Reflexão sobre o processo de trabalho “Em busca do próprio clown” – Guilherme Freitas de Oliveira
Reflexão sobre o processo de trabalho “Em busca do próprio clown”
Guilherme Freitas de Oliveira*
“Essa busca de seu próprio clown reside na liberdade de poder ser o que se é e de fazer os outros rirem disso, de aceitar a sua verdade. Existe em nós uma criança que cresceu e que a sociedade não permite aparecer; A cena a permitirá melhor do que a vida.”
Jacques Lecoq
Esta reflexão é realizada a partir do processo desenvolvido na disciplina de teatro de rua, onde a professora Priscila Genara Padilha trabalhou os procedimentos clownescos da prática de Jacques Lecoq, e além de sua própria experiência teve também como base o trabalho dos clowns do grupo Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais. Sendo o clown um ancestral das manifestações populares de rua, estava lançada a proposta, desenvolver o estado clownesco e realizar uma parada de rua, misturando todas essas técnicas.
O PROCESSO
Tendo em vista como seria o processo, embarquei nessa empreitada. Nunca tive experiência com clowns, apenas tinha uma visão geral de palhaços de circo e de festas infantis. Meu pai trabalhava como animador de festas quando eu era criança e por vezes ele se vestia como um “palhaço” usava nariz, perucas e roupas coloridas. Eu achava que para ser palhaço bastava fazer os outros rirem de exageros e palhaçadas, como cambalhotas, piruetas e brincadeiras bobas. Não enxergava a essência, nem me interessava na época. Foi então que comecei a fazer teatro, conheci clowns e vi um mundo novo, cheio de curiosidades, e este tipo cômico começou a me interessar. Entrei no curso de artes cênicas, e percebi a possibilidade de aprofundar meus estudos. Quando estava no segundo semestre na disciplina de técnicas do ator I, foi proposto que montássemos um monólogo. Criei um personagem que trabalhava como palhaço animando festas, quase no final do processo mudei de ideia, entrei em uma crise, não conseguia fazer nascer àquele personagem que possuía seu estado clownesco e tinha uma vida difícil, eu não vivi na pele este “estado”. Enfim criei outro personagem e finalizei o monólogo, mas aquela inquietação que senti não passou. A vontade de trabalhar o estado clownesco em mim só aumentava mais ainda. Não tinha realizado nada especifico sobre o assunto, surgiu então à matéria optativa de teatro de rua no quarto semestre, com o estudo do clown. Fiquei empolgado. Começamos as aulas e nada dos exercícios oferecidos me pareciam diferentes das práticas em outras disciplinas corporais. As coisas se confundiram na minha cabeça os exercícios eram simples, mas tinham algo de novo que não percebia. Exercícios de foco, níveis, ritmos, exploração de todo corpo, etc. Fomos expostos ao ridículo imitando animais, com um detalhe, tinha que ser de verdade, sério, não era uma brincadeira. Depois veio a cena, o ponto de concentração era ficar no palco, somente isso. O tempo ia passando e dúvidas me bombardearam, foram então apresentadas as teorias de Jacques Lecoq, Federico Fellini e Luiz Otávio Burnier.
Um clown ou um palhaço? Dúvida um tanto frequente que foi se esclarecendo ao longo do processo, e como o que diz FEDERICO FELINNI.
Tenho sob os olhos, entre outras muitas, uma definição do clown feita por meu conterrâneo Alfredo Panzini, no Diccionario Moderno: “CLOWN – palavra inglesa (pronuncia- se cláun) que quer dizer rústico, rude, torpe, indicando depois quem com artificiosa torpeza faz o público rir. É nosso palhaço.”.
Mas também aqui existe a mesma miserável diferença do termo estrangeiro que enobrece a coisa. O palhaço é mais de feira e praça, o clown, de circo e palco. Um bom acrobata é um clown, isto é, quase um artista, e julgará imprópria e ofensiva a expressão palhaço. Mas clown designa também o palhaço. […] Bem o clown encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado irracional do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em cada um de nós.
É uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador. É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, deformada, e vê a sua imagem torpe. É a sombra.
Realmente é nosso lado mais frágil, o lado que não queremos mostrar – nossas vergonhas e defeitos expostos para o publico. Isso me trouxe mais conflito, e agora como fazer rir e ao mesmo tempo ser sincero o suficiente para mostrar meus defeitos? Uma tarefa árdua e dolorida, uma das coisas mais difíceis que já procurei experimentar, tende a um trabalho mais pessoal.
Desde o começo tínhamos que ser curiosos a todos os detalhes da sala. Um dos exercícios explorados consistia de uma triangulação. Procurar os detalhes, através do próprio nariz, identificá-los, comunica-los, retornar ao objeto e seguir a procura. Explica Rubens de Souza Brito (1980, p.80) estudioso de circo:
O público é o vértice de maior peso no triangulo. É o cúmplice na representação. É o centro dela. É para ele que se conta a historia, portanto ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que um ou os outros dois vértices do triangulo (as personagens) desconhecem.
Esse é o principal exercício do palhaço em cena, a triangulação. Para exercer esse trabalho a professora Priscila Genara Padilha em seu método sugeriu diversos jogos, desenvolvendo em nós essa capacidade.
Demoramos a entender, que além de pessoal o processo era também coletivo.
Um fator importante é o jogo com o outro, esta triangulação se torna muito mais eficaz. Só então que descobrimos a importância de trabalhar em grupo, estar sempre em sintonia com os demais. A exemplo outro jogo, todos sentado de frente para o publico, nosso objetivo seria passar sentimentos como, felicidade, tristeza, carinho, e medo, o riso, o choro, e a “fofura”. Consistia em olhar o público, sorrir passar esse sorriso para o colega, receber e passar a diante até chegar ao extremo esse sorriso, e depois retornar ate restar apenas um pequeno sorriso. Da mesma forma com os outros sentimentos, nesse jogo víamos a construção da evolução de um sentimento sendo composto por todo o grupo.
Enfim, fazíamos diversos exercícios, mas os mesmos funcionavam apenas em alguns momentos, às vezes nem chegávamos ao objetivo. Pois esquecíamos uns dos outros, deixamos a energia se dissolver e o jogo não se estabelecia. Muitas vezes não fomos generosos. Pensando em desenvolver o próprio clown, acabávamos por trabalhar individualmente.
Ser clown significa ter vivenciado um processo particular, também difícil e doloroso que lhe imprime uma identidade e que faz sentir-se como membro de uma mesma família. Um clown quando olha nos olhos de outro, encontra algo que também lhe pertence, que une, que constitui uma cultura comum entre eles e que somente outro clown sabe o que é. Nesse sentido, podemos falar de uma família de clowns (BURNIER, p. 209-210).
A partir do momento que esta “família” se estabeleceu, percebemos uma verdade concreta no que fazíamos, estávamos apoiados uns nos outros. Então veio o nariz vermelho! Vejo o ato de por o nariz como um ritual de concentração e sintonia de energia estabelecida entre você, o nariz e principalmente seus “familiares”, até que o nariz te puxa e, PUFT!! O mundo é outro, o universo do clown é inteirinho cheio de possibilidades, ele reage com a estranheza, é tudo novo. O clown estabelece uma reação conflituosa com o mundo que o cerca. E isso é aos olhos do público de suma importância.
Até sairmos para rua só tínhamos a professora como público, que representou para nós o papel do Monsieur Loyal, o dono do circo:
O suposto “dono do circo” para onde o clown pretende ingressar. Esta é a anedota fundadora de seu trabalho. Essa figura, representada pelo professor ou diretor do clown, joga com ele numa relação de poder estabelecida a priori. Trata-se do patrão que manda em seu empregado. O clown, humildemente, segue suas orientações e suas ações são avaliadas por essa autoridade. Entretanto, não é preciso assumir tão radicalmente essa figura. (PADILHA, p.06)
Nossa professora nos colocou, nesse momento, na experiência profissional, nos inserindo o conhecimento nascente do processo do clown no circo. Utilizou esse método para didaticamente nos ensinar o papel do clown.
E, quando fomos de fato enfrentar um público, vimos à dificuldade de fazê-los rir, ainda mais que não utilizamos fala nenhuma, um fator em destaque neste processo desde o começo fazendo com que trabalhássemos mais as expressões do corpo. Mesmo assim voltamos empolgados deste primeiro contato com o público. E mais dispostos a trabalhar nosso número.
Nosso segundo contato com o público foi quando encontramos duas crianças, que acompanharam todo o ensaio, percebemos quais brincadeiras funcionavam e quais não funcionavam. A sinceridade e ingenuidade das crianças, nesse dia, serviram como forte laboratório de nossa pesquisa. Nada que fazíamos para elas parecia engraçado.
Foi então que conversamos sobre a seriedade e sinceridade desse trabalho, a brincadeira deve ser de verdade, uma grande lição nesta caminhada. Pois, quando apresentamos nosso primeiro ensaio aberto, levamos em nossos corações a sinceridade desse trabalho e então conseguimos efetivamente arrancar risadas do público.
Foi ótimo sentir a reação do público, percebê-lo junto a nós, jogando com a gente, a energia que “rola” entre público e clown é difícil de resumir em palavras. Logo na outra semana faríamos nossa apresentação, e nos sentíamos confiantes e unidos para ir em frente. No de nossa apresentação, trabalhamos em equipe, todos desempenharam tarefas, era uma espécie de engrenagem, onde cada peça tem uma função a desempenhar.
Nesta altura de nosso desenvolvimento, nossos clowns já possuíam características particulares, e já nos sentíamos mais a vontade com este estado. Estávamos realmente animados com a apresentação de fato e a ansiedade tomou conta. Duas apresentações no mesmo dia, a primeira foi a mais interessante, serviu como aprendizado porque tivemos que lidar com imprevistos, como o som que parou de funcionar, por exemplo, sendo que o espetáculo era todo levado pela música. Essa sintonia e espírito de grupo que criamos foram de muita eficácia neste momento, percebemos que o som tinha parado nos olhamos e conseguimos seguir em frente sem que o público percebesse. E tudo correu bem. A recepção do público foi satisfatória. Já a segunda apresentação foi mais tranquila mesmo com o som ainda dando problemas, desta vez tínhamos muito mais público, e sentíamos que tudo ia bem, mesmo que em alguns momentos deixássemos a energia baixar.
Aconteceu, nascemos para o mundo como clowns! Nossa estreia foi bastante positiva. Uma experiência que ensinou muito sobre cada um, tivemos um crescimento pessoal importante em nossa formação.
Desenvolver o estado clownesco foi para mim uma das experiências mais transformadoras, interferiu diretamente em minha formação como pessoa, porque o clown é um ser desamparado, um fracassado, então não exprime alegria, características estas que são fundamentais, que revelam toda a fragilidade do ser humano que esta clowneando. Realmente é um estado da pessoa não uma interpretação é uma profunda busca por suas fraquezas. Como diz Jacques Lecoq:
Quando se deram conta do fracasso, pararam a improvisação e voltaram a seus lugares para sentar-se despeitados, envergonhados. Foi então, ao vê-los naquele estado de abatimento, quando todo mundo se deitou de rir, não da personagem que pretendiam apresentar-nos, mas da pessoa mesma, posta assim despida. O havíamos encontrado! O clown não existe separado do ator que o interpreta (LECOQ, 2007, p.210).
E isto revela uma profunda natureza humana, que é o que faz o público se emocionar e rir.
Foi um processo que no meu ver apenas começou, pretendo seguir em frente, trabalhando este estado, seguir me estudando também, esta experiência só me fez crescer e evoluir. Modificou até a forma como eu me observava, e tenho certeza que mexeu com todos os demais nesta proporção. Libertamos-nos e permitimos que tudo se efetivasse, buscamos a sinceridade e a generosidade pra com o outro, nosso espirito de grupo se fortaleceu tanto, que seguiremos com um grupo de pesquisa juntamente a professora que aceitou a proposta, trabalhando mais nosso espetáculo para levá-lo a diante, e quem sabe criarmos muitos outros.
Descobri que todos podemos ser clowns, pois possuímos esta essência dentro de nós, é só permitir e voltar a ser criança. Uma criança que a sociedade apenas ensinou a viver e morrer esquecendo-se de brincar e ser feliz.
* Aluno do curso de artes cênicas da UFSC.