A sentinela noturna: uma leitura do poema “De uma foto”, de Carlito Azevedo – Valteir Vaz
A sentinela noturna: uma leitura do poema “De uma foto”, de Carlito Azevedo
Valteir Vaz*
(…) les regards tristes des sémaphores sous la pluie… (Blaise Cendrars)
Leiamos a seguir o poema “De uma foto”, do poeta carioca, Carlito Azevedo:
DE UMA FOTO
E é apenas foto, mas permite
olhar o jarro, e contemplar no jarro
a mão que em certo instante se dispôs
ao movimento-jarro, e ver na mão
a idéia-jarro acionando um feixe
de músculos, entanto existe um deus
que toda coisa unida estilhaça,
separa em mil.
(Apague a luz agora
pois logo o sol virá nos revelar
e ao jarro ali, suspenso na parede
como se presidisse alguma ordem
inabalável, e é apenas foto
de jarro sob o vidro e a moldura,
e esta metáfora, esta metafísica,
apenas sono, o corpo quer dormir)
Uma primeira versão deste poema apareceu na coletânea Sob a noite física[1], de 1996, e depois fora incluído, com ligeiras modificações, no livro Sublunar[2], uma nova seleção feita pelo próprio autor que, segundo ele mesmo, “melhor o ilude”. Sublunar compreende poemas escritos num arco de 10 anos – entre 1991 e 2001. Na sua primeira versão – em Sob a noite física –, o poema “De uma foto” estava dividido em duas partes, com ressonâncias mútuas entre elas, tanto no que diz respeito a aspectos sintáticos como também na completude de certas ideias nele expostas. A primeira seção estava anunciada pelo algarismo romano (I) que, logo após o título, encabeçava o poema; já a segunda (II) se antepunha ao dístico que ora inicia-se com o parêntese. Embora essas duas marcas tenham sido suprimidas da versão de que ora nos valemos, a mudança de tom de uma parte para outra permaneceu, como pretendo mostrar no decorrer desta análise.
Também foram eliminadas as reticências que preludiavam o primeiro verso do poema. Elas conferiam ao poema de Carlito a ideia de incompletude, de algo fractado, o que acaba corroborando para impressão de que parte daquilo que no poema estava posto – diga-se, seu conteúdo – ficara de fora. Se tais marcas gráficas estivessem localizadas ao final do poema, essa “impressão” certamente não nos ocorreria, haja vista a vasta recorrência de pontuação desta natureza, quase sempre associada àquela função primordial das reticências: a suspensão do pensamento. É como se de uma versão para outra o poeta desejasse acabar com aquela ideia lacunar que as reticências imprimiam à versão primeira de “De uma foto”. Ao eliminá-las, o poeta delimitou seu poema, tornando-o uma espécie de bloco monolítico, nos privando assim – ao menos no que diz respeito ao seu aspecto formal – daquela ideia de coisa incompleta ou, na expressão de Giorgio Agamben, de coisa perdida (res amissa). Contudo, o silêncio denotado pelas reticências – uma espécie de cesura inicial – já não mais figura na superfície formal desta versão derradeira de “De uma foto”. No mais, o poema permanece o mesmo.
“De uma foto” está todo construído em dísticos, somando um total de oito. As rimas são toantes. Os quatro primeiros dísticos estão conectados por enjambements que, na medida em que avançam, vão dando completude os versos anteriores, cujos sentidos, até que lhe ocorram os enjambements, permanecem incompletos. Nota-se, na passagem do sétimo para o oitavo verso (quarto dístico), uma pausa, representada pelo uso de uma vírgula no final do sétimo verso, impedindo assim o enjambement. Sintaticamente falando, tal vírgula marca a presença de uma espécie de pausa explicativa “(…) entanto existe um deus/ que toda coisa unida estilhaça,/separa em mil”.
O paralelismo de sentido, entre um verso e outro, também está presente na segunda seção do poema. Porém aqui, diferentemente da primeira parte, a ligação sintática entre eles não é tão precisa. Observa-se, à guisa de exemplo, a passagem do nono para o décimo verso: “(Apague a luz agora/ pois logo o sol virá nos revelar”. O verbo “apagar”, no imperativo, expressa ordem e o verso que se segue é a justificativa do porquê deste “apague a luz”. Mesmo não sendo explicita a ligação entre eles e não tendo a mesma intensidade daquela que ocorre na primeira seção, há sem dúvida paralelismo semântico aqui, o qual pode ser constatado pela oração coordenada explicativa, encabeçada pela conjunção “pois”: “pois logo o sol nos virá nos revelar”. Esses dois versos ainda têm a vantagem de informar que esse que fala no poema – diga-se o eu-lírico de “De uma foto” –, no momento de sua enunciação, não está sozinho, pois dirige uma ordem a outrem: “Apague a luz”. Corrobora essa ideia, além do imperativo do verso, o uso do pronome oblíquo “nos”.
Ainda na segunda parte, nota-se mais duas ocorrências de cesuras, uma no final do décimo quarto verso e a outra no do décimo sexto. No primeiro caso, a pausa funciona interrompendo o fluxo frasal: sua função, nesse ponto, é idêntica a de um ponto final. Já na segunda ocorrência, a parada breve, imposta pela vírgula, introduz uma explicação: “e esta metáfora, esta metafísica/ apenas sono, o corpo quer dormir”. O dêitico “esta” enfatiza dois elementos que, embora extratextualmente, são basilares para o entendimento do poema, quais sejam: a metáfora e a metafísica. Ironicamente, metáfora e metafísica, abstrações que são, não são passíveis de uma mirada contemplativa como sugere o uso redundante do pronome demonstrativo “esta”. Voltaremos a esse ponto.
Há também, no último verso de “De uma foto”, uma zeugma: o verbo “ser”, que aparece conjugado no décimo terceiro verso no presente do indicativo é omitido no décimo sexto. Nesse sentido, mesmo havendo interrupção de sentido, o elo sintático entre os dois últimos dísticos permanece e tem, justamente no verbo elíptico (16º), aí substituído pela vírgula, a sua ligação principal.
Quanto aos parênteses, que circunscrevem/separam toda a parte de “De uma foto” (do verso 9º ao 16º), eles têm por função marcar uma mudança de plano, cindindo o poema em dois blocos; função essa análoga àquela representada pelos algarismos romanos presentes na versão inicial do poema, como já mencionado. Essa mudança de plano é percebida da seguinte forma: eu lírico que antes falava no poema de improviso, se atentasse para uma outra realidade que não aquela que até então descrevia. A impressão que temos deste dístico “(Apague a luz agora/pois logo o sol virá nos revelar (…))” é a de o eu lírico se dá conta de que a noite já vai adiantada e que então é preciso apagar a luz e atender à necessidade deste “corpo [que] “quer dormir”. O parêntese inicial marca exatamente uma mudança essa mudança de plano no poema, o qual se mantém até o fim. O uso desse sinal gráfico também tem a vantagem de explicitar algo a mais: é como se o poeta se dispusesse a uma melhor clarificação daquele lampejo imagético que ele descreveu no poema.
Nesse lançar mão de uma imagem – mais especificamente “de uma foto” –, tornando-a a razão de ser do seu poema, se justifica a “vocação pictórica” de Carlito Azevedo. A esse respeito diz Lu Menezes, na orelha de Sublunar, que essa dita vocação do autor “entra em turbulência não o mundo como pintura (como tela ilusionista), mas a pintura como mundo e, portanto o mundo como vertiginosa superfície cromática”[3]. Se assim pensarmos, Carlito denuncia com “De uma foto” sua filiação àquela tradição poética que parece ter suas raízes na doutrina horaciana da ut pictura poesis – como a pintura, é a poesia. Talvez o melhor exemplo dessa ligação não seja exatamente “De uma foto”, mas um outro poema também de Sublunar: “As banhistas”. Nele, Carlito põe em correlação diferentes momentos em que o recorrente tema – o das banhistas – fora contemplado na tradição das artes plásticas. Desta feita, o poema se torna uma espécie de catálogo explicativo cuja referência à qual obra ele está se referindo fica a cargo do leitor, que de antemão é também um fruidor.
Aqui poderíamos acrescentar uma informação relevante, qual seja: a forte influência da poesia concretista sobre Carlito. Como se sabe, a poesia concreta tem entre suas peculiaridades a recusa em conceber a poesia enquanto somente resultado da palavra escrita, por isso apela para os aspectos como visual e sonoro do poema. Essa orientação para o verbo-voco-visual é correlata à vocação pictórica de Carlito Azevedo. Não sem razão, Haroldo de Campos, da tríade concretista, na orelha de Sob a noite física, identifica Carlito como um de seus “herdeiros”. Carlito, por sua vez, não refuta o mestre, mas, em resposta, se esquiva de generalizações: “sou herdeiro do concretismo como sou do modernismo, da poesia marginal e do surrealismo, pois, tendo vindo depois deles, não ignorei o legado de nenhum.”[4]
O título da coletânea – Sublunar: sob a lua[5] (?) – por si só nos remete a uma atmosfera em que o que está em jogo parece não ser mesmo a exatidão – não aquele lampejo luminoso que castiga os olhos de Dante no limiar do Paraíso e nem mesmo aqueles “fenômenos luminosos” que Lu Menezes aponta como marca distintiva dos poemas enfeixados sob aquela sigla. Em “De uma foto”, em correlação direta com o título da coletânea a que pertence, o que temos é certa imprecisão perceptiva, é o olhar cansado de um pintor impressionista sob um entardecer nublado. Sendo assim, é normal que o aquilo que poema retrata careça mesmo de certa exatidão. Não por acaso o eu lírico solicita a seu interlocutor: “apague a luz.” A luz que damos falta – e a palavra luz aqui deve ser compreendida como um sinônimo de precisão – não é aquela do espaço físico descrito no poema, que aliás não conhecemos, mas sim, a que está ausente da percepção do eu lírico ao descrever os objetos que compõem o universo do poema. Desta feita, ao lermos “De uma foto” temos a sensação de que o que ali está dito não é algo que esteja colocado com propósitos de uma máxima nitidez, mas talvez algo que esteja muito mais próximo da sugestão do que propriamente da exatidão, como pregava a estética impressionista. O poema está construído sob (o sublunar) signo da dúvida, da languidez perceptiva de um corpo cansado. Tudo se passa como se estivéssemos olhando para aquele jarro através dos olhos semicerrados do eu lírico, sem poder distinguir, com precisão, a exata forma desse objeto. Nesse sentido, aquilo que o eu lírico quer descrever – a fotografia “de jarro sob o vidro e a moldura” – deve ser compreendido na chave de hipotipose fracassada, que emerge de uma percepção também fraca, deixando uma impressão muito incerta daquilo que vê. Em suma: trata-se da exposição de uma imagem captada por um “corpo [que] quer dormir”. Talvez todas aquelas cesuras, silêncios, pausas, lacunas; em suma, tudo aquilo que torna dificultoso o fluir sintático do poema, e por extensão, a constituição imagética que fazemos daquilo que nele está representado, encontre, nessa hipotipose fracassada, um correlato bastante preciso.
Mas não nos distanciemos daquilo que há de mais exato no poema. Uma lição que nos vem desde Shakespeare é aquela de que não devemos nos afastar (muito…) daquilo que está dito numa dada obra. No segundo ato de Hamlet, o bardo inglês disse: “the play is the thing”[6]. Sendo assim, convém retornarmos à ideia central do poema de Carlito, qual seja: a experiência visual que o eu lírico tem da fotografia de um jarro e daquela misteriosa mão no jarro.
Mas, que mão é essa? Seria ela uma mão humana ou a mesma daquele “deus que toda coisa unida estilhaça, separa em mil”? Seria a daquele impiedoso deus bíblico que põe Babel abaixo, gerando assim, como represália, a confusão eterna entre todas as línguas do mundo? Essa mão contemplada no jarro reserva algumas ambiguidades. Não sabemos exatamente se se trata de uma mão de oleiro que está forjando esse jarro ou se é uma mão a manuseá-lo, enquanto utensílio doméstico. Seguem as incertezas.
A hipotipose, figura de pensamento, definida como uma “representação do objeto com esforço acentuado de traços, a fim de pô-lo como à vista do auditor ou leitor”[7] tem relevância neste poema de Carlito, embora a imagem que o poeta apresenta desta fotografia, repito, pareça ficar muito mais no âmbito da sugestão daquilo que ele, de forma lacunar e imprecisa, nos descreve. A marcação em itálico das palavras compostas “movimento-jarro” e “ideia-jarro” chama de imediato a atenção. Esse movimento e essa ideia parecem ser algo muito intrínseco à visão do lírico, se assemelhando mais a uma visão projetada pelo receptor sobre a foto, do que propriamente uma descrição da mencionada foto. Se no processo descritivo entra em jogo muito daquilo que é da ordem dos órgãos sensoriais, como nos lembra Maurice de Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da percepção, então essa carência descritiva do poema de Carlito mais se assemelha a um tipo de ilusão perceptiva do que propriamente uma visão objetiva. Mas, mesmo assim, parece ser também possível instaurarmos uma conexão entre essas duas expressões (movimento-jarro e ideia-jarro) e aquelas outras não menos enigmáticas que aparecem no penúltimo verso: “metáfora” e “metafísica”.
A “ideia-jarro” se relaciona com um conceito de jarro, para usarmos um recurso advindo da linguística Ferdnand de Saussure, trata-se de bipartir o signo “jarro” e focá-lo somente pela prisma do significado, deixando seu significante (a fotografia do jarro) de lado. Por outro lado, essa fetichização da ideia-jarro guarda estreito paralelo com a chamada metafísica, aqui pensada numa acepção muito próxima, senão idêntica, àquela que Platão conferiu a esse termo[8]. Resta estabelecer então o elo entre as palavras “movimento-jarro” e metáfora. Movimento-jarro poderia ser tomado como uma metáfora visual para aquele movimento da mão do oleiro que, já acostumado ao seu ofício, passa a fazê-lo sem muita hesitação, como que um movimento automático. O eu lírico de “De uma foto” parece ter subtraído esse movimento da sua própria função, deixando como em suspenso, como imagem cristalizada, tão somente o “movimento-jarro”.
Nos domínios da intertextualidade, não raro nos lembramos daquela contemplação similar que o poeta romântico, John Keats, nos revelou na sua famosa “Ode a uma urna grega” (Ode on a grecian urn)[9]. Keats quer nos convencer de que tem diante dos olhos a tal urna que descreve, na qual estão representadas cenas da vida campestre grega. E passa assim, com muita inventividade, a relatar aquilo que nela está representado, como quem deseja dar vida a todos aqueles seres. Também em “De uma foto” o eu lírico tem diante de si a fotografia de um vaso sob vidro e emoldura, pendurada na parede. É como se a própria foto causasse no receptor uma espécie de estranhamento, aqui pensado na acepção freudiana do “das unheimlich”[10], ou seja, como uma espécie de “estranho familiar” ou como preferiram traduzir os franceses, uma “inquietante estranheza”. A foto, como uma obsessão, parece ser uma sentinela que vigia o poeta até mesmo no escuro: “apague a luz agora/ pois logo o sol virá nos revelar/ – e o jarro ali, suspenso na parede/ como se presidisse alguma ordem/ – inabalável, (…).”
Diferentemente de Keats, o seu objeto de contemplação não lhe é acessível diretamente. Se para o poeta inglês há uma intenção em descrever em detalhes circunstâncias da vida rural, representadas na parte externa do objeto de contemplação, como quem de fato visualiza aquilo de descreve, em Carlito Azevedo, essa tentativa de exatidão não ocorre. O poeta não vê o jarro em si, mas tão somente uma foto desse objeto, o que é suficiente para impressioná-lo. Por isso, o eu lírico tem que pressupor não a movimentação dos corpos, a perseguição, a noiva inviolada do poema de Keats, mas sim o movimento/ideia de uma mão que “forja” o próprio jarro: “a mão que em certo instante se dispôs ao movimento-jarro”. Vê-se também, nesse mesmo ponto, reafirmada a concepção metafísica de Platão, anteriormente colocada: o poeta, segundo o pensador grego, deveria ser banido da República por fazer imitação de imitação, distante dois graus daquilo que é. O poema de Carlito segue, ironicamente, aquilo que a doutrina platônica condena: é a representação no poema de uma foto que, por sua vez, já é uma representação de um dado objeto do mundo empírico.
Isso, no que se refere à descrição, enquanto levantamento de algumas possíveis relações suscitadas pelo poema.
No que se refere à interpretação, existem algumas expressões-chave no poema. Palavras e expressão que têm uma participação maior na construção da ideia(s) geral(is) do poema. São elas: contemplar, entanto, um deus, o sol virá, presidisse alguma ordem.
Na primeira parte do poema, o eu lírico parece ter sido arrebatado por uma espécie de êxtase e busca um nome, chamando-o duplamente de “movimento-jarro” e “ideia-jarro”. A imprecisão que esse êxtase lhe causa, a partir da contemplação daquela mão no jarro, representado numa fotografia, não lhe permite minúcias descritivas. O momento é muito fugaz e ele parece vislumbrar somente o lampejo desse movimento. Desta forma, o eu lírico recorre a termos não muito específicos, o que ele tem à mão, como quem tem urgência em dar forma a um insight – pois ele logo poderá se esvair – são palavras por ele mesmo elaboradas: “movimento-jarro” e “idéia-jarro”.
Essa visão, embora fugaz e apreendida por um corpo sonolento, parece lhe causar um espécie de indizível alvoroço, sugerindo-lhe a possibilidade da existência de um deus, “que toda coisa unida estilhaça,/ separa em mil”. Instaura-se assim uma dualidade: aquilo que a mão do homem faz, “acionando um feixe de músculos” – ao que parece uma mão humana – um deus impiedoso destrói, separa em mil pedaços. Como no exemplo da Torre de Babel, anteriormente colocado, há por parte deste deus expresso em “De uma foto” represália, violência, desejo constante de destruição. Vê-se assim nesse perpétuo movimento inútil a mesma sina de um Sísifo, condenado que está a rolar uma grande pedra morro a cima, ad eternum. No entanto, segue a ordem das coisas, o homem – oleiro iludido – permanece nesse movimento tautológico sem sabê-lo inútil. Desta forma, a apreensão que o eu lírico tem deste evento estético – a contemplação da mão no jarro – pode ser concebida como aquela relação particular, por demais trabalhada, entre o humano e uma força maior, quiçá divina. Em termos religiosos diga-se também entre o criador e criatura.
Essa relação se estabelece justamente na oposição binária faz/desfaz. Mas, para além de ideias religiosas temos nesse poema de Carlito um exemplo convincente daquela noção de desejo advinda da psicanálise. Disse Jacques Lacan que o desejo é aquilo que move o homem, a sua ausência representa a morte do sujeito.
O desejo na acepção lacaniana está ligado a uma “pulsão de vida”[11] (pulsão por vida), como quem busca algo que, além de lhe ser desconhecida, também lhe é inapreensível. Tanto no poema como na exposição acima podemos depreender a ideia de um movimento (movimento-jarro) perpétuo que se encerra somente com a morte.
Mas essa dança lúdica de faz/desfaz precisa parar, o eu lírico corre o risco de ser apanhado no seu devaneio e ele é por demais revelador. Ele precisa voltar à ordem natural do mundo, se desenfronhar desse mundo de imprecisões. Por isso pede que apaguem a luz, que deixem vir a escuridão para manter velado seu segredo. Nesse sentido, ele também parece negar a sua visão, quando diz que aquilo que ele vira não passa de metáfora ou metafísica e que é fruto do sono, do corpo cansado que quer dormir, ou seja, do afrouxamento perceptivo das coisas do mundo.
O efeito de pausa, uma espécie de cesura involuntária que separa o poema exatamente ao meio – está espelhado na sua própria estrutura: como já dissemos, o eu lírico parece pedir um fôlego para voltar à sua realidade depois de passar algum tempo em estado de êxtase. A mudança de tom do poema é muito visível nesse ponto: tanto o espaçamento dado ao verso, que recua como nenhum outro na página, como também a presença dos parênteses corroboram nossa hipótese. Tudo isso indicando uma imgem em suspenso, como que provisória.
Contudo, o “movimento-jarro” e a “ideia-jarro” e o deus que tudo estilhaça – metáfora e metafísica –, que são projeções por conta do interprete, esvaecem. O que permanece ornado pela moldura, protegido pelo vidro e suspenso às alturas é apenas a foto do jarro, “como se “presidisse alguma ordem inabalável”. Moldura, vidro e altura são indícios de uma espécie de inacessibilidade direta, representam possíveis metáforas para esse deus que tudo que está feito desfaz e que permanece como uma sentinela da eternidade.
Talvez o grande propiciador daquele lampejo imagético, que afeta a percepção do eu lírico de “De uma foto” seja justamente o seu estado de sonolência. E a beleza do poema também depende deste estado. A comunicação estética se realiza pelo plano visual, embora, como já bastante enfatizado, seja o olhar duvidoso, como semáforos vistos sob a chuva. É nesse estado de vigília, em que reina uma espécie de letargia perceptiva, que esse eu lírico de Carlito Azevedo nos propicia esse exemplo de uma pequena epifania cotidiana.
Anexo
“Ode on a grecian urn”, de John Keats, seguido de sua tradução feita por Péricles Eugênio da Silva Ramos.[12]
Ode on a grecian urn
Thou still unravish’d bride of quietness,
Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunt about thy shape
Of deities or mortals, or of both,
In Tempe or the dales of Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbrels? What wild ecstasy?
Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter: therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear’d,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold lover, never, never canst thou kiss,
Though winning near the goal – yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!
Ah, happy, happy boughs! that cannot shed
Your leaves, nor ever bid the spring adieu;
And, happy melodist, unwearied, 12
For ever piping songs for ever new;
More happy love! more happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
All breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,
A burning forehead, and a parching tongue.
Who are these coming to the sacrifice?
To what green altar, O mysterious priest,
Lead’st thou that heifer lowing at the skies,
And all her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,
Or mountain-built with peaceful citadel,
Is emptied of this folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can e’er return.
O Attic shape! Fair attitude! with brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out of thought
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
“Beauty is truth, truth beauty,” – that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.
Ode sobre uma urna grega
Tu, ainda não violada noiva do repousa,
Criança, de que o silêncio e o tardo tempo cuidam,
Silvestre historiadora, que assim podes exprimir
Um florido conto com maior doçura do que a nossa rima:
Que legenda franjada de folhagens te rodeia a forma
De divindades ou mortais, ou de umas e outras,
Pelo vale de Tempe ou nos da Arcádia?
Que homens são esses ou que deuses? Que virgens relutantes?
Doida perseguição! Que luta por fugir?
Que frautas e pandeiros? Que furor selvagem?
É doce a melodia que se escuta; mas ainda,
Aquela que não se ouve; soai pois, ó brandas fraturas; 13
Não para o ouvido material, porém mais gratas
Tocai-nos para o espírito árias insonoras:
Formoso jovem sob as árvores, não podes mais cessar
Tua canção, nem estas árvores despir-se;
Jamais, jamais, afoito amante, podes tu beijar,
Embora próximo da meta – entanto não te aflijas;
Ela não pode se fanar: se não alcanças teu prazer,
Para sempre a amarás e ela será formosa!
Felizes, ah! felizes ramos! não podeis perder
As vossas folhas, nem dizer adeus à primavera;
Melodista feliz, infatigável,
Para sempre a modular cantigas para sempre novas;
Oh mais feliz amor! oh mais feliz, feliz amor!
Ardendo para sempre e sempre a ser fruído,
Arfando para sempre e para sempre jovem!
Amor acima da paixão dos homens que respiram,
Essa que deixa o coração desconsolado e farto,
A testa em fogo e ressequida a língua.
Quem serão estes que estão vindo para o sacrifício?
Para que verde altar conduzes, misterioso sacerdote,
Esta novilha que levanta para os céus o seu mugido,
Tendo os sedosos flancos revestidos por guirlandas?
Que pequenina urbe junto ao rio ou mar
Ou construída em montanha, com tranqüila cidadela,
Por esta gente é abandonada, esta manhã piedosa?
Cidadezinha, para sempre tuas ruas ficarão silentes,
Nem alma alguma voltará jamais para dizer
Por que razão está desabitada.
Ó forma ática! Atitude bela! Com um entrelace
De virgens e varões de mármore a cercar-te,
Com ramos de floresta e com pisadas ervas,
Tu, forma silenciosa! Como a eternidade
Além do pensamento nos perturbas: fria pastoral!
Quando a velhice destruir a geração de agora,
Tu permanecerás, no meio de outras dores,
Não das nossas, amiga do homem, a quem dizes:
“A beleza é a verdade, a verdade a beleza” – é tudo
O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber. 14
Bibliografia
Azevedo, Carlito. Sob a noite física – poemas. Rio de janeiro: Sete letras, 1996.
______________. Sublunar – (1991-2001). Rio de Janeiro: Sete Letras, 2001.
Antonio Candido. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editoral Humanitas, 2006.
Eagleton, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Marins fontes, 2006.
Keats, John. “Ode on a grecian urn”. In: Ode sobre a melancolia e outros poemas. Trad. Péricles Eugenio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2010.
Passos, Cleusa Rios Pinheiro. O outro modo de mirar – uma leitura dos contos de Julio Cortázar. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
Roudinesco, Elizabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Shakespeare, William. The complete works of William Shakespeare – Hamlet (Act II – Scene II). London: Wordsworth Library Collection. 200, p. 687.
[1] Azevedo, Carlito. Sob a noite física – poemas. Rio de janeiro: Sete letras, 1996
[2]Azevedo, Carlito. Sublunar – (1991-2001). Rio de Janeiro: Sete Letras, 2001.
[3] Azevedo, Carlito. Sublunar – (1991-2001). Rio de Janeiro: Sete Letras, 2001.
[4] Entrevista de Carlito ao Caderno Ideias, do Jornal do Brasil, de 14/12/1996.
[5] Sublunar: adj. 1 que se encontra abaixo da Lua ou entre a Terra e a Lua, 2 que pertence à ou está sobre a Terra. Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2004. p. 26.
[6] Shakespeare, William. The complete works of William Shakespeare – Hamlet (Act II – Scene II). London: Wordsworth Library Collection. 2007, p. 687.
[7]Antonio Candido. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editoral Humanitas, 2006, p. 134.
[8]O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das ideias; e estas contrapõem-se à matéria obscura e incriada.
[9] Para conferência, reproduzimos o poema de Keats na parte final deste trabalho.
[10] Conforme nota do tradutor inglês da obra de Freud a palavra alemã “unheimlich” significa aquilo que não é doméstico, caseiro, o que não é simples, rude. Numa nota do seu livro O outro modo de mirar, Cleusa Rios P. Passos resume o termo da seguinte forma: “Do ponto de vista semântico, “inquietante estranheza”, conceito largamente estudado por Freud, “Unheimlich” em alemão, apõe-se a “heimlich”, “heimisch”, “íntimo”, “do lar”. O íntimo recalcado. Esse sentimento representa, no fundo, o desejo “produzido pelo retorno de alguma coisa familiar que deveria ter ficado escondida, secreta, não se manifestar. p. 10.
[11]Segundo explicação contida no Dicionário de psicanálise de Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, “Lacan não opôs uma filosofia do desejo a uma biologia das paixões, mas utilizou um discurso filosófico para conceituar a visão freudiana, que julgou insuficiente. Assim, estabeleceu um elo entre o desejo baseado no reconhecimento (ou desejo do desejo do outro) e o desejo inconsciente (realização no sentido freudiano).
Com isso, ele diferenciou o desejo da necessidade mais do que fizera Freud. Através da idéia hegeliana de reconhecimento, Lacan introduziu, entre 1953 e 1957, um terceiro termo, ao qual deu o nome de demanda. Esta é endereçada a outrem e, aparentemente, incide sobre o objeto. Mas esse objeto é inacessível, porquanto a demanda é demanda de amor. Em outras palavras, na terminologia lacaniana, a necessidade, de natureza biológica, satisfaz-se com um objeto (o alimento), ao passo que o desejo nasce da distância entre a demanda e a necessidade.” p. 147
[12]Keats, John. “Ode on a grecian urn”. In: Ode sobre a melancolia e outros poemas. Trad. Péricles Eugenio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2010, pp. 46-51.
* É professor de Comunicação e Expressão junto ao curso de Jogos Digitais, da FATEC São Caetano do Sul (SP). Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre as representações do hibridismo na obra escritor paranaense Wilson Bueno.