Cruz e Sousa: um símbolo e uma poética – Elys Regina Zils

Cruz e Sousa: um símbolo e uma poética

Elys Regina Zils*

 

Cruz e Sousa

Cruz e Sousa

 

  1. Introdução

 

Nesta pesquisa trataremos dalírica de Cruz e Sousa e buscar-se-á examinar questões estéticas literárias partindo do movimento Simbolista e chegando a um estudo mais amplo. Para tal, iremos nos ater a obra Broquéis do poeta catarinense. O Simbolismo surge em um período de transição do século XIX ao século XX, em um momento de crise social e cultural. Esta escola literária nasce na França em reação ao Realismo, Naturalismo e Parnasianismo e foi fundamental para as inovações posteriores do Modernismo. O poeta catarinense, diante das peripécias da vida, encontra sua voz através dos símbolos para promover uma crítica aos padrões literários e sociais tradicionais, cabendo ao símbolo traduzir seu mundo sensível e aconsciência crítica.   Contudo, a poética de Cruz e Sousa não teve aceitação da crítica brasileira da época.

 

  1. Aproximação ao movimento simbolista

 

O movimento simbolista tem seu manifesto datado de 1885, e se inicia afirmando que, como todas as artes, a literatura também evolui, uma “evolução cíclica com as voltas estritamente determinadas que se complicam com as diversas modificações trazidas pela marcha dos tempos e pelas revoluções dos meios” (MORÉAS, 2009, p. 79).

O Simbolismo surge em reação ao Realismo, Naturalismo e Parnasianismo; e responde ao pensamento materialista e cientificista da época. O Manifesto simbolista declama: “inimiga do ensino, da declamação, da falsa sensibilidade, da descrição, a poesia simbolista busca: vestir a Ideia de uma forma sensível que, entretanto, não terá seu fim em si mesma, mas que, servindo para exprimir a Ideia, dela se tornaria submissa” (MORÉAS, 2009, p. 81). Assim, ao rejeitar as características dos movimentos anteriores – ao rejeitar o descritivismo e as formalidades – o Simbolismo resgata a subjetividade romântica a fim de revalorizar a existência interior do homem. O Manifesto ainda afirma que:

a Ideia, por seu lado não deve se deixar ver privada das suntuosas amarras das analogias exteriores; porque o caráter essencial da arte simbólica consiste em não ir jamais até a concepção da Ideia em si. Assim, nesta arte, os quadros da natureza, as ações dos homens, todos os fenômenos concretos não saberiam manifestar-se: estão aí as aparências sensíveis destinadas a representar suas afinidades esotéricas com as Ideias primordiais. (MORÉAS, 2009, p. 81)

Deste modo, a realidade exterior é utilizada apenas como meio para a Ideia. Os simbolistas se muniam de elementos do mundo concreto – como natureza significante – para metáforas e analogias a fim traduzir as verdades do interior do homem, estas que só se alcançaria por meios indiretos.

Os símbolos sempre existiram ao longo da história do homem, mas o Simbolismo expande sua concepção, característica que contribui para este movimento ser considerado fundamental para a poesia moderna e vanguardista, das quais podemos citar o surrealismo[1]. O Simbolismo também promove o espírito de renovação do qual as vanguardas irão se nutrir.

O Simbolismo surge em reação a poesia descritivista predominante até então, mas não podemos deixar de mencionar o momento de descontentamento vivido pelo homem do final do século XIX como um dos estopins. Neste período, além de surgir o Positivismo de Auguste Comte, que afirma que o conhecimento cientifico é a única forma de conhecimento verdadeiro, a França, após a captura de Napoleão, vivia a Terceira República e um intenso desenvolvimento industrial e científico. Para Álvaro Cardoso Gomes (1985, p. 7), cria-se uma obsessão pelo consumo que resulta no “princípio de que tudo é transitório, inclusive os critérios de gosto e de arte. Os objetos artísticos, como as mercadorias, passam a ser consumidos vorazmente e, por causa disso, têm curta duração”. Como resultado “o homem passa a ter a sensação de que vive num mundo fragmentário e de valores efêmeros” (GOMES, 1985, p. 7). A linguagem subjetiva dos simbolistas retrata esta dimensão fragmentária do sujeito e a aproxima da posterior lírica modernista.

A partir deste cenário, podemos pensar o Simbolismo em relação ao Romantismo, “os românticos queriam inaugurar um mundo novo, enquanto os simbolistas sentiam-se representantes de um mundo em decadência” (CARPEAUX, 1964, p. 2590). Os simbolistas reagem a poesia anterior e encontram no símbolo/ inconsciente um lugar para superar as relações da realidade cotidiana.

Neste sentido, a poesia simbolista contribuiu para as inovações da técnica literária que vieram com os movimentos posteriores. A sensação de fragmentação leva o poeta a uma sintaxe mais desprendida, na ausência de alguns nexos e soma de elementos – que são elementos do fluxo de consciência utilizado pelo surrealismo. Além da acumulação de imagens, em Cruz e Sousa a linguagem fragmentada está evidente na suspensão dos versos seguidos por reticências, como no soneto “Música Misteriosa” em que os versos finais de cada estrofe terminam com reticências.

Inclusive, o afastamento da racionalidade pregada na época, levou a ilogicidade das palavras. Este sujeito por não se identificar mais com o mundo comum, afasta-se “dos objetos para dar-lhes novos valores e significados, uma vez que ele está na condição de ‘desintegrado’ em relação aos valores estabelecidos pela sociedade, buscando, portanto, no sonho e no inconsciente resgatar o seu caminho” (MEDEIROS, 2015, p. 26).

Entre os principais simbolistas destaca-se o escritor Charles Baudelaire, com sua obra Flores do Mal, de 1857. No Manifesto Simbolista considera-se a Charles Baudelaire como o precursor do movimento, a “Stéphane Mallarmé, o empossado do sentido do mistério e do inefável; o Senhor Paul Verlaine quebrou em seu benefício os cruéis entraves do verso que os dedos prestigiosos do Senhor Théodore de Banville haviam amaciado antes” (MORÉAS, 2009, p. 80).

No Brasil, o Simbolismo aparentemente não teve grande repercussão. “O Simbolismo brasileiro é um movimento negligenciado pelos críticos quanto ao seu valor histórico e cultural e até hoje é pouco estudado, porém é no seu bojo que se encontra a renovação da poesia moderna” (MEDEIROS, 2005, p. 26). Neste período o Brasil vive mudanças com a decadência da monarquia, em 1889 é Proclamada a República; e as lutas abolicionistas tem relevâncias, em 1888 é assinada a Lei Áurea. Neste contexto, ganha destaque o tema do nacionalismo fato que levanta uma das críticas que se faz ao movimento simbolista, que é justamente “de se ter alheado às questões nacionais” (LIMA, 2014, p. 6). De caráter universalista e de poesia subjetivista o movimento simbolista não tinha nenhuma pretensão em questões nacionais.

Outra explicação para o baixo respaldo do Simbolismo em terras brasileiras é de Renata Lima, ao afirmar que “se considera que o simbolismo não teria constituído uma ‘época literária’ autônoma, por ter surgido no momento do auge realista e por se ter misturado ao Parnasianismo, também da mesma época” (LIMA, 2014, p. 7). Recordamos que o Parnasianismo tinha grande aceitação com obras de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto Oliveira, e perdurou até a Semana de Arte Moderna, em 1922.

O fato é que mesmo diante desta conjuntura, alguns poetas se rebelam do realismo e do parnasianismo e formam o grupo que ficou conhecido como os “decadentistas” em busca de renovação do convencionalismo literário existente. Faziam parte do grupo, além de Cruz e Sousa, Oscar Rosas, Alphonsus Guimaraens e Emiliano Peneta. Em 1893, Cruz e Sousa publica Missal (prosa poética) e Broquéis (poemas), esta última é considerada o marco simbolista no Brasil. Porém sua obra não teve o reconhecimento merecido na época.

 

3. Observações sobre Broquéis de Cruz e Sousa

 

O poeta Cruz e Sousa nasce em 24 de novembro de 1861, em Florianópolis – antiga Nossa Senhora do Desterro – e recebe a alforria aos quatro anos. Fora adotado como “filho de criação” pelo Marechal Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa, graças a esta herança de berço estudou no Ateneu Provincial Catarinense e aprendeu francês, latim, grego e inglês. Em 1884, ocorre um fato significativo em sua história, é nomeado promotor de Laguna pelo presidente da província de Desterro, mas é impedido de assumir o cargo por questões raciais. No ano seguinte publica sua primeira obra, Tropo e Fantasias, escrita com Virgílio Várzea.

Parte para o Rio de Janeiro, capital da República, em 1890, na esperança de encontrar um cenário melhor, porém segue sendo marginalizado. Na cidade carioca, publica suas obras Missal e Broquéis, já mencionadas; conhece Nestor Vítor que foi responsável por divulgar sua obra e participou do grupo de decadentes. Cabe lembrar que o Simbolismo não foi aceito pelos escritores e críticos da época, recebendo severas críticas. Depois de várias adversidades, sem reconhecimento, Cruz e Sousa morre de tuberculose, em 1898.

Diante das dificuldades da vida, o poeta catarinense encontra nos símbolos um meio de expressão. “O símbolo torna-se, então, um suporte que lhe permite extrair do inconsciente a energia para lutar contra a degradação social e psíquica que lhe é imposta” (MEDEIROS, 2005, p. 9). Broquéis, uma das obras simbolistas mais importantes do Brasil, está composta por 54 poemas, predominando a forma de soneto. O poema “Antífona”, que abre o livro, “é uma espécie de profissão de fé simbolista, fornecendo, já na primeira estrofe, as coordenadas básicas do cromatismo, sonoridade e sugestão dessa escola, que tudo dilui no vago, abstrato e indefinido” (JUNKES, 2008, p. 29). Um dos poemas mais significativos do Simbolismo, ainda preserva algumas características parnasianas; “Antífona” está composto por onze quadras de versos decassílabos (predominando o verso heroico), sendo a primeira e a última estrofe com rimas abraçadas e as demais estrofes com rimas cruzadas.

A fim de comprovar o formalismo presente nos poemas de Broquéis, para este ensaio, analisamos outros poemas: “Sonho Branco”, “Tortura Eterna”, “Primeira Comunhão, “Noiva da agonia” e “Música Misteriosa”. Nestes poemas encontramos a forma de soneto decassílabo, seus versos muitas vezes são heroicos, mas com presença de sáficos; suas rimas compreendem o esquema abraçadas, abraçadas, emparelhadas e cruzadas (ABBA – ABBA – CCD – EED). Características formais estas que aproximam os poemas do Parnasianismo.

Destacamos que ao negarem o estilo parnasiano, os simbolistas abandonaram o culto a métrica, a marcação de sílabas poéticas, as rimas e os cortes regulares; mas o que existiu foram vários estilos próprios dentro do grupo Simbolista, “o Simbolismo não é um movimento homogêneo. Havia vários simbolismos, quase tantos quantos eram os poetas simbolistas” (CARPEAUX, 1964, p. 2594), como podemos perceber por Cruz e Sousa que não foi fiel a estas características.

Cabe chamar a atenção para o fato que se o Simbolismo pode empregar certos formalismos do Parnasianismo, mas se difere quanto as temáticas e o tratamento sonoro. Assim, independentemente de ser verso livre ou não, Cruz e Sousa tem como característica marcante a musicalidade simbolista.  O poeta proporciona o ritmo por meio de vários recursos, como a aliteração, a assonância, a fluidez da frase – caráter de oralidade e a soma de elementos –, e as rimas também estavam à disposição para alcançar os efeitos sonoros do poema. Em “Antífona” percebemos, além do esquema de rimas das quais muitas são rimas ricas (palavras de classes gramaticais diferentes), as aliterações que se dão no interior do mesmo verso (de um modo mais tradicional) ou que perpassam todo o poema, em “m”, “n” e em “v”. Em “Antífona” Cruz e Sousa usou de grande número de palavras no plural, que contribuem com o ritmo pela aliteração em “s”.

A assonância é outra figura de linguagem que está presente, como podemos comprovar já no primeiro verso de “Antífona” a assonância em “a” (“Ó Formas alvas, brancas, Formas claras”), no primeiro verso de “Noiva da Agonia” (“Trêmula e só, de um túmulo surgindo,”) ou como em “Tortura Eterna” que o “u” perpassa todo o poema.

O ritmo dos poemas também está construído por meio das repetições de palavras ao longo dos versos. Podemos notar no poema “Primeira Comunhão” que a palavra “véu” é repetida três vezes nos dois primeiros versos “Grinaldas e véus brancos, véus de neve, / Véus e grinaldas purificadores,” ou como no poema “Sonho Branco”, onde ocorre anadiplose nos versos “Segues radiante, no esplendor perfeito, / No perfeito esplendor indefinido…”.

Outra estratégia de Cruz e Sousa, típica do Simbolismo, é o uso de maiúsculas para destacar algumas palavras, como podemos perceber no primeiro verso acima citado ao escrever “Formas”, ou em casos como “Formas do Amor, constelarmente puras, / De Virgens e de Santas vaporosas…”. Este uso de maiúsculas remete a concepção platônica de Ideia.

Em Broquéis encontramos o uso de justaposição de imagens, como podemos ver em “Antífona”, pois seus versos estão construídos partindo de uma soma de elementos com raros verbos encontrados em todo o poema, o que também promove um ritmo característico ao poema, como podemos notar na quarta estrofe:

Visões, salmos e cânticos serenos,

Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes…

Dormências de volúpicos venenos

Sutis e suaves, mórbidos, radiantes…

Cabe frisar que a imagem simbolista é valorizada como uma representação simbólica que se dá de modo vago e de tom misterioso. Neste sentido o Simbolismo se difere dos românticos. Esta sensação de imprecisão se dá por meio da soma de imagens abstratas, nebulosas, como podemos perceber nos versos iniciais de “Antífona”:

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!…

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas…

Incensos dos turíbulos das aras…

Nesta estrofe encontramos apenas as evocações a estas imagens, mas não temos uma ação concreta para nos orientar. Esta sensação de estar se transportando por uma leitura imprecisa também acontece pelo uso da sinestesia, que consiste em combinar sensações de diferentes sentidos. Segundo Gilberto Mendonça Teles:

a partir do renascimento foi-se generalizando a ideia de uma identidade superior entre as diferentes linguagens artísticas. Havia a crença em uma linguagem universal e mágica, através da qual a impressão percebida por um dos sentidos era transmitida aos outros, o que evoluiu para a noção de sinestesia.  (TELES, 1973, p. 59)

Em “Antífona” encontramos esta figura de linguagem chamada de sinestesia, no verso “Harmonias da Cor e do Perfume…”, outro exemplo temos em “Noiva da Agonia” com o verso “Trazes na face os frios tons magoados”, ou em “Música Misteriosa” com “Que abris a doce luz de alampadários”. Muitas de suas imagens também evocam o misticismo e o reino dos céus, partindo da ideia de correspondências, do poema “Correspondances” de Charles Baudelaire, ao pregar a aproximação entre o mundo material e espiritual, entre o “Carnal e Místico” (título de um dos poemas de Cruz e Sousa), “que problematiza a questão da referencialidade da linguagem com a poética do vago e da sugestão. Desde então, acentua-se a visão decadente do mundo moderno, ao mesmo tempo em que se valoriza cada vez mais a autonomia do texto poético” (LIMA, 2014, p. 5).

Esta aproximação com o espiritual está presente por meio do campo lexical religioso. Em “Antífona” encontramos as palavras “turíbulos”, “réquiem” e “aras” que também está presente no poema “Primeira Comunhão”, neste encontramos referências a hóstia, e o título do poema “Cristo de Bronze” são claras referências ao vocabulário religioso.

 

  1. À guisa de conclusão

 

Podemos dizer que Cruz e Sousa é imagem de um artista em sua época. Ao mesmo tempo que em que se apropria das novidades artísticas, preserva características da tradição. O poeta assimilou o Simbolismo de modo que significou a abertura a possibilidades que precisava para aludir a própria identidade por meio de símbolos. Sua literatura torna-se heterogênea no Brasil ao se nutrir do Simbolismo e relacionar-se com outras tendências como Romantismo, Parnasianismo, característica que o torna um poeta com traços modernista.

Neste processo de análise seguimos a direção do Simbolismo, mas sem a intenção de enquadrar o poeta e deixá-lo quieto nesta classificação. Neste sentido, chamamos a atenção para o curso evolutivo da literatura. Cruz e Sousa ao transitar por diferentes correntes estéticas cria sua própria configuração. Ainda, a originalidade de Cruz e Sousa está na sua maneira de ver o mundo, na carga emotiva de suas palavras, e na força dos seus símbolos poéticos que de particularidades da realidade do poeta se tornam expressões de potência coletiva na forma poética. Isso tudo com uma linguagem fortemente musical.

 

REFERÊNCIAS

 

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1964. v6.

GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista. São Paulo: Cultrix, 1985.

 

JUNKES, Lauro (Org.). Cruz e Sousa Simbolista: Broquéis Faróis Últimos Sonetos. Jaraguá do Sul, 2008.

 

LIMA, Renata Ribeiro. As poéticas simbolistas em língua portuguesa: estudo comparativo das obras pioneiras de Eugénio de Castro e Cruz e Sousa. Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2014.

 

MEDEIROS, Maria Lúcia de. A imaginação simbólica em Cruz e Sousa. 2005. 108 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Programa de Pós-graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

 

MORÉAS, Jean. Manifesto Simbolista. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. Cap. 2. p. 76-83.

 

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

 

[1] A Phala nº1, revista do movimento surrealista, menciona a Cruz e Sousa como um dos predecessores do surrealismo na poesia brasileira.

* Mestre em Estudos da Tradução pela PGET/UFSC e graduada em Letras-Espanhol pela UFSC.