Melancolia e esperança: “O palhaço”, de Selton Mello – Alexandre Fernandez Vaz

Melancolia e esperança: “O palhaço”, de Selton Mello

Alexandre Fernandez Vaz *

“O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço”, diz Valdemar (Paulo José), o palhaço Puro Sangue, para Benjamin (Selton Mello), o palhaço Pangaré, censurando-lhe um mal desempenho no picadeiro e decretando seu afastamento, que será temporário, da trupe circense que circula pelo interior de Minas Gerais. A bordo de uma Kombi, de uma veraneio e de um caminhão caindo aos pedaços, viaja um pequeno circo a montar sua lona de lugarejo em lugarejo, sempre alcançados depois de horas em estradas poeirentas.

“O palhaço”, premiado filme de Selton Mello, é a segunda experiência, como diretor, do versátil e prolífico ator de cinema, teatro, televisão e comerciais, depois da estreia com o ótimo “Feliz Natal”. Se tristeza e malogro seguem como eixos nessa nova realização, o roteiro um tanto mais coeso, o tom lírico e os traços neorrealistas oferecem ao filme um novo tom, expresso de maneira nada casual no nome do circo e, entre tantas outras formas, na afetiva e breve participação de atores como Ferrugem, Moacir Franco e Jorge Loredo, todos excelentes, mas já pertencentes a uma memória kitsch do espetáculo de humor. Como, aliás, acontece com as artes circenses.

Não há animais adestrados, nem globo da morte ou trapezistas. O Circo Esperança de Puro Sangue e Pangaré reúne artistas mambembes que, com soldo recebido nota por nota, em cruzeiros – em mais uma amostra do espírito anacrônico da empreitada –, e com figurinos toscos, fazem mágica, fingem-se fortes, realizam algumas acrobacias. São constantemente apresentados em planos fixos e relativamente longos que mostram não apenas a lassidão e a vagareza do tempo no sertão, mas agregam-lhes uma tocante  profundidade psicológica. Formam uma família, com tudo de alegre, de solidário e de neurótico que habita essa forma social. Fazem, sobretudo, rir, já que são os palhaços, com a imantação que lhes é peculiar, os principais astros a se expressar perante a plateia, fazer as leves piadas de duplo sentido, satirizar a si mesmos no picadeiro, mas também a viver, fora dele, e com toda a melancolia possível, pequenas alegrias e traquinagens.

Misto de dramaturgia popular, práticas acrobáticas e espetáculo grotesco, o circo atualiza nossas idiossincrasias ao brincar com o baixo corporal e material, como sugere a leitura do grande linguista e teórico da cultura Mikhail Bakhtin. O que é levemente vergonhoso é matéria prima para o palhaço, o riso provocado pela suspensão das barreiras de interdição, sinal de seu êxito. Paulo José e Selton Mello interpretam os palhaços principais do circo com maestria, grandes atores que são. No duplo movimento de mimetizar seres que são por excelência miméticos, alcançam uma expressividade que os muitos closes apenas acentuam nos olhares e idiossincráticos trejeitos faciais.

Toda essa carga expressiva emerge também quando Benjamin deixa de ser Pangaré, mas não de ser palhaço, mantendo da vida civil uma prudente distância delimitada pela constante representação, apenas suspensa, mais como tentativa que como realização, naquela ocasião em que qualquer um se entrega, que é frente à mulher desejada. Associada à fantasia de uma vida longe das agruras e do pouco glamour do circo, Benjamin vê-se interditado no desejo, em mais um embaralhamento irônico entre vida e arte, já que a moça está por se casar com outro, interpretado pelo ator Danton Mello, irmão de Selton. Resta a Benjamin voltar a ser Pangaré.

Não é com tristeza que isso acontece, mas com a alegria de quem toma o corpo como brinquedo e reencontra seu parceiro a jogar com ele no território onde ambos se revelam: o picadeiro. Face a face, em um alegre duelo satírico, Pangaré e Puro Sangue recebem a juntar-se eles, já no desiderato da narrativa, “a mulher mais corajosa das Índias Ocidentais, Orientais e Judiciais”, a pequena Guilhermina (Larissa Manoela). Assumir o picadeiro com os dois astros é apenas o preâmbulo do belíssimo plano sequência protagonizado por ela e que finaliza esse road movie. Um plano harmônico, esperançoso, que termina sob a lona de circo, com o calor inclemente agora aliviado e, claro, sob a proteção de São Filomeno, padroeiro dos atores, músico, palhaços, como bem a menina aprendera. “O Palhaço” é uma homenagem ao circo, à tragédia e à comédia, à memória.

* Professor da UFSC; Pesquisador CNPq
alexfvaz@uol.com.br