Notas intempestivas, um ensaio – Júlia Studart

Notas intempestivas, um ensaio

Júlia Studart *

 

Matteo perdeu o emprego, Gonçalo M. Tavares

1.

[PARTE 2, nota 16]

Gonçalo M. Tavares diz em uma entrevista [Entrelivros, n. 29, set. 2007] que se considera “um filho de Sêneca”, que tem “uma parte estóica”, pois “guarda alguma distância em relação ao que vai acontecendo”. Diz também que o livro que mais marcou a sua vida é o das cartas de Sêneca a Lucílio, Cartas a Lucílio, livro em que Sêneca avisa que só tem domínio de si aquele que não faz de seu corpo um peregrinador por outros corpos, outra dimensão da errância: “Se te persuadires de que toda a terra te pertence, o primeiro ponto em que parares agradar-te-á de imediato. O que tu fazes agora não é viajar, mas sim andar à deriva, a saltar de um lado para o outro, quando na realidade o que tu pretendes – viver segundo a virtude – podes consegui-lo em qualquer sítio.” [SÊNECA, 2009, p. 105] Ora, o estoicismo está ligado a uma colocação do ser na razão para sobrepor-se às paixões, mesmo que, depois, se ligue também a uma clivagem entre corpo e alma numa tentativa de fazer com que o homem suplante a dor e, principalmente, a dor da perda provocada pela morte, dor que é uma inimiga da razão. Sabe-se que Sêneca [Corduba, 4 a.C. — Roma, 65 d.C.], diz Joaquim Brasil Fontes [1992, p. 15 – na apresentação a uma pequena edição brasileira de Consolationes [Cartas Consolatórias], falava para e contra uma sociedade aristocrática, culta e em perpétuo sobressalto, em que Nero era o imperador e se auto-intitulava senhor da vida e da morte. Joaquim Fontes chama atenção para o quanto Sêneca tensiona a língua latina e a filosofia estóica, numa dupla racionalidade, a da ordem das palavras e a da ordem do mundo, através de um discurso entre razão e paixão. A sua busca se dirige ao otium, à contemplação filosófica e à produção literária; e é isto que ele cobra de Lucílio, por exemplo, por mais que este, em princípio, oponha-se com resistência.

2.

[PARTE 2, nota 17]

Há no livro composto de 25 narrativas curtas, intitulado Matteo perdeu o emprego, publicado no final de 2010, a inscrição de uma ideia da série enciclopédica a partir da justaposição de vínculos e autonomia entre o texto e a imagem. As narrativas deste livro seguem uma sequencia alfabética, logo enciclopédica, a partir dos nomes dos personagens e a cada narrativa apresenta-se ao final o personagem da narrativa seguinte. Os nomes vão de Aaronson a Matteo e o livro se encerra aí, na letra M. As imagens são de bonecos que remetem àqueles bonecos usados por ventríloquos e servem também como títulos quando estão em tamanho grande e, ao mesmo tempo, organizam a série de todo o livro a cada narrativa quando aparecem de forma crescente e pequena no canto da página anterior ao início de cada narrativa. Na contracapa do livro [ver a imagem abaixo] aparecem todos os rostos dos bonecos juntos – “Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade”, “A desterritorialização do corpo implica uma reterritorialização no rosto”, “o rosto é uma política”, “Se o rosto é uma política desfazer o rosto também o é” e “Na verdade, não há senão inumanidades, o homem é somente feito de inumanidades, mas bastante diferentes, e segundo naturezas e velocidades bastante diferentes.” [DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 33-49-50-61] – denunciando a nulidade do esquema de descrição dos comportamentos de cada personagem que está também em cada nome: é a enciclopédia de exposição das intimidades. Esta é uma esfera íntima da face, como propõe Sloterdijk, o que tem a ver com uma história da arte elaborada pela cultura européia da imagem em sua  “representación del rosto humano individualizado”. [SLOTERDIJK, 2009, p. 153

O livro contém ainda um posfácio escrito pelo próprio autor como uma espécie de segunda parte, em que procura descrever, de certa maneira, seus personagens e, principalmente, seu procedimento. Assim, transforma todo o livro numa compósita em direção ao ensaio. Diz ele: “Eis o que é pensar: saber desenhar. A geometria já se sabe, como coisa antiga – o que separa o que liga.” [TAVARES, 2010, p. 167] Depois, falando de seu personagem Goldstein, que é cego e rico, uma compensação. O dinheiro é, para ele, uma outra forma de ver porque o dinheiro permite tocar. “E daí, a importância da prostituta, esse ‘objecto’ tocável por excelência, tocado pelo dinheiro: quanto mais dinheiro mais tocas, mais conheces. A prostituta sintetiza a racionalidade alternativa dos cegos. Não tens acesso à grande racionalidade do século XXI – a fotografia, a imagem – mas podes entender de forma coxa, entender como um coxo que, em vez de insistir em correr, decide dançar e é admirado pela original como dança. Dançando não se nota que coxeia – porém ninguém (nem o coxo) pode dançar muito tempo.” [TAVARES, 2010, p. 174-175] A imprecisão do dito comparece não só na figuração do ensaio, mas muito mais na figuração daquele que é capaz de dançar, mesmo que sutilmente, de forma coxa. E, por fim, ao comentar sobre o personagem que dá nome ao livro, Matteo, diz, impondo o estalido das esferas íntimas, porém elípticas porque ainda colada numa dimensão física: “É evidente que a forma geométrica deste ‘Matteo…’ é a circunferência. Começando na rotunda e terminando na última personagem que é, afinal, a penúltima: a que vem antes do que ainda não existe. O livro não termina em Matteo. Uma nova personagem é chamada – Nedermeyer, mas então não estamos afinal diante de uma circunferência, mas quando muito diante de uma elipse. De Matteo não voltamos a Aaronson, de Matteo avançaremos para Nedermeyer, personagem que suportará não sabemos ainda que acontecimentos. Não há circunferência porque não se chegou a Z, eis uma justificação possível.” [TAVARES, 2010, p. 202] Gonçalo M. Tavares não só nos devolve o problema em torno de seu procedimento, de sempre propor a sua escrita num ensaio que é como uma dança política das esferas, mas também a pergunta básica dessa questão já proposta por Sloterdijk: onde está o indivíduo? É possível pensar também numa estratégia de continuidade pública no circuito da literatura, seus livros se movem também muito por aí, anunciando outros.

3.

[PARTE 3, nota 5]

Benjamin diz que ninguém melhor que Paul Valéry descreve a imagem espiritual desse mundo de artífices do qual provém, por exemplo, a figura do narrador tão caro a ele: “Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como ‘o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si’. O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. ‘Antigamente o homem imitava essa paciência’, prossegue Valéry. ‘Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas… – todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado.’ Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.” [BENJAMIN, 1985, p. 206] Importante lembrar que um livro muito recente de Gonçalo M. Tavares, o mais recente, aliás, se intitula Short Movies [Editora Caminho, 2011], tocando assim a proposição de Benjamin pelo menos em dois pontos: como tentativa de mover-se entre as novas técnicas de circulação [ainda modernas] e como constituição de camadas a partir de narrativas sucessivas. São short stories escritas a partir da montagem cinematográfica praticada já pelas imagens de síntese produzidas por computadores e filtros digitais. Uma dessas narrativas, para exemplo, que se intitula não à toa como A dança: “Uma mulher e um homem, os dois completamente nus, dançam no meio de uma sala. Vemos os dois corpos muito juntos e escutamos as músicas, um tango lento, uma música de enamoramento. De qualquer maneira, nunca vemos os rostos, não percebemos qual o estado do espírito dos dois dançarinos. / Estão nus e dançam. Ele segura na mão dela, ela deixa-se guiar pelos movimentos dele. Só ela tem um relógio de pulso; de resto, apenas dois corpos nus. / A música termina. Vemos as costas do homem, as nádegas do homem, depois a nuca da mulher e depois os dois rostos neutros, aflitos – e subitamente, no momento exacto em que a música termina, escuta-se um enorme ruído: são aplausos, sim, mas o par parece estar com medo; não agradece.” [TAVARES, 2011, p. 19-20] Numa outra narrativa, também para exemplo, é evidente o trabalho em direção ao ensaio, quando o texto segue uma tentativa de comprovação de um apontamento, de uma hipótese. A narrativa se intitula Demonstração de Humanidade: “Um velho, muitíssimo velho, desdentado, com um boné castanho na cabeça, e com o sorriso que pode fazer já sem dentes que normalmente fazem o sorriso, concentrando por isso o sorriso na parte da pele acima da boca, nas bochechas, o velho ali está a fazer pontaria com uma figa, a rir-se de ser tão velho e de ainda ter vontade de acertar em alguém ouem algo. Não perdemos essa vontade; podemos perder a pontaria, os músculos, a força, mas a vontade de matar, essa não perdemos, mesmo quando temos quase noventa anos, não temos dentes e temos um boné castanho na cabeça. Que a vontade humana seja abençoada.” [TAVARES, 2011, p. 41]

4.

[PARTE 4, nota 2]

Assim, a literatura de Gonçalo M. Tavares comparece na figuração de uma avaria das células [como propõe Pedro Eiras] para quebrar um pouco esta relação da literatura apenas quando ela consegue ser uma imbricação do circuito editorial e fazer parte diretamente de suas imposições. É importante pensar como esta literatura avariada consegue furar e se colocar nesse circuito. Porque é preciso levar em conta que os livros de Gonçalo M. Tavares são editados por grandes grupos editoriais, por exemplo, tanto em Portugal quanto no Brasil. E que grupos assim normalmente impõem demarcações muito claras de mercado a partir de seus catálogos, penetrações políticas e uso da sua força de capital. Isto me parece sempre um problema a ser pensado. Como equilibrar uma desproporção de valores: a força e a dignidade de um trabalho e a força e a perversão do dinheiro.

* É poeta, doutora em Teoria Literária[UFSC, Bolsista CNPq / Universidade Nova de Lisboa, bolsista CAPES] com tese a partir das narrativas de Gonçalo M. Tavares entre literatura, política e teoria da dança. Publicou Wittgenstein & Will Eisner – se numa cidade suas formas de vida [Lumme Editor, SP, 2006], Marcoaurélio!, uma plaqueta com a artista visual Milena Travassos [Dragão do Mar, CE, 2006], Livro Segredo e Infâmia [Editora da Casa, SC, 2007] e Arquivo Debilitado – o gesto de Evandro Affonso Ferreira [Dobra Editorial, SP, 2012]. Organizou o livro Conversas, diferença n.1 – ensaios de literatura etc [Editora da Casa, SC, 2009]. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado a partir do trabalho de Nuno Ramos entre literatura, artes visuais e política [UNICAMP/FAPESP].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras Escolhidas; v. 1)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia – 3. Trad. Aurélio Guerra et alii. São Paulo: 34, 2004.

SÉNECA. Cartas a Lucíolo. Trad. J.A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. [Microsferología] Burbujas. Trad. Isidoro Reguera. Madrid: Ediciones Siruela, 2009.

TAVARES, Gonçalo M. Ler para ter lucidez: Entrevista [Setembro de 2007]. Revista ENTRELIVROS, edição 29.

______. Matteo perdeu o emprego. Porto: Porto Editora, 2010.

______. Short Movies. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.