Um pássaro sobre o frio – Afonso Jr. Ferreira de Lima
Um pássaro sobre o frio
Afonso Jr. Ferreira de Lima
Ao professor James Green.
Um dia frio. Um homem (62 anos).
Acorda no meio da noite. Vai ao banheiro.
Ele liga a luz. Pega uma carta.
Seus amigos estão na sala.
Um jovem cruza a sala – Até mais, diz e bate à porta.
Cada um dos amigos traz um envelope nas mãos.
Primeiro amigo
Vai de uísque ou conhaque?
Homem
Não posso, estou tomando…
Primeiro amigo
Ah, já sei. Velhos.
Segunda amiga
Você continua cozinhando divinamente.
Primeiro amigo
Alguém que cozinha não porque é moda, como fazem hoje em dia.
Segundo amigo
Opa opa opa vejam só nosso socialista sendo contra a marcha da história.
Primeiro amigo
Eu nunca fui socialista. Um dia desses, um jovem de 24 anos defendeu Margaret Thatcher pra mim. Arrivistas. Os jovens são impulsivos e arrogantes.
Segundo amigo
Como assim, os jovens?
Primeiro amigo
Jovens jovens pessoas impossíveis que nasceram depois de nós.
Segundo amigo
Isso é genérico, preconceituoso. Você não foi o primeiro a se aburguesar?
Primeiro amigo
Cala a boca.
Voz
Sempre houve leis que falavam em “ofender os bons costumes” e “vadiagem”.
Roupa feminina, prostituição, ou beijo num cantinho escuro sempre podia dar cadeia.
Primeira amiga (para a segunda amiga)
Lembra quando nós discutimos por causa do “Amante de Lady Chatterley”?
Segunda amiga
“Viu seus olhos imensos, selvagens, sem ternura – mas já perdera toda a liberdade”.
Primeira amiga
Você dizia que era um gesto poético abandonar-se, tornar-se toda corpo, uma crítica à razão do Ocidente.
Segunda amiga
Você dizia que era um absurdo, uma objetificação da mulher. Acho que nos apaixonamos nesse dia.
Primeira amiga
Você me chamou de elitista. Eu achava que todo mundo tinha um piano. Nunca tinha conhecido uma casa sem um piano até ter ido na sua. Sempre no mundo da lua. E como ela adorava acampar nos lugares mais enlameados e sem chuveiro!
Segunda amiga
Você, uma lady tropicalista. Mas pelo menos eu aprendi a tocar bossa-nova.
Primeira amiga
Eu dizia que o fato dos teatros de Veneza terem sido abertos ao público em
1637 era um avanço, não era apenas música para corte.
Segunda amiga
Eu dizia que isso tinha tornado a arte mercadoria para os ricos burgueses.
Primeira amiga
Eu dizia que era dialética o capitalismo vencer o feudalismo.
Primeiro amigo
Era tão divertido! Passeávamos pelos bares, zona livre, o que queríamos era paquerar e quem sabe levar um bofe para o quarto, o centro era animado naquele tempo. Podia ser que não nos aceitassem, sim, eles tinham restrições, a bichona, o marica. Minha mãe mesmo, tive de sair de casa cedo. Mas eram círculos brilhantes, todos tocavam piano, todos liam Sartre, todos desprezavam os caipiras analfabetos que não sabiam o que era teatro, nem ópera, nem sequer
Homem
Menos o Lobo.
Voz
Todo mundo que tinha mãe carola e pai autoritário, era expulso de casa pelos pais e já vira fotos de bichas pulando carnaval nas revistas queria fugir para a capital.
Primeiro amigo
Sim, ele não. Todos sabiam dos marinheiros americanos que vinham procurar carinho e acabavam virando donos de restaurantes na São João, ou uma galeria na Angélica, ou compravam mesmo uma casa em Ubatuba. Haviam regras restritas. Nunca namorar um amigo.
Segundo amigo
Eu tenho uma dúvida.
Segunda amiga
Lembro daquele dia frio a gaivota sobre o mar azul nós todos cheios de roupas na praia deserta e ele diz: será que o pássaro está com frio e nós rimos rimos muito.
Segundo amigo
Se algum de vocês contar isso a alguém ou tentar evitar de qualquer forma, você diz.
Homem
Sim.
Segundo amigo
Estará dando aos outros a liberdade para abrir e ler o envelope.
Homem
Sim.
Segundo amigo
Mas podemos abrir antes não.
Primeira amiga
Não faríamos isso. Fizemos um juramento de silêncio.
Segundo amigo
Mas por que quer fazer isso?
Segunda amiga
Após o jantar ele entrega um envelope a cada um. Dentro, existem os segredos.
É muito bom como ficção.
Segundo amigo
Não foi nada fácil aquele tempo.
Primeiro amigo
Eu senti muito medo. Eu caguei nas calças de medo. Era escuro. As paredes tinham mensagens terríveis.
Segundo amigo
As pessoas estavam nos bares. Elas apanharam.
Primeira amiga
Você mereceu. Você fez com que ele abandonasse Lobo.
Segunda amiga
Então todos eles tinham alguma culpa?
Primeiro amigo
Eu estive preso. Eu sofri cada instante, eu não entendia. Que eu sou, quem eu sou?
Voz
Lembra? Para a direita reacionária, o comunismo levava ao homossexualismo e “Deus fez homem e mulher”. Os comunistas pensavam que homossexualidade era decadência burguesa.
Segundo amigo
Lobo era um simples. Nós criamos nossas regras. Mas vocês se separaram depois disso.
Primeira amiga
Quando eles chegaram, tudo estava vazio.
Homem
Prendia 300 pessoas toda noite.
Segundo amigo
Eu fui procurar jornalistas. O senador. A imprensa, para visitarem o local. Você ficou lá quanto tempo? Foi a prisão do professor, a faculdade se manifestou, a mídia se mexeu. Uma travesti foi jogada pela janela.
Homem
Ao chegarem na delegacia, estava vazia. A polícia soltou todo mundo pelos fundos. Nós saímos com faixas nas ruas. O delegado respondeu à imprensa: talvez tenham sido presos, mas já não bastam tantos maus exemplos na nossa TV, jurados que são bichas notórias, que não sabem se são homem ou mulher, que confundem os jovens para abusar deles? Foram demitidos.
Voz
De repente se via notícias assim: “Limpar o centro: Bichas maquiadas levadas para a delegacia”.
Tinha um grupo que distribuía um jornal com fofocas do meio gay na noite. A polícia começou a agarrar o pessoal, achavam que era material subversivo. Pararam de fazer.
Voz
Lembra? O jornalista adota uma criança que vivia na rua. O promotor o acusa de pedofilia. Pedofilia! Fica dois anos preso e morre logo em seguida. No jornal – gay é pedofilia.
Segunda amiga
Mulheres de minissaia e homens com calça justa ou batom. A Secretaria de Segurança Pública podia prender. Namorar na rua fica mais difícil depois de 68.
Primeiro amigo
Uma amiga travesti chegou em São Paulo e foi presa por estar vestida de mulher. Apanhou e foi obrigada a chupar quatro policiais. Deram choques nela. Muitas passavam fome porque ninguém queria dar trabalho. Elas se cortavam com gilete e os policiais tinham medo de sangue, pela sífilis.
Primeira amiga
Antes havia apenas leis contra a vadiagem e “afronta à ordem pública”. Prostitutas e travestis torturadas.
Voz
Lembra? Um militante não podia ser fresco. Ele abandona suas tendências pequeno-burguesas. Desvio político, patologia social, degeneração física e emocional, desvio moral, influência americana, ameaça à masculinidade revolucionária.
Segundo amigo
O governo se radicalizava, e nós também. Setores linha dura exigiam “repressão à estranha fauna de homens de voz falsete” para que não “influenciassem a juventude”. O comunismo era amigo da sodomia. O brasileiro, que saía do campo, não recebia uma educação decente, era educado com a moral e os bons costumes.
Primeira amiga
Uma amiga faz uma entrevista para se tornar uma das primeiras juízas. O desembargador pergunta se ela é virgem. E ela era.
Segunda amiga
Eu escrevi ali a primeira cena do filme. Eu sabia que tinha que escrever isso. Ainda mais quando o Alex ficou doente.
Primeiro amigo
Ninguém sabia que era preciso proteção naquela época. O pior era a sífilis.
Primeira amiga
Eu cantei durante a performance. Foi incrível. Estávamos questionando tudo, por que a arte precisava de galerias, por que se pintava para as paredes, por que uma ideia não podia estar num museu. Eu percebi de repente que era tudo falso.
O carioca me ligou. Acho que vou ser demitido, ele disse. Voei para o Rio de
Janeiro.
Homem
Ele era um boêmio.
Voz
1969 – “Comissão de Investigação Sumária” – Ministério das Relações Exteriores. Lista para a cassação de 44 pessoas.
15 pedidos de demissão de diplomatas.
Sete por “prática de homossexualismo” e “incontinência pública escandalosa”.
Exames médicos e psiquiátricos.
Primeira amiga
Ele cantava nos bares. Nessun Dorma numa padaria em Ipanema. Mas samba. Os pretos. Isso era demais.
Voz
Guia de Civismo – destina-se à biblioteca de consulta permanente dos professores de Educação Moral e Cívica:
“A autodefesa se baseia na afirmação de que a Democracia admite todas as liberdades — exceto a que procura destruí-la. É uma sociedade
aberta, mas deve estar preparada e adequadamente armada para defender-se, principalmente do totalitarismo, que tanto a ameaça, através de ideologias subversivas, traições e toda uma série de provocações à segurança da Nação.
Segundo amigo
“A homossexualidade é um instrumento que a subversão utiliza para atacar os valores morais e da família tradicional”.
Voz
“A Revolução de 31 de março de 1964 veio sanar este estado
de coisas no Brasil, levando a todo cidadão os benefícios de um
Estado democrático, livre de opressão totalitária. Conforme as sábias
advertências do Ministro da Educação e Cultura”.
Homem
Você era frágil.
Primeira amiga
Você era frágil.
Homem
Eu pensei que estava apaixonado.
Mas ele foi mais rápido. Ele tivera muitas mulheres. Ele ficou com você durante três meses e uma filha.
Voz
Era os anos 1970. Boates, discotecas, bares, bloco de carnaval, jornais gays, era impossível controlar. E a noite cai com o decreto que proíbe “notícias imorais” e “bailes de travestis”. Desfile de fantasias era apologia à homossexualidade.
Primeira amiga
Nós ficamos juntos. Eu estava exausta. Eu acordava de um pesadelo.
Nós nos unimos. E o carioca perdeu o emprego como diplomata.
Homem
Eu deveria ter imaginado.
Segunda amiga
No meu filme ele morria rápido. Não foi rápido. As alergias, depois manchas, depois problemas para respirar.
Segundo homem
Eu ia todo o dia. Morreram tantas pessoas que, por fim, eu já não sentia mais nada. Eu tinha uma roupa preta aguardando para o evento daquela semana.
Voz
1987: Operação Tarântula. Objetivo: prender travestis que se prostituíam nas ruas de São Paulo. O crime? “Contágio da AIDS”.
Segunda amiga
Não sei como você aguentou. Ele ficou imprestável. Ele deixou de tomar banho. Ele ficava no seu quarto cercado de cascas de frutas e garrafas de vinho. Ele tentou um dia na piscina, mas o empregado o viu. Ele não merecia.
Segundo amigo
Então chegou o americano. Ele podia ser infiltrado da CIA, nós tínhamos medo. Ele ouviu a triste história. Ele comia pão com ovo todas as noites enquanto estudava. Viera atrás de um lindo brasileiro que fugira para longe, ele mobilizava
os jovens, mostrava as marcas de tortura. Eles tinham que parar de incentivar o ódio.
Primeira amiga
O medo do comunismo. Quando o demitiram apenas falaram que ele era um “mau exemplo”.
Segundo amigo
No fim fui eu que fui preso, eu era o mais politizado.
Voz
Restaurante Calabouço. 300 estudantes. Estudante secundarista, 18 anos. O corpo foi carregado em passeata. Os cinemas amanheceram anunciando três filmes: “A noite dos Generais”, “À queima roupa” e “Coração de luto”.
Segundo amigo
Passeata estudantil – proibida; discurso e manifesto – proibidos; greves – proibidas. Não havia mais direitos humanos. Acabou o habeas corpus. Os caminhos normais de protesto desapareceram. Os jovens começaram a assaltar bancos, roubar armas de quartéis e sequestrar diplomatas estrangeiros. Em 1973, os combatentes haviam sido aniquilados.
Primeiro amigo
Você defendia Kruschov por ter denunciado os crimes de Stalin e invadido a Hungria com tanques.
Segundo amigo
Eu acreditava que em algum lugar devia haver esperança.
Primeiro amigo
Você achava que Mao estava certo em dizer que só a guerra ia converter o mundo ao comunismo e Moscou perdera a liderança. Eu nunca aceitei radicalismo.
Segundo amigo
Na prisão eu e outro preso tivemos um caso. Perigoso. Alguém nos entregou pra eles. Apanhamos. Fomos chamados de “contrarrevolucionários”. Mas meu amigo era do grupo armado, ele disse: qual macho vai querer me matar? Sou bicha, mas sou mais macho que todos vocês.
Segunda amiga
Foi muita coragem entrar na cela dos presos que queriam matá-lo e enfiar a sua ficha corrida na cara deles. Abortado plano de limpar a imagem da revolução.
Primeira amiga
O Alex saiu do hospital e comprou um disco dos Beatles. Nossos amigos debatiam se devíamos ouvir música burguesa enquanto o capitalismo nos torturava.
Segunda amiga
Os editores do jornalzinho de esquerda não queriam falar de “coisinhas de mulher e veados”. Um deles me disse que “feminismo” era só coisa de burguesa dondoca. Fundamos um jornal. Eu andava meio doidona na época.
Primeiro amigo
Os editores falavam de mudanças que ocorriam no exterior, paradas gays, liberação da mulher. Surgiram processos por violação da moral usando a lei de imprensa.
Segunda amiga
Os colunistas foram fichados pela polícia. Explosões nas bancas de jornal que vendiam jornais alternativos.
Voz
Uma notícia que falava do rio como “capital gay internacional” foi condenada pelo ministério de justiça como conspiração comunista.
Segundo amigo
Uma feminista lésbica foi acusada de abusar da filha que adotou; presa, perdeu o emprego e foi inocentada depois de 2 anos. Suicidou-se em seguida.
Primeira amiga
Ela quase morreu de tanto ácido. Ficamos num sítio um ano.
Segunda amiga
O pior foi nossa filha ouvir. Eu perguntei: será que é verdade o que diz Baudelaire – que os chineses veem as horas nos olhos dos gatos? Ela estava irritada. Ela disse que eu era incapaz de entender uma metáfora porque até para entender uma metáfora é preciso ter os pés no chão. Eu disse, o que você quer dizer é que você tem os pés no chão porque foi mãe? É isso? Você é esse tipo de feminista fajuta? Eu fiquei muito magoada. Simplesmente percebi que eu nunca fui o que queria ser, que sempre fui reprimida. Queria voltar e fazer meu
filme.
Primeira amiga
Quando voltamos, nos rebelamos contra o machismo dos gays.
Segunda amiga
Até as feministas nos discriminavam. Diziam que lésbicas não ia pegar bem com as feministas da periferia.
Primeira amiga
Até que eu disse: então não têm lésbicas na periferia? Lesbianismo era visto como uma espécie de depravação.
Segundo amigo
Éramos machistas.
Primeiro amigo
Eu concordei que devíamos levar uma faixa: Gays apoiam o Primeiro de Maio. Foi o namorado dele que deu a ideia.
Homem
Nós tínhamos muito preconceito contra os trabalhadores comuns.
Primeiro amigo
Será que o Lobo me amaldiçoou?
Eu não resisti.
Os caras acharam que ele ia desbundar, virar um drogado, entregar todo mundo. Apagaram o companheiro.
Primeira amiga
A época do “terrorismo”. Primeiro amigo
Presídio Tiradentes. Eu ouvi assim. Presos políticos pensaram matar dois militantes presos.
Segundo amigo
Os gays eram frágeis, na hora da tortura, do choque, iriam contar tudo. Mas não abriu nada. No Dops os documentos mostram que não abriu nada.
Segunda amiga
“O projeto de decreto legislativo do deputado, que é presidente da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara, prevê mudança em uma norma do Conselho Federal de Psicologia (CFP) tornando possível o que está sendo chamado popularmente de ‘cura gay”.
Primeira amiga
O diretor do Teatro foi intimado pela Polícia a comparecer ao 23º Distrito Policial.
O motivo, segundo a intimação assinada pelo delegado, é “elucidar os fatos e reconhecer atores de teatro em fotos ou vídeos postadas na web sob o título ‘Decapitação do Papa na PUC’ na ‘Ocupação da Puc’ pela Democracia’”.
Voz
107 facadas.
Pés e mãos amarrados.
O surfista é identificado pelo porteiro do prédio.
Suspeito absolvido em primeira instância. Outros casos ocorrem na mesma época.
Theatro Musical Brasileiro II, sua peça em temporada, recebe 8 indicações para o Prêmio Mambembe e ganha o Prêmio Molière de 1987.
Segunda amiga
Ele me ajudou a escrever o roteiro. Nós somos ficção.
Homem
Ela fez um filme no qual conta a história no Itamaraty, ele foi demitido por “conduta imoral” junto com outro diplomata que havia composto sambas e frequentava os bares. O Ministério de Relações internacionais temia pela imagem do Brasil no exterior. Criaram uma comissão, um processo administrativo. Até exame médico, psiquiátrico e proctológico propuseram para candidatos a diplomata. “Incontinência pública, inconveniência”, meus sonhos desapareceram.
Os amigos desaparecem de cena.
Um jovem se despede do seu amante, sai.
Voz
Após o jantar ele entrega um envelope a cada um. Pede que eles façam um juramento de silêncio sobre o que vai contar. Dentro existem os segredos de cada um de vocês. Eu vou me matar e se algum de vocês contar isso a alguém
ou tentar evitar de qualquer forma, estará dando aos outros a liberdade para abrir e ler o envelope.
Blackout.