O corpo obsceno de Nuno Ramos – Sérgio Medeiros

O CORPO OBSCENO DE NUNO RAMOS*

 

        Sérgio Medeiros**

 

Nuno Ramos

Nuno Ramos

Deitado num colchão, um velho solitário fala sem parar, na companhia apenas da reprodução de um quadro famoso. É um pobre clown, como ele próprio reconhece. Essa cena beckettiana está no novo livro do artista plástico e escritor Nuno Ramos, Sermões (Iluminuras, 2015, 208 p.), dividido em sete seções que narram a vida de um professor aposentado de filosofia obcecado por sexo e em busca de uma epifania, no Brasil e no exterior. Ao final do volume, o escritor oferece um breve guia de leitura, esclarecendo o percurso do protagonista: em Ouro Preto, o professor faz muito sexo sobre um tapete, depois vai a um congresso internacional, sua mãe morre, ele se muda para São Paulo, onde também faz muito sexo, desta vez num colchão no meio da sala, vai ao litoral, onde prega alguns sermões, volta para Ouro Preto etc.

A menção a Beckett não é inesperada, pois, num livro anterior, Ensaio Geral (Globo, 2007), Nuno Ramos “entrevista” o escritor irlandês, que afirma: “Posso, desde pequeno, ficar assim, como estou, na posição em que cair, indefinidamente.” O protagonista de Sermões jaz depois do gozo num tapete ou num colchão, na posição em que tiver caído, até a próxima cópula, quando se reerguerá para em seguida cair outra vez. A noção de “queda” parece orientar uma faceta formal do poema, que logo chama a atenção: a desconstrução de palavras. O objetivo é sempre destacar uma letra ou sílaba, e parece ser, à primeira vista, um procedimento ingênuo e esteticamente decepcionante. Assim, pululam no vasto poema, desde a página inicial, versos como: “Expele sua cola no um / bigo ou colo, cab / elo ou boca”; “Passo o polegar / s / obre o / vidro”; ou “ao lado póstum / o e o / posto”.

Esse procedimento alude, obviamente, àquilo que se abre durante a cópula, ao mesmo tempo que mostra, por meio do deslocamento das sílabas de um verso para outro, o escorrer, o pingar etc., remetendo ao gozo. O umbigo, explorado nesse jogo formal, será definido, mais tarde, como um ânus “bem curto”, numa espécie de discurso infantil. As letras e sílabas soltas acabam adquirindo, porém, no evoluir da trama (trata-se de um “quase” romance), real eficácia visual e sonora, e finalmente se tornam algo de necessário. De repente, o leitor inevitavelmente passará a se perguntar se Nuno Ramos não estaria, com humor peculiar, brincando o tempo todo com convenções e clichês literários. Quando o poema ameaça irritar ou decepcionar, surgem nele frases como “Adeus / literatura”, ou “voz vazando um verso ruim”. O leitor, alertado para a dimensão irônica de Sermões, perceberá que a lenga-lenga (expressão usada no poema) do professorzinho, que o tempo todo ameaça reduzir tudo a mera ladainha, é intencional, e que o kitsch não só é admissível no seu monólogo como também buscado afoitamente.

A vagina é chamada, sem nenhum constrangimento, de ostra, e, sobretudo, de figo. Haroldo de Campos, em Galáxias, já descrevera o órgão feminino como um mar (vulva frouxa) que se abre qual “uma fruta roxa […] no seu mel de orgasmo”, ou seja, um figo maduro; e o escritor francês Francis Ponge, cuja obra é de grande densidade visual, dedicou todo um livro à mesma fruta mítica (já estava no Paraíso), Comment une fugue de paroles et pourqoi. Na sua definição, o figo é uma pequena pera barroca. Sabemos que o barroco é importante para Nuno Ramos. Não por acaso, o seu livro começa em Ouro Preto, perambula por Londres e São Paulo e depois volta para lá, quando a Igreja do Rosário ressurge nos versos e aparece numa fotografia inserida no poema, já perto do seu fecho. O figo, para Ponge, é acima de tudo uma igreja ou capela, e, quando aberto, o altar cintila lá dentro. Assim, o uso de um cliché literário pode sugerir, de repente, associações interessantes, como, imagino, seja essa que propus, que alia o banal ao barroco, dois ingredientes destes Sermões.

O poema afirma que o corpo do herói é um teatro onde todos os monólogos foram ditos. Mas não se trata de um indivíduo decrépito que estaria condenado, como certos personagens de Beckett, a falar sem parar, mesmo quando fisicamente paralisados, ou a ouvir incessantemente no escuro ou na penumbra uma voz cuja origem é indefinida. É certo que o professor de filosofia ouve vozes e que a sua solidão é lancinante, mas ele é alguém que também se orgulha de suas proezas físicos e de ainda ser capaz, quando encontra parceiras propícias, de inserir “o pau / na poça estreita”. Ele buscaria assim a epifania, que se situaria, conforme ele deixa entrever, entre sardas (corpos) e estrelas (cúpulas, ou cópulas). A prosa e os versos de Sermões não poupam o leitor da descrição minuciosa de seus feitos sexuais, que vão se sucedendo no livro sem grandes surpresas. É acertada esta ponderação do herói: “eu era a desaceleração prosaica do grande poema”. As cópulas são rotineiras e previsíveis (nenhuma orgia é sugerida, anunciada ou almejada), e seu traço característico talvez seja causar certa perplexidade no próprio professor, um homem decididamente pouco atraente: “Ela dorme satisfeita, incr / ível, goz / ou comigo quando podia / ter um Apolo inteiro para si”.

Não há elementos ostensivamente pornográficos no livro erótico do Nuno Ramos, e tampouco perversões, nenhum sadismo, nenhum masoquismo. Quando o protagonista, de volta a Ouro Preto, sente-se “tão bem” a ponto de desejar transformar-se num gigante viril para poder transar literalmente com a igreja barroca, assistimos a uma cena pantagruélica que é antes de tudo hilária, uma maneira saborosa de “glorificar” a nave do monumento mineiro. Parece-me que o obsceno dessa e de outras cenas de sexo do livro residiria, acima de tudo, na nudez dos amantes, na medida em que esta exporia, discretamente, é verdade, as mazelas do corpo humano. Ninguém é totalmente monstruoso, caberia enfatizar, entre a cúpula e o tapete. Neste, aliás, sobressai a imagem de um tigre atacando ovelhas, onde o herói ama deitar-se de costas, pacificado, olhando para o alto.

Quando o herói se despe, aparecem as dobras de banha e os enxames de pintas, sem contar que a sua pança está cada vez mais frouxa, ou menos elástica; a mulher tampouco é sempre uma beldade, a julgar por esta descrição cruel de uma parceira casual do protagonista: “Ela tem um viveiro adorável / de celulite, treliça que move / o vinco abaixo da calcinha”. O português Helberto Helder, falecido recentemente, ao falar de poemas de amor, afirmou que, na idade provecta, tudo é obsceno: “não só amor, poema, desamor, mas setenta e sete em si mesmos / anos horrendos, / nudez horrenda”. Se o corpo decrépito, ou já maduro, não é uma epifania, mas algo de deplorável, o poema de Nuno Ramos nos permite vislumbrar, no entanto, naquela que talvez seja a sua melhor parte, uma possível sublimidade do ser, e curiosamente (ou previsivelmente) numa cena que parece saída de um filme B, como frisa o poeta. Depois de descrever dois conhecidos filmes clássicos, Sermões se encerra com uma aventura ardente numa academia de ioga, onde aparece uma professora hermafrodita, a personagem mais inesquecível do livro, com nádegas redondas e grandes, “como duas carecas ou dois queijos, cobertos pelo calção”. Deliciosa e surpreendente, a breve narrativa consegue levar o leitor ao cerne da questão, ao mostrar o (re)encontro do professor consigo mesmo, graças à lição de uma mestra nada convencional (a professora, ao mesmo tempo homem e mulher): “—É bom?, perguntei. / — Muito, ela disse, sentando-se ainda nua na minha frente, cruzando as pernas em xis e colocando as costas das duas mãos sobre as coxas.”

 

* Esta resenha foi publicada originalmente, num formato menor, no jornal “O Estado de São Paulo”.

**Sérgio Medeiros é poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Publicou, entre outros livros, Totens (2012), O choro da aranha etc. (2013) e O fim de tarde de uma alma com fome (2015).