A HORA DA POESIA JOVEM – Sérgio Medeiros

A HORA DA POESIA JOVEM

 

Sérgio Medeiros*

Cia das Letras, 2017. Organização: Adriana Calcanhoto

Cia das Letras, 2017. Organização: Adriana Calcanhoto

O livro É agora como nunca (Cia das Letras, 2017), organizado pela cantora e compositora Adriana Calcanhotto, reúne 41 poetas brasileiros nascidos entre 1970 e 1990 e traz o seguinte subtítulo: Antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira. É de se perguntar se jamais existiu uma antologia completa (não conheço nenhuma), mas talvez esse subtítulo tenha sido escolha estratégica para evitar críticas. Sendo a antologia incompleta — parece querer dizer a organizadora — ninguém deve se sentir incomodado com o fato de não constar dela este ou aquele nome.

O tom displicente do breve prefácio de Adriana Calcanhotto deixa transparecer uma má vontade com o debate (após entregar os originais à editora, ela como que “lavou as mãos”); o prazer que a leitura do livro pode proporcionar é o que mais importa. Mas não há como evitar certas indagações. Ainda bem que os poetas que ela sabiamente selecionou fazem as perguntas que todos nós devemos também fazer. Por exemplo: o que é poesia contemporânea? Poesia escrita por poetas de uma determinada faixa etária? Poetas jovens? Obviamente não é autor contemporâneo apenas quem nasceu nos anos 1970. Para evitar essa monstruosidade conceitual, talvez o subtítulo da antologia devesse ser: Antologia da poesia jovem brasileira. Num dos bons momentos do livro, Marília Garcia usa a locução “jovens poetas” para se referir aos autores da sua faixa etária que estão relendo os poetas marginais dos anos 1970. Os conceitos de moderno e contemporâneo são postos em xeque, num dos poemas mais lúcidos e reflexivos da poesia brasileira atual.

Outra questão que não deve passar em branco diz respeito à língua dos poetas brasileiros. Em que língua esses jovens se expressam? Esse tema é tratado no livro por Thomaz Ramalho, que discute os falares e os sotaques dos autores que se expressam em português. É outro momento inspirado da antologia e mais uma comprovação de que a organizadora delegou os debates importantes na área da criação poética aos próprios poetas, preferindo ela mesma permanecer calada ante suas afirmações candentes e reveladoras. Sabe-se que a poesia contemporânea brasileira não adota como idioma apenas o português. Há décadas as mesclas de línguas, como o portunhol selvagem, vêm alimentando tanto a poesia quanto a ficção nacionais. Além disso, é cada vez maior o número de jovens poetas indígenas que escrevem e publicam nas línguas de suas respectivas etnias.

Não fosse a colaboração de Thiago E, autor do comovente “o mar e o pano”, a prosa poética não estaria representada na antologia. O verso não é o único meio de expressão da poesia contemporânea, é bom lembrar. O poema em prosa e o poema visual são práticas corriqueiras na contemporaneidade, ao lado dos textos versificados. É evidente que a antologia organizada por Calcanhotto visa apresentar ao leitor comum apenas textos impressos nas páginas de um livro; não pôde, por isso, abarcar um leque maior e mais irreverente de formas poéticas vivas, como a performance, o poema-objeto etc. A minha crítica à seleção de poetas, que, adianto, é muito boa, refere-se à insistência em eleger o verso como a única expressão poética; a prosa surge como mera exceção. Sob esse aspecto, a antologia Esses poetas: uma antologia dos anos 90, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 2001, me parece mais diversificada e representativa, do ponto de vista formal (e geracional), do que a antologia de Calcanhotto. Será que os poetas jovens atuais teriam se tornado mais convencionais e previsíveis do que os poetas contemporâneos dos anos 1990? Não acredito nisso, pelas razões já apontadas.

Quanto ao elenco de autores de É agora como nunca, a escolha é acertada do começo ao fim, dentro do universo da poesia em verso. Os poemas iniciais são talvez os menos empolgantes, mas logo surgem os de Gregorio Duviver e de Agélica Freitas, cheios de verve, ironia e humor. A partir daí a antologia deslancha e não perde a qualidade até o final. O mérito é dos poetas, sem dúvida, mas também da organizadora. Os meus poemas favoritos, além dos já citados, são os de Ismar Tirelli Neto, uma saborosa visão do corpo, e o de Paulo César de Carvalho, que toca numa questão crucial: o repertório cultural dos poetas atuais. Ele elenca a canção popular, do jazz ao samba, enquanto, ao longo do livro, vão surgindo nomes canônicos, como Homero e Dante, ou Machado de Assis, numa demonstração de que cabe de tudo na “mala” (palavra do poeta citado) da contemporaneidade.

Quem me surpreendeu pelo fôlego e pelo tema (a morte), tratado com sarcasmo, foi Donny Correia. Destacaria ainda estes versos de Fabiano Calixto: “uma mosca decorando/a paz do prato sujo”, como um dos significativos da antologia.

* é poeta, ensaísta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Seu novo livro de poesia, A idolatria poética ou a febre de imagens, será lançado pela Iluminuras em março.