Tempo e espaço nas peças-paisagens de Gertrude Stein – Vanessa Geronimo

Tempo e espaço nas peças-paisagens de Gertrude Stein

 

Vanessa Geronimo*

 

 

Vanessa Stein

Uma cena de Four Saints in Three Acts, dirigida por Robert Wilson.

Parte do Festival: Lincoln Center Festival in 1996.

(imagem: Stephanie Berger para o The New York Times).

 

Gertrude Stein (1874-1946) começou a escrever peças de teatro em 1913, utilizando uma gramática própria que possibilitou ao leitor/espectador uma experiência teatral diferenciada, inusitada, na qual não é representada uma ação, uma trama, mas a própria língua. Assim, pode-se dizer que Stein reinventou a linguagem e marcou o movimento modernista como inovadora linguístico-poética.

A estudiosa Betsy Alayne Ryan, no prefácio de sua obra Gertrude Stein’s Theatre of the Absolute (1980), destaca que a arte teatral e a estética de Gertrude Stein pareciam mais fixas ao mundo da pintura do que ao mundo do teatro. Na introdução, Ryan (1980, p.1) acrescenta que Stein dedicou sua estética a uma incorporação do presente e à evolução de um estilo que poderia expressá-lo adequadamente e cita a seguinte fala de Stein: “O objetivo da arte é viver no presente real o completo presente real e expressar completamente aquele completo presente real.[1]” Os efeitos produzidos nas peças de Stein seriam diferentes dos produzidos pelos naturalistas, realistas e simbolistas em relação aos conceitos de tempo e espaço.

Conforme afirma Ryan (1980, p.11), Gertrude Stein formou conceitos de “entidade” e “presente contínuo” em 1911 com sua obra The Making of Americans, os quais ela utilizou durante toda sua carreira, até 1946. A autora afirma que “assim como os cubistas evitaram levar o olhar longe da superfície da tela, Gertrude Stein evitou afastar o olhar da superfície – o momento específico – da escrita” (RYAN, 1980, p. 17)[2] e cita ainda que Gertrude Stein conseguiu realizar o “movimento independente” fundamental para a sua estética, o qual chamava de “self-contained moviment.”

Para uma melhor compreensão do tempo no teatro de Gertrude Stein é necessário explicar melhor seu conceito de paisagem. Por isso, recorro ao ensaio O que nossa mente faz quando lemos um romance (2011), de Orhan Pamuk, no qual o conceito de paisagem é diferente do steiniano e através de exemplos contrários conseguimos visualizar melhor as peças de Stein como paisagens.

Pamuk (2011) explica como funciona a mente do leitor de um romance. Ele explica que no momento em que o leitor está lendo um romance ele sai de seu mundo, esquece de seu meio e entra no meio dos personagens, em um mundo imaginário, que para o leitor, passa a ser o mundo real; e é esse “parecer real” que o leva ainda mais a querer não só ler, mas a viver o romance. Lemos um romance pensando que ele é real, mesmo sabendo que não é. Sendo assim, pode-se entender a visão de Pamuk (2011), em relação à leitura de romances, como um ato de desvincularmo-nos do mundo em que estamos, pois no momento em que o leitor abre o livro e inicia a leitura ele quer “entrar” neste mundo fictício e, nesse momento, não exercerá nenhuma função pensada, relacionada ao mundo em que está durante o ato da leitura. Seus pensamentos, atitudes e percepções voltar-se-ão ao mundo da ficção. É por isso que Pamuk relata que quando lemos um romance é como se estivéssemos observando uma paisagem, onde a cena ocorre e, ao entrarmos no romance, ou nos imaginamos como um dos personagens ou observamos os personagens e as cenas. Observamos as paisagens, que descobrimos a cada palavra, frase, parágrafo lido.

A paisagem que observamos durante a leitura de um romance difere um pouco da observação de um quadro pintado, pois a paisagem, no decorrer do romance, vai se modificando. A cada descoberta, mistério desvendado, por exemplo, pode-se visualizar melhor a paisagem. Segundo Pamuk (2011):

quando eu lia romances em minha juventude, às vezes uma paisagem ampla, profunda e pacata surgia dentro de mim. E, às vezes, as luzes se apagavam, o preto e o branco se intensificavam e depois se separavam, e as sombras se moviam (PAMUK, 2011, p. 11).

Nesse trecho pode-se perceber a diferença entre a leitura de um romance e o ato de observar um quadro. Ao ler um romance, é como se estivéssemos observando um quadro, mas esse quadro pode modificar-se a cada palavra, frase ou parágrafo lido. Ao observarmos um quadro, é a paisagem que nos provoca sensações – é o que ocorre nas peças de Gertrude Stein; e ao lermos um romance, são as sensações, as histórias e descrições que formam a paisagem. Pamuk (2011) descreve que no mundo fictício a paisagem surge na mente do leitor e conforme o romance vai sendo lido a paisagem sofre alterações. Quando há dúvidas, mistérios a serem revelados, por exemplo, o preto pode tomar mais espaço na paisagem e quando algo é desvendado o branco ganha intensidade, a paisagem fica mais clara, e o romance como um todo vai sendo, cada vez mais, parte da paisagem. O autor relata que, lendo um romance:

sentia que a poltrona laranja na qual estava sentado, o cinzeiro malcheiroso a meu lado, a sala carpetada, as crianças jogando futebol na rua e os apitos da balsa distante pouco a pouco se afastavam de minha mente; e que um mundo novo se revelava, palavra por palavra, frase por frase, diante de mim (PAMUK, 2011, p. 11).

Esse trecho mostra que quando o leitor entra no mundo do romance, aos poucos, ele vai desvinculando-se do meio em que está; em todos os sentidos. Sua visão deixa de ser a do ambiente em que está e passa a ser a imagem do mundo fictício, a paisagem. Os odores, aos poucos, tornam-se imperceptíveis. O cheiro do cinzeiro desaparece e, na descrição em um romance, por exemplo, do cheiro de ar fresco logo após a chuva, próximo ao rio, prevalece nos sentidos do leitor. As vozes dos personagens, os ruídos e sons descritos no romance ficam tão evidentes que os sons emitidos onde o corpo está presente, “crianças jogando futebol na rua e os apitos da balsa distante”, são silenciados; e o romance, o fictício, passa a dominar a mente. Mais precisamente, pode-se dizer que nos desligamos do mundo em que estamos, para dar lugar a um novo mundo, que desvendamos ao longo do romance.                                                                                 Em relação às peças de Stein é a paisagem que causa as sensações. Suas peças de teatro não contam uma história, não existem personagens bem delimitados, não existe enredo; assim como afirma Ryan (1980, p.81): “uma vez que as peças de Gertrude Stein não projetam ação, elas também não apresentam personagens no sentido tradicional.[3]” Bowers (2002, p.124) relata uma experiência de Gertrude Stein aos dezesseis anos, quando assistiu a uma peça em San Francisco, na qual Stein percebeu a encenação como mais importante do que o texto falado propriamente, em língua francesa, língua que Stein entendia pouco na idade em que assistiu e, para ela, bastou a encenação para entender o essencial.

Segundo Bowers (2002):

buscando simultaneidade por meio da linguagem, Stein usou palavras em suas “lang-scapes” como um pintor pode colocar objetos na tela de uma pintura, como se estivessem relacionadas entre si espacialmente, ou seja, visualmente na página e sonoramente no ar (BOWERS, 2002, p.131).[4]

Para ela as “landscapes” (paisagens) de Stein são “lang-scapes” – language + landscapes, ou seja, são paisagens feitas com a linguagem, pois a língua, no teatro de Gertrude Stein, é mais um elemento material. Ela se materializa assim como os outros elementos da encenação. Ela afirma que a relação entre paisagem e peça foi uma solução para aspectos problemáticos identificados por Stein em suas experiências como espectadora no teatro. Em suas experiências, Gertrude Stein identificou que os elementos visuais e o diálogo interferiam um ao outro. Ou seja, quando o espectador prestava atenção nos elementos visuais, perdia a concentração em algumas falas ou quando o espectador prestava atenção no diálogo, perdia importantes elementos visuais. Outro fator que desprendia a atenção à peça era a emoção do expectador, que segundo Stein (1998), não fluía exatamente ao mesmo tempo da ação. Assim, Gertrude Stein percebeu que mais prazeroso seria se a língua pudesse ser expressada como são os gestos.

Em síntese, Stein identificou que o tempo emocional da plateia não é o mesmo tempo emocional da peça. Esse problema ela definiu como “syncopation” – “sincopação”. Para Stein (1998, p.244), em relação ao teatro, “é quase sempre em tempo sincopado em relação à emoção de qualquer um na plateia.[5]” Stein explica: “sua emoção em relação à peça está sempre atrás ou à frente da peça a qual está observando e a qual está ouvindo. Então sua emoção, como membro da plateia, nunca está acontecendo ao mesmo tempo da ação da peça[6]” (STEIN, 1998, p.244). É por isso que ela “desliga” as palavras de suas relações anteriores e cria um teatro para ser observado como um quadro, uma paisagem:

Eu senti que se uma peça fosse exatamente como uma paisagem então não haveria dificuldade em relação à emoção da pessoa observando a peça estar atrás ou à frente da peça porque a paisagem não tem que se familiarizar. Você pode ter que se familiarizar com ela, mas não ela com você, ela está lá… (STEIN, 1998, p.263).[7]

É assim que o teatro deveria ser na concepção steiniana; a emoção do espectador acontecendo ao mesmo tempo da ação da peça, pois, segundo Stein (1998) a emoção quando não acompanha o tempo da ação da peça causa nervosismo no espectador: “nervosismo consiste na necessidade de ir rapidamente ou lentamente para que possa estar junto” (STEIN, 1998, p.245)[8]. Por isso o tempo no teatro de Gertrude Stein é o presente contínuo que, segundo Collin (2008):

consiste em criar um texto que, pelo uso de um tempo verbal em que aparentemente as coisas se movem em um mesmo plano, avance tão lentamente que provoque no leitor a impressão de estar sendo absorvido para o interior desse texto (COLLIN, 2008, p.58).

Dessa maneira, Stein criou o chamado “self-contained moviment” – “movimento independente”, onde, para Lyn Hejinian (2000, p.114), “o que é visto é contido por si só no seu interior[9].” Isso significa que tudo o que é visto está dentro da peça-paisagem steiniana, e tudo o que acontece a peça não conta, ela mostra, reproduz. De acordo com Collin (2008), os textos de Stein:

presentificam momentos de percepção capturados em seu imediatismo e, contrariamente à condição estática de um quadro frontal, focalizam igualmente o movimento do que circunda a pessoa/objeto retratado, criando um tipo de paisagem dinâmica em que as palavras individuais não significam, são (COLLIN, 2008, p.56).

Com isso, as frases nos textos de Stein são entidades – tudo aquilo que existe em essência – que capturam momentos. Elas bastam por si e em si, retratando e presentificando momentos sem ter um início, meio ou fim. Para tanto, Ryan (1980, p.24) afirma que “Stein concebeu cada elemento de uma composição como entidade completa: um fim-em-si que não requer nenhuma ação de qualquer outro elemento para conclusão.”[10] Diante disso, as peças de Stein são expressões que não se realizam somente nas páginas impressas, mas na encenação. Isso significa que a peça precisa ser vista, ou seja, precisa ser presentificada.

Ryan (1980, p.40-41) explica que, de acordo com Stein, o ato de olhar sucede em capturar a essência de algo no presente absoluto; que qualquer coisa que não fosse uma história poderia ser uma peça; e que em um romance existe um meio e um começo, e em uma peça não. “Uma peça, em outras palavras, teria uma vivacidade em cada momento de sua encenação, que é explicável por si só” (RYAN, 1980, p.41).[11] O presente contínuo das peças steinianas é então o presente absoluto, onde é representado algo que o teatro não costumava representar: as palavras escritas.

Esse presente absoluto desenvolvido por Gertrude Stein é marcado pelas repetições/insistências, rimas, modificações de frases e justaposição. É importante destacar que, segundo Collin (2008), a “fragmentação” é uma das técnicas utilizadas na escrita steiniana:

A técnica de fragmentação do espaço tridimensional construído a partir de um ponto de vista fixo, desenvolvida pelo cubismo, faz com que as relações múltiplas entre as coisas sejam registradas por meio de aparências que mudam de acordo com o ponto de vista de quem se escolhe para olhá-las, resultando em uma concepção multiforme do mundo. Por meio de suas obras, os cubistas pretendiam apresentar o mundo visível e não representá-lo, assim, a pintura cubista considera tanto as características do objeto que podem ser apreendidas abstratamente quanto as propriedades materiais, ambas como aspectos do objeto. Atentando para a efetividade operacional da fragmentação, G. Stein “desliga” as palavras de suas relações anteriores com a frase em um procedimento de “desfrasificação” que abala as noções de tempo e espaço do discurso e apresenta uma re-visão de objetos comuns por meio de narrativas descentralizadas (COLLIN, 2008, p.62).

Também é de extrema importância ressaltar que “a repetição/insistência explorada por G. Stein é um antídoto contra o sentimentalismo lógico e estático e reproduz o pensamento real, que está sempre em movimento” (COLLIN, 2008, p.57) e Gertrude Stein enfatiza o “presente contínuo” por meio de repetições/insistências, rimas e modificações. Segundo Ryan (1980, p.79): “Repetição, enquanto cria uma série de frases distintas, realmente intensifica a frase original, isolando-a de associações e referências tradicionais, e faz disto uma nova frase.[12]” Em Four Saints podemos perceber exemplos de repetições, mais precisamente definidas como “insistências”, pois cada frase que se repete já não é a mesma frase, como observamos no seguinte trecho:

 

Saint Plan.

 

Once in a while.

Saint Therese.            Once in a while.

Saint Plan.                 Once in a while.

Saint Chavez.            Once in a while.

Saint Settlement.       Once in a while.

Saint Therese.                        Once in a while.

Saint Chavez.            Once in a while.

Saint Cecile.              Once in a while.

Saint Genevieve.        Once in a while.

Saint Anne.               Once in a while.

Saint Settlement.       Once in a while.

Saint Therese.                        Once in a while.

(STEIN, 1949, p.461).

 

Além desse exemplo existem muitos outros de repetição que ocorrem durante toda a peça, como: “Four saints prepare for saints it makes it well well fish it makes it well fish prepare for saints.” Também podemos perceber combinações de repetição juntamente com modificação: “Many saints seen and in between many saints seen.” / “Saint Therese and Saint Therese and Saint Therese.” / “Many saints as seen and in between as many saints as seen.” / “seen as seen.” / “Many saints as seen.” (STEIN, 1949, p.448). Nos exemplos as frases vão se repetindo e se modificando a cada repetição. É um jogo em que Stein mostra que uma mesma palavra, quando repetida, deixa de ser a mesma. É por isso que são “insistências”, não propriamente repetições. Ela também utiliza rimas durante a peça, como, por exemplo, na sequência dos versos: “Let it in around.” / “With seas.” / “With knees.” / “With Keys.” / With pleases.” / “Go and know.”  / “In clouded.” / “Included.” (STEIN, 1949, p.450). Aqui temos as rimas finais “seas” – “knees” – “keys” e “clouded” – “included” – que além de rimas são uma brincadeira de combinar as palavras “in” + “clouded” = “included”. E também vemos as rimas internas “go” e “know”.

Na peça Four Saints in Three Acts (1949) há muito mais que quatro santos e mais que três atos. A peça inicia como se fosse uma introdução aos atos, depois atos e cenas seguem esta sequência: “Act I”, “Repeat First Act”, “Enact end of an act”, “Scene Two”, “Scene III”, “Scene III”, “Scene IV”, “Scene III”, “Scene IV”, “Act Two”, “Scene One”, “Scene One”, “Act One”, e assim por diante. Stein brinca com a ordem e repetição dos atos e cenas. Durante a peça Listen To Me (1936), ela repete a “Cena V” e na segunda vez que a cena aparece ela é construída por apenas esta sentença: “There is no scene V.”[13] – “Não há cena V.” Isso pode significar que não há outra cena V, mas ao mesmo tempo significa que há, pois alguém teve que entrar em cena – a cena V que “não existe” – para dizer que não há a cena V. Como afirma Ryan (1980, p.104): “muitas das peças parecem ser baseadas em eventos reais acontecendo no momento de suas composições e podem ser separados e entendidos se reconstruídos os eventos.[14]” Essa construção é interessante no sentido de pensar na concepção steiniana de fazer da peça a essência do acontecimento, ou seja, não fazer um teatro que descreva algo, mas que “seja o algo.”

Gertrude Stein, em sua primeira peça What happened: a five act play escrita ainda em 1913, não conta o que aconteceu, mas faz da peça a essência do acontecimento. “A ideia em What Happened, A Play era expressar isto sem dizer o que aconteceu, mas fazer da peça a essência do que aconteceu” (STEIN, 1998, p.261)[15]. A peça trata do que aconteceu no jantar de aniversário do pintor Harry Phelan Gibb (1870 – 1948), no dia 8 de abril de 1913; e o que aconteceu foi um jantar de aniversário, a essência de um jantar de aniversário. Ulla E. Dydo (1993, p.268) cita: “o quê realmente aconteceu – a essência de uma festa – era fala aleatória ou conversa, cujos padrões e atmosfera a peça de Stein reproduz.[16]” A peça reproduz o jantar, ela não conta o que aconteceu, ela é o que aconteceu. Vemos, por exemplo, em um trecho da peça, a reprodução do momento de fotografia

A regret a single regret makes a door way. What is a door way, a door way is a photograph.

What is a photograph a photograph is a sight and a sight is always a sight of something. Very likely there is a photograph that gives color if there is then there is that color that does not change any more than it did when there was much more use for photograph (STEIN, 1993, p.209).

Nesse sentido, segundo Farfan (2010), Stein mostrou a peça teatral como uma “paisagem”, colocando, dessa maneira, o papel do público como central no teatro, pois a “paisagem” existe na experiência perceptiva do público em relação à peça. As sensações que Stein desejava causar no público através do teatro assemelham-se às sensações que alguém teria ao observar um quadro, uma pintura ou mesmo uma paisagem, onde não existe uma hierarquia: a árvore é tão importante quanto a montanha, quanto ao rio etc. Não se trata de uma história com começo, meio e fim. É o que ocorre, por exemplo, na peça Four Saints in Three Acts. Nela, a autora desloca a atenção do texto ao espectador, sendo a peça e o público elementos interdependentes. Com isso, surge uma nova forma de teatro marcando, com antecedência, a estética pós-dramática. Conforme afirma Lehmann (2007),

desenvolvem-se novas formas de teatro que só contêm narração e referência à realidade de um modo distorcido, em rudimentos: a “peça-paisagem” de Gertrude Stein, os textos de Antonin Artaud para seu “teatro da crueldade”, o teatro da “forma pura” de Witkiewicz. Essas modalidades textuais “desconstruídas” antecipam literariamente elementos da estética pós-dramática do teatro (LEHMANN, p. 80, 2007).

De acordo com Lehmann (2009, p.235) no drama a relação estabelecida entre as pessoas “é essencial para o entendimento da realidade” e a partir do momento em que não se acredita mais nessa relação como essencial para o entendimento da realidade, outras formas de escrever teatro surgem com autores modernos, que se distanciaram das especificidades dramáticas tradicionais, as quais eram, nas palavras de Lehmann (2009, p.235), “os conceitos de caráter, das figuras dramáticas e da psicologia dos indivíduos, do que Hegel chamava de colisão dramática e, mesmo, do conflito de ideias que estava pressuposto no drama.” As novas formas de teatro vão além da representação.

O teatro pós-dramático, explicado por Hans-Thies Lehmann, inovou a forma em relação ao drama tradicional. Conforme cita o autor, “no teatro pós-dramático também aparecem os conflitos, os caracteres, as ideias e o conflito de ideias, a colisão enfim. Esses elementos, contudo, ocorrem de uma outra forma, diferente daquela articulada no drama” (LEHMANN, 2009, p.235). No drama, por exemplo, temos a presença do corpo para completar o processo da dialética, mas a presença do corpo não é de extrema importância como é no teatro pós-dramático. Para Lehmann (2009):

no drama tradicional o corpo é existente, mas não importa do ponto de vista literário. Tudo não passa de um conflito mental. No teatro pós-dramático chegamos a um teatro onde o corpo, afinal, importa. Isto não significa que exista uma linha divisória entre teatro textual e teatro não-textual. Pode haver teatros de texto absolutamente pós-dramáticos, como o teatro de Gertrude Stein (LEHMANN, 2009, p.246).

Segundo Lehmann (2007), as formas textuais criadas por Gertrude Stein encerram a tradição do teatro dramático e sua estética tem muita importância no teatro pós-dramático. Nessa visão de “peça-paisagem”, Stein utiliza técnicas de linguagem, “técnicas de variação repetitiva, de desagregação de conexões semânticas imediatamente evidentes, de arranjos formais segundo princípios sintáticos ou musicais” (LEHMANN, p.249, 2007), que fazem com que suas peças sejam comparadas a “objetos em exposição.” Nelas, prevalece o tom lírico, a peça como poesia, então não há uma história dramática. Para ele, as peças de Gertrude Stein exemplificam o teatro pós-dramático, pois Stein “queria realizar uma coisa que é normalmente considerada impossível ao texto literário, escrever um tipo de literatura que seria observada como se observa uma paisagem” (LEHMANN, 2009, p.246). E, como dito anteriormente, não há hierarquia em uma paisagem. Lehmann (2009, p.246) afirma que em uma paisagem “a árvore é tão importante quanto a pedra e o campo tanto quanto o céu.”

É possível enxergar as palavras, no teatro de Stein, como “objetos em exposição” destacados de sua mensagem, em que a própria palavra, como descreveu Barthes (2007), é dada como espetáculo. De acordo com Lehmann (2007), se o teatro de Stein for analisado na perspectiva do teatro dramático, ele é certamente um teatro impossível de representar e por isso as novas formas textuais utilizadas pela autora marcam o início de um novo teatro e encerram a tradição do teatro dramático. Gertrude Stein escreveu peças inovadoras para a época em que começou a escrever e fez surgir um teatro em que o tempo é o “presente contínuo” e, a partir da concepção steiniana de suas peças como “paisagens”, é possível relacionar seu teatro com o princípio da exposição, do qual relata Lehmann (2007):

O princípio da exposição apreende o material linguístico em conjunto com os corpos, o gestual e as vozes, contrapondo-se à função representativa da linguagem no teatro. Em vez de representação de conteúdos linguísticos orientada pelo texto, prevalece uma “disposição” de sons, palavras, frases e ressonâncias conduzida pela composição cênica e por uma dramaturgia visual que pouco se pautam pelo “sentido”. A ruptura entre o ser e o significado tem um efeito de choque: com toda a insistência de uma significação sugerida, algo é exposto, mas em seguida não se permite reconhecer o significado esperado. A ideia de uma exposição de linguagem parece paradoxal. Contudo, pelo menos desde os textos teatrais de Gertrude Stein tem-se o exemplo de como a linguagem perde o direcionamento teleológico e a temporalidade imanentes e pode ser equiparada a um objeto em exposição (LEHMANN, 2007, p.249).

O que destaca Lehmann é o que ocorre nas peças de Stein. Suas peças-paisagem expõem a linguagem através de sons, repetições de palavras e frases, ressonância e ritmo, onde o visual e o auditivo formam um conjunto de sensações que variam para cada espectador ou leitor, ou seja, pouco se pautam pelo “sentido”. Stein, ao escrever suas peças, não queria interferências emotivas dos espectadores ocorrendo antes ou depois da ação, mas no próprio momento da ação, no presente. É possível estabelecermos essa relação com as características do teatro pós-dramático, pois nele a linguagem não tem um direcionamento com início, desenvolvimento e fim, mas apresenta técnicas com jogos de palavras que ao serem expostas ao espectador causam sensações semelhantes às sensações de observar um quadro, como uma obra de arte de Picasso.

 

REFERÊNCIAS:

 

BOWERS, Jane Palatini. The Composition that all the World Can See: Gertrude Stein’s Theater Landscapes. In: Land / Scape / Theater. Edited by Elinor Fuchs and Una Chaudhuri. Michigan: University of Michigan, 2002.

 

COLLIN, Luci. A rosa sendo uma rosa – Gertrude Stein e a reinvenção da linguagem. In: PRZYBYCIEN, Regina e GOMES, Cleusa (orgs). Poetas mulheres que pensaram o século XX. Curitiba: Editora UFPR, 2008.

 

DYDO, Ulla E. A Stein Reader. Illinois: Northwestern University Press, 1993.

 

_________. Gertrude Stein: the language that rises 1923 – 1934 / Ulla E. Dydo with William Rice. Illinois: Northwestern University Press, 2003.

 

FARFAN, Penny. Women`s modernism and performance. In:Modernist women writers / Maren Tova Linett (Org.).Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

 

HEJINIAN, Lyn. The Language of Inquiry. London: University of California Press, 2000.

 

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind e apresentação de Sérgio Carvalho. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

__________. Teatro Pós-Dramático e Teatro Político. Tradução de Raquel Imanishi. In: GINSBURG,
J.
e
FERNANDES,Sílvia
(orgs). Opós-dramático: um conceito operativo? SãoPaulo: Perspectiva,
2009.

 

PAMUK, Orhan. O que nossa mente faz quando lemos um romance. in: O romancista ingênuo e o sentimental. / Orhan Pamuk; Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

RYAN, Betsy Alayne. Gertrude Stein’s Theatre of the Absolute. Illinois: University of Illinois, 1980.

 

STEIN, Gertrude. Writings 1932 – 1946. New York: The Library of America, 1998.

 

__________. Geography and Plays. Introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: University of Wisconsin Press, 1993

 

__________. Last Operas and Plays. Edited by Carl Van Vechten; with an introduction by Bonnie Marranca. New York: Rinehart, 1949.

 

[1] Todas as citações com o texto de partida em rodapé foram traduzidas por mim. – Texto de partida: “The business of art… is to live in the actual present the complete actual present and to completely express that complete actual present.”

[2] “Just as the cubists avoided leading the eye away from the surface of the canvas, so Stein avoided leading it away from the surface – the particular moment – of the writing.”

 

[3] “since Gertrude Stein’s plays do not chart action, they do not exhibit character in the traditional sense either.”

[4] “seeking simultaneity through language, Stein used words in her lang-scapes as a painter might place objects in the field of a painting, as though they were related to each other spatially, that is, visually on the page and sonorously in the air.”

[5] “it is almost always in syncopated time In relation to the emotion of anybody in the audience.”

[6] “your emotion concerning that play is always either behind or ahead of the play at which you are looking and to which you are listening. So your emotion as a member of the audience is never going on at the same time as the action of the play.”

[7] I felt that IF a play was exactly like a landscape then there would be no difficulty about the emotion of the person looking on at the play being behind or ahead of the play because the landscape does not have to make acquaintance. You may have to make acquaintance with it, but it does not with you, it is there…

[8] “Nervousness consists in needing to go faster or to go slower so as to get together.”

[9] “What is seen is contained by itself inside it.”

[10] “Stein conceived of each element of a composition as complete entity: an end-in-itself which requires no action from any other element for completion.”

[11] “A play, in other words, would have a vividness in every moment of its performance which is self-explanatory.”

 

[12] “Repetition, while creating a series of discrete statements, actually intensifies the original statement, isolating it from traditional associations and references, and makes it a new statement.”

[13] STEIN, Gertrude. Listen to Me. p. 404. In: STEIN, Gertrude. Last Operas and Plays / Edited by Carl Van Vechten; with an introduction by Bonnie Marranca. Acid-Free Paper: United States of America, 1949.

[14] “many of the plays seem to be based on actual events occuring at the time of their composition and can be sorted out and understood if one reconstructs the events.”

[15] “the idea in What Happened, A Play was to express this without telling what happened, in short to make a play the essence of what happened.”

[16] “what actually happened – the essence of a party – was random talk or conversation, whose patterns and atmosphere Stein’s play reproduces.”

 

*Mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da prof.ª Dr.ª Dirce Waltrick do Amarante.