organizadoras do evento para angariar dinheiro para os pobres doentes (presumindo que foram as mulheres que organizaram) são pessoas ricas. Eu nenhum momento o monólogo apresenta as mulheres pedindo dinheiro aos maridos para dar aos pobres, o que seria natural se o desejo fosse unicamente à caridade, ou oferecendo o próprio dinheiro. Só a protagonista, de forma crítica, sugere que elas doem dinheiro dizendo: “que as feias, por amor próprio, pagarão de seu bolso para fazer crer que a elas também lhes dizem elogios”.
De qualquer forma, vemos que apesar do discurso sobre o amor o monólogo está centrado na capacidade feminina de conseguir dinheiro e não no amor ao próximo e/ou a Deus, no altruísmo, no desprendimento ou na compaixão. Não há um desejo de tentar combater a desigualdade com a caridade, mas de fazê-la para que a desigualdade não se torne ainda maior do que já é. Além disso, ao sugerir uma forma de obter dinheiro para a doação a protagonista sugere que peças aos homens que as elogiarem na rua, e não aos próprios maridos. Sem contar a sugestão das feias doarem dinheiro para fingir que foram elogiadas.
Por tudo isso, alguns criticavam a caridade dizendo que era desnecessária, classificando-a de mundana. Contudo, a protagonista chega a utilizar um discurso religioso para defender a ideia de que não se pode ser contra a caridade porque alguns a fazem com falsidade. Ela afirma que “«Deus reconhecerá aos seus», como disse o fanático”. Tal afirmação está embasada em diferentes passagens da Bíblia, com destaque para Mateus 7:17-23 (BÍBLIA, 2012, p. 1254):
17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus.
18 Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons.
19 Toda a árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo.
20 Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis.
21 Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.
22 Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?
23 Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade.
Assim, a ideia é que todos devem fazer a caridade porque os que não fizerem pelas motivações certas serão punidos por Deus. Nesse sentido, o que importa é a motivação de quem faz e não a dos outros. Mas, apesar do caráter defensivo de sua fala, ela não deixa de conter uma crítica. O fato de se apropriar da ideia não impede que se refira aos que defendem tal princípio como sendo fanáticos, e não como pessoas religiosas ou tementes a Deus. Por meio de tal classificação ela parece rejeitar o princípio que parece defender. Assim, como entender sua fala? Podemos entendê-la como a defesa do direito de condenar quem a pratica por razões erradas, assim como está sendo feita pelo próprio comediante.
Por mais injustificada que seja a condenação de sua prática não se deve compactuar com a caridade mundana dos outros. Mesmo que traga benefício a alguém ou porque no futuro tal pessoa será punida por Deus. Somente um fanático defenderia que deve ser feita independentemente de sua motivação, na certeza de que no futuro quem a pratica por motivos errados será punido, ela deve ser feita pelos motivos certos. Mas, isso não impede que também esteja criticando os que se apropriam do discurso religioso para defender as ações de uma pessoa, condenando de antemão qualquer crítica que lhe seja feita.
Seria uma forma de manutenção do “status quo” e um modo de impedir qualquer tentativa de mudança pela busca da transformação interior. Ou seja, uma atitude anti-revolucionaria. Como pudemos ver na segunda parte desse trabalho a protagonista faz um discurso em favor da caridade pelo fato de algumas pessoas defenderem que ela é desnecessária onde existe a justiça. Havendo até quem a chame de caridade mundana. Partindo do princípio de que Benavente está fazendo uma crítica da forma como a burguesia a praticava podemos dizer que o dramaturgo estava defendendo o ponto de vista de quem criticava. Mas quem eram os críticos? Segundo Maria Roza de Arvizu (1963, p. 67, tradução nossa), ao longo do tempo a obra do dramaturgo passou por uma evolução que o aproximou da ideologia comunista:
Esta evolução, tem em algumas obras um sentido até político, sobre todo nas escritas depois da proclamação da segunda republica. Se patrocina nelas uma espécie de moral igualitária; e, se antes, o amor era a ética para todos os problemas da vida e a justificação de todas as soluções, agora, o trabalho, a igualdade de classes, o desprezo a classe alta, dá a tônica de uma sociedade que vai condenada ao comunismo.
Apesar da ausência de conceitos teóricos como classe ou burguesia, por exemplo, essa transformação ajudaria a explicar sua crítica a caridade mundana. Ao mesmo tempo, podemos ver na afirmação de que eles defendem uma justiça sem amor uma apresentação irônica da forma caricata com que a burguesia apresentava, ou via, os comunistas. Ao apresentar a ideia de que justiça e amor devem estar juntos, o dramaturgo pode estar apresentando seu próprio ponto de vista sobre a questão. Ou seja, pode estar criticando os que, no seu desejo de mudar a sociedade, tem uma postura extremada, se guiando unicamente pela razão na busca de resultados, dispostos até mesmo no sacrifício dos que deveriam ser ajudados
Benavente estaria assim defendendo a ideia de que os fins não justificam os meios. Que meios errados não levarão ao fim almejado. Desse ponto de vista, entre os que combatem as práticas mundanas da classe alta teríamos uma espécie de conflito entre a justiça e o amor de modo que onde um existe o outro não pode estar presente. Em contraposição a essa ideia a comediante, servindo de porta voz das ideias do dramaturgo, defende que a existência da justiça não torna o amor desnecessário porque não existe incompatibilidade entre os dois. Pelo contrário, podemos dizer que eles se complementam.
“Que digo? Há quem renega até mesmo da caridade! Dizem que a caridade está chamada a desaparecer quando no mundo reinar a justiça, e da justiça tenha o homem tudo o que agora há de pedir e hão de conceder-lhe por compaixão. É possível; mas eu acredito que quando a justiça reinar sobre a terra, ainda haverá espaço para o amor”.
Mas porque a justiça torna a caridade desnecessária. Ao defendê-la a protagonista afirma ser uma debilidade e uma atitude injusta. Seria uma fraqueza de quem a pratica, porque a pessoa não seria dura o bastante para aplicar a justiça, e por isso acabaria sendo injusta. Por outro lado, ela existe porque há uma desigualdade entre os homens. O texto se menciona diferentes tipos de desigualdade, deixando implícito que seria absurdo defender a idéia de igualdade nessas condições. Tal fato se ajusta ao pensamento burguês.
Por outro lado, segundo Velerio Arcary (s/d, p. 1), os socialistas têm como objetivo “a distribuição da riqueza entre todos os que trabalham, eliminando a renda do Capital”. Seguindo uma linha socialista Benavente procura denunciar a falácia da ideia de que, em vez de tentar inutilmente acabar com a desigualdade, é preciso que os que podem ajudem os necessitados. O amor nos move a ajudar os necessitados, mas isso não deve ser um obstáculo para a luta contra a desigualdade.
Conclusão
A partir do estudo etimológico da palavra caridade, e do gênero teatral da peça, vemos que a fala da protagonista oculta uma crítica ao modo como certos segmentos da sociedade viam e praticavam essa caridade. Ao fazer do monólogo uma espécie de teatro dentro do teatro o dramaturgo pôde construir um discurso que, aparentemente, se ajustava a ideologia do hipotético público que organizou a festa beneficente (na qual a apresentação serviria de abertura do evento); mas que escondia uma crítica à suas ações. Nesse sentido, o caráter pedagógico dessa obra segue o padrão sua dramaturgia. Esperamos que nosso estudo contribua para um melhor entendimento de sua produção e possa contribuir para sua divulgação, assim como inspirar novos estudos.
Referências:
ARVIZU, Maria Rosa de. 109 f. Las mujeres en la obra de Benavente. These (Master’s Degree of Arts in Spanish) – Loyola University Chicago, Illinois, 1963. Disponível em:
<http://ecommons.luc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2789&context=luc_theses>.
ARCARY, Valerio. Igualitarismo marxista e liberdade humana. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/eso/valerio/igualitarismo_marxista.html>.
BENAVENTE, Jacinto. Caridad. In: Teatro. Tomo vigésimo cuarto. 2ª ed. Madrid: Librería de los Sucesores de Hernando, 1924. 293-299 p.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012.
LEWIS, C.S. Os quatro amores. São Paulo: Mundo Cristão, 1983.
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. 400 f. Amor, caritas e dilectio– Elementos para uma Hermenêutica do Amor no Pensamento de Nicolau de Cusa. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/9688/5/MSimoneMNogueira_Tese.pdf>.
PAIVA, Guto. Stand up comedy: Uma história no mínimo divertida. Jornalismo & Cultura, São Paulo, n. 5, p. 36-49, set. 2014.
QUADROS, Elton Moreira. Eros, Fília e Ágape: o amor do mundo grego à concepção cristã. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 33, n. 2, p. 165-171, 2011. Disponível em: <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/10173>.
SOARES, Frederico Fonseca. A leitura antropológica pelo humor stand up. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 35, pp. 480-492, 2013. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Frederico%20SoaresArt%20Copy.pdf>.
WIKIPEDIA. Rosario Pino. Disponível em: <https://es.wikipedia.org/wiki/Rosario_Pino>. Acesso: 28 jan. 2016.
Conferir a peça “CARIDADE”, de Jacinto Benavente, na janela Insulto ao público: peças teatrais
[1] Graduado em História (UNFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL). Professor de História da SEEDUC-RJ. Email: rodrigo.lage@yahoo.com.br. Itaperuna, Brasil.
[2] Ela nasceu em Málaga, em 1871, tendo falecido em 1933, na cidade de Madrid. Foi considerada uma das maiores atrizes da Espanha, do primeiro terço do séc. XX. Rosário se destacou por suas atuações nas obras dos irmãos Álvarez Quintero e nas do próprio Benavente, o que explica o fato de ter escrito essa peça especialmente para Rosário.
[3] Santo Ambrósio, bispo de Milão do séc. IV d.C, foi um dos grandes teólogos da Igreja Católica da chamada patrística.
[4] C. S. Lewis dedica o primeiro capítulo de Os quatro amores a esse tipo de amor. Os outros três são a amizade, eros e a caridade.