MAUS E A DESTRUIÇÃO DA FÁBULA – Larissa Ceres Lagos

MAUS E A DESTRUIÇÃO DA FÁBULA

 

Larissa Ceres Lagos*

 

Fábula é um gênero literário geralmente voltado para o público infantil (e justamente por isso costuma concluir a história com um “fundo moral”, para educar) cuja narrativa é curta, conta com animais como personagens com características antropomórficas. Ainda que narrem situações tensas, as fábulas são envoltas de uma atmosfera lúdica para fazer analogia com o cotidiano.

Apesar de contar com animais, Maus: a história de um sobrevivente é uma obra escrita em formato de História em Quadrinhos (HQ) por Art Speigelman, que começou a ser publicada em 1980 na revista Raw, destrói a ideia de fábula como a conhecemos. Não é uma história breve e definitivamente não é lúdica.

Esse sub-gênero das HQs, muitas vezes chamado de graphic novel, difere na noção geral de HQ difundida no Brasil. Aqui, as Histórias em Quadrinhos que mais ocuparam espaço nas bancas foram as da Turma da Mônica. Já na tradição americana, faz-se necessário apontar que são as histórias de super-heróis, muito populares a partir da década de 1940 devido aos combates da II Guerra Mundial.

No entanto o gênero cresceu significativamente tanto na questão da ilustração quanto no argumento do texto. Os chamados quadrinhos underground, definidos por Hatfield: 

[…] as those comics that can trace their origin or motivation to the countercultural underground comix movement of the 1960’s and 1970’s, which inspired work that “[flouted] the traditional comic book’s overwhelming emphasis on comforting formula fiction”. He sees today’s alternative comics as “driven by the example of underground comix” – a movement that launched suck luminaries as R. Crumb and Art Spiegelman – but that ultimately, after dwindling of the underground in the mid-to-late 1970’s, “cultivated a more considered approach to the art form, lass dependent on the outrageous gouging of taboos”.(apud CHUTE, 2006, p. 1016-1017) [1]

Art Spiegelman nasceu em 1949 na Suécia e desde cedo mostrou interesse por quadrinhos. Foi ilustrador e capista da revista New Yorker, posteriormente editor e co-fundador da revista Raw. Spiegelman é filho de sobreviventes dos campos de concentração, fazendo de Maus uma obra também biográfica.

A obra, basicamente dividida em fragmentos do “presente” e do “passado”, quando Art questiona o pai sobre sua vida, começando em meados dos anos 1930 até algum tempo após o final “oficial” da guerra, em 1945. No entanto, a HQ ultrapassa a categoria de relato, pois através do uso de diversas técnicas narrativas e gráficas, Art Spiegelman constrói muito mais humana e crível que dados quantitativos e datados da época.

Ainda que tenha gerado uma sensação de estranhamento na época da sua publicação – principalmente pela dificuldade de classificação – ganhou diversos prêmios após a compilação dos capítulos em dois volumes, o principal deles foi o Pulitzer em 1992.

Experimentações e particularidades do gênero HQ

Maus apresenta diversos aspectos inovadores, tanto na questão narrativa quanto nas técnicas gráficas. Um ponto interessante para a discussão é sobre a dificuldade de classificação de muitos elementos narrativos, como por exemplo, se ela se trata de uma história biográfica, autobiográfica, de memórias ou, inclusive, ficção. Obviamente que cada uma dessas categorias possui argumentos para reclamar a classificação, porém, caso realmente Maus fosse classificada em algum desses quesitos, seria necessária uma grande dose de obliteração de qualquer outra categoria.

Biografia por contar a história de Vladek (e neste caso, seu pai deveria ser considerado o protagonista); autobiografia, por mostrar o relacionamento com seu pai, mãe, esposa, bem como com questionamentos sobre sua própria vida; memórias por ter seu cerne composto por fragmentos de memórias de seu pai e ficção por caracterizar todas as pessoas presentes na obra como personagens.

Quanto à estrutura, existe também o problema temporal. A história é focada em diversos fragmentos de memória em que presente e passado se mesclam não só nos momentos de relato, mas também, paradoxalmente, na própria composição da obra.

O que seria o “presente”, na verdade é um passado mais recente em que Art se retrata desenhando, entrevistando o pai, conversando com sua esposa e se questionando sobre a própria composição da HQ. Inclusive, em determinado ponto da obra, Art reproduz Prisioneiro do Planeta Inferno, uma HQ sua publicada originalmente em 1973, ilustrando o suicídio da mãe (que diferentemente de Maus, onde os seres humanos são ilustrados como animais, dependendo de sua “raça”, Prisioneiro do Planeta Inferno traz a caracterização humana dos personagens).

Analogamente, é justamente esse o primeiro ponto que chama atenção em Maus, a caracterização das pessoas como animais onde os judeus são representados por ratos, alemães são gatos, poloneses são porcos e franceses são sapos. À parte a infinita gama de discussões dos mais diversos aspectos decorrentes dessa alegoria, é interessante comentar que apesar dessa representação, existe muito pouca diferença ente os “animais” entre si. Os ratos, a não ser pelas suas roupas e eventualmente algum adereço (como óculos, lenço ou brincos), são muitíssimos parecidos.

Ainda com relação às ilustrações, além da particularidade da representação dos personagens como animais, ainda podemos perceber que o desenho de Art Spiegelman é um tanto “sujo”. Pois seu traço e ligeiramente grosseiro em preto e branco (pois somente a capa é colorida) é necessário para o sentimento de desconforto, contrastando com a fábula criada por Walt Disney com o Mickey Mouse (inclusive, citado na epígrafe do segundo volume de Maus em um artigo publicado na região da Pomerânia em meados da década de 30).[2]

Maus 1

Figura 1 [p. 189]

Sobre a publicação da obra, esta foi dividida em dois volumes. A primeira parte (dividida em seis capítulos) chama-se Meu pai sangra história, que aborda o período de meados dos anos 30 até o inverno de 1944, e a segunda (composta por cinco capítulos) E aqui meus problemas começaram, relatando os eventos que sucederam ao fim da guerra até a ida de Vladek e Anja (pais de Art) para os Estados Unidos. Desse modo, com tantas mesclas de elementos da narrativa, na tentativa de não incorrer no erro de rotulação, parece que a melhor saída é não cair na tentação de classificar Maus.

Eco (2005, p.151) diz “O fato de que uma solução estilística seja tomada de empréstimo a outros campos não lhe impugna o uso, desde que a solução venha integrada num contexto original que a justifique”. O número de possibilidades de leitura dessa HQ pode ser absurdamente vasto, levando em conta que não só o traço, mas o próprio argumento, diagramação, traço e fontes são só alguns exemplos de elementos plausíveis de análise.

A mistificação da ideia de que a indústria da cultura de massa somente produz obras medianas que beiram a superficialidade do estereótipo, prejudica a noção de produção artística contemporânea. Ainda que as HQs sejam um produto dessa indústria daí porque ante a afirmação de que a finalidade comercial e o sistema de distribuição do produto “estória em quadrinhos” lhe determinariam a natureza, poder-se-ia responder também nesse caso, como acontece sempre na prática da arte, o autor de gênio é que sabe resolver os condicionamentos em possibilidades. (ECO, 2005, p.158) – grifo do autor

 

Níveis de aceitação e verdade entre o discurso histórico e o literário

Ainda nos dias de hoje, existe certa “glamourização” impulsionada por um mercado de exploração capital da Segunda Guerra Mundial. O que antes poderia ser entendido como expressão artística do Holocausto, tornou-se uma grande fonte a ser consumida pelas pessoas.

Sobre isso, Curi (2009, 141) aponta que

Isso nos remete ao pensamento de Adorno do qual nos fala Gagnebin (2006, p. 79) a respeito da necessidade de ponderar duas exigências paradoxais à “arte depois de Auschwitz. A saber: evitar o esquecimento e o recalque (repetição pela rememoração), mas não transformar essa lembrança em mais um produto cultural. Isso quer dizer que, ainda segundo a análise que a autora faz dos escritos de Adorno, se deve lutar contra uma ‘estilização artística’ de Auschwitz para torná-lo representável, assimilável e digerível”

A respeito dessa questão, Maus foi concebido, antes de qualquer intenção capital, uma espécie de reconciliação paterna. Pois na segunda parte, depois do sucesso da publicação dos seis primeiros episódios, Spiegelman aparece em uma conversa com seu psicólogo falando sobre a tensão à qual se colocou ao publicar uma história cujo pano de fundo é a Segunda Guerra Mundial.

Maus 2

Figura 2 [p. 202]

O que concede ao texto de Art Spiegelman a alcunha de artístico é porque consegue realizar o desencadeamento de emoções necessárias para a catarse. É Literatura porque sua forma e objetivos são voltados para a representação que Art fazia das descrições de Vladek, ainda que, por ser um texto com grande capacidade de transportar sentimentos ao leitor, aparenta ser um texto com mais verdade do que aquela que encontramos nos livros que falam sobre o evento.

A obra, não com a intenção de adquirir status de “verdade” que o discurso histórico impõe, acaba dando condições para uma maior aceitação do que seria o real. É importante notar que a que História deve ser diferenciada da função de arquivo, já que – salvo em eras onde a informação é escassa ou praticamente inexistente e a interpretação de elementos geográficos ou psicossociais mostra-se mais hipotética – a mera apresentação de informações factuais já leva a um tipo mais velado de interpretação. Admitir formalmente que, muito além da função de pesquisa, a História deve ser interpretada e que suas fontes são sujeitas a diferentes pontos de vista (ainda que a imparcialidade seja o esperado).

Um exemplo simplório de interpretação histórica diferentemente da “real” aparece quando seu pai está relatando a experiência de ir de Auschwitz para Auschwitz II (Birkenau) ajudar a reparar alguns telhados nos alojamentos femininos, Art comenta com Vladek sobre a orquestra que tocava no início do dia de trabalhos forçados e no fim. Factualmente essa orquestra existiu, pois existem registros (e inclusive obras) relatando o evento[3]. No entanto, Vladek relata que não se recorda de nenhuma música ou orquestra e que só lembra da marcha, de maneira que, para ele, a orquestra nunca existiu [Figura 3].

Spiegelman ainda acrescenta elementos que pessoais que criam as condições para tornar possível o pacto de realidade entre o texto e o leitor. Enquanto o pai torna-se um personagem simpático nos relatos, quando é narrado o “presente”, percebemos que Vladek, na verdade, é um sujeito com muitos defeitos, inclusive preconceito contra afro-descendentes.

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Figura 3 [p.214]

A respeito do contraste histórico do literário, Hayden White (1991, p.6) diz

Em resumo, o discurso histórico não deveria ser considerado primordialmente como um caso especial dos “trabalhos de nossas mentes” em seus esforços para conhecer a realidade ou descrevê-la, mas antes como um tipo especial de uso da linguagem que, como a fala metafórica, a linguagem simbólica e a representação alegórica, sempre significa mais do que literalmente diz, diz algo diferente do que parece significar, e só revela algumas coisas sobre o mundo ao prego de esconder outras tantas.

 

Conclusão

O fato de Art Spiegelman falar sobre o sofrimento dos judeus durante a ocupação nazista na Polônia com sensibilidade e sem pretensão de criar uma verdade histórica (pois sua maior preocupação não são os eventos históricos, e sim a história de sua família) imprime ao leitor uma conexão muito maior com a realidade que meras menções aos eventos que desencadearam ou sucederam a ascensão de Hitler ao poder.

Certo é que não se entende campos de concentração, a não ser que se tenha passado por algum. Aprende-se e explica-se o que foram e como funcionavam, desmontam-se em detalhes e, no entanto o que sobram são menções a pessoas que não conhecemos, números e porcentagens.

O mesmo terror pelo que o personagem Artie (assim é como Art Spiegelman se representa na narrativa) em não entender Auschwitz, o suicídio da mãe, o gênio difícil do pai, e é através da potencialização dessas imagens ( tanto os detalhes sobre como Vladek conseguiu sobreviver – não  pela força, e sim boas doses de esperteza e sorte – seus  problemas de saúde e toda a carga remanescente da época), além das metáforas e experimentalismos gráficos que contam uma história que só poderia ser explicada dessa maneira que o leitor se identifica. Art Spiegelman é um fingidor, tal qual Álvaro de Campos.

 

Referências

CURI, Fabiano Andrade. Maus, de art spiegelman: uma outra história da Shoah.

http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/sinteses/article/viewFile/1223/908

Acesso em: 20/02/2016

CUTHE, Hillary. DECODING COMICS. MSF Modern Fiction Studies, volume 52, number 4, winter 2006 pp. 1014-1027 (review). Published by John Hopkins University Press, DOI: 10.1353/mfs.2007.0012.

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Trad. Pérola de Carvalho 6 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.

SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. Trad. Antônio de Macedo Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

WHITE, Hayden. Teoria Literária e Escrita da História. Trad. Dora Rocha. Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 7, n. 13, 1991.

 

[1] […] assim como esses quadrinhos que podem traçar sua origem ou motivação ao movimento “comix” underground de contra-cultura dos anos 1960 e 1970, que inspiraram trabalhos que “[à despeito] da tradicional e impressionante confortável fórmula de ficção dos quadrinhos”. Ele vê os quadrinhos alternativos de hoje como “movidos pelo exemplo dos comix underground” – um movimento que lançou  tais lumiares como R. Crumb e Art Spiegelman – mas que ultimamente, após duelar no sub-mundo no meio-para-o-fim dos anos 1970 “cultivaram uma abordagem mais considerada de forma de arte, menos dependente das formas ultrajantes dos tabus vulgares” [tradução minha].

[2] “Mickey Mouse é o ideal mais lamentável de que se tem notícia […] As emoções sadias mostram a todo rapaz independente, todo jovem honrado, que um ser imundo e pestilento, o maior portador de bactérias do reino animal, não pode ser o tipo ideal de animal […] Abaixo a brutalização do povo propagada pelos judeus! Abaixo Mickey Mouse! Usem a Suástica!” [p.164]

[3]http://holocaustmusic.ort.org/places/camps/camp-orchestras/

 

* Doutouranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC).