Carta de Bruno Schulz a Stanisław Ignacy Witkiewicz – Tradução de Luiz Henrique Budant
Uma entrevista sem perguntas.
A produção epistolar de Schulz é vasta e capaz de despertar interesse proporcional à sua vastidão. Muito foi perdido nos anos da Segunda Grande Guerra, mas o que restou tem força bastante para suscitar reflexões acerca não apenas de Schulz como autor, mas também como pensador e crítico literário. O texto a seguir é tradução por nós proposta à resposta dada por Bruno Schulz ao genial polímata Stanisław Ignacy Witkiewicz, conhecido também como Witkacy. Em sua publicação original, não consta a carta enviada por Witkacy, de modo que decidimos assim manter o texto: uma entrevista sem perguntas.
Bruno Schulz a Stanisław Ignacy Witkiewicz[1]
Tradução de Luiz Henrique Budant
Os princípios e meus desenhos perdem-se na neblina mitológica. Ainda não sabia falar quando já cobria todos os papeis e margens de jornais com rabiscos que despertavam a atenção daqueles ao redor. Eram, em princípio, apenas carruagens com cavalos. O andar de carruagem parecia-me cheio de significância e simbologia. Por volta do sexto, sétimo ano de vida voltaram aos meus desenhos mais uma vez a imagem do coche com a capota levantada e lâmpadas chamejantes, saindo de um bosque noturno. Essa imagem pertence à reserva de capital da minha fantasia, ela é algum ponto nodal de muitas linhas partindo às profundezas. Até o dia de hoje não exauri seu valor metafísico. A visão do cavalo do coche não perdeu, ainda hoje, para mim, em fascinação e poder de pungência. Sua anatomia esquizoide cheia em todas as extremidades de chifres, nós, galhos e pináculos foi como que retida em seu desenvolvimento no momento em que quis ampliar-se e ramificar-se ainda mais. Também o coche é uma criação esquizoide, resultante da mesma regra anatômica – plurimembre, fantástico, feito de folhas de metal dobradas como nadadeiras, de pele de cavalo e imensas rodas-tinintes.
Não sei a partir de onde na infância chegamos a certas imagens com um sentido para nós determinado. Cumprem elas papel desses filamentos numa solução, ao redor dos quais se cristaliza para nós o sentido do mundo. A essas imagens ainda pertencem, em mim, a imagem de um filho carregado pelo pai pelo espaço de uma imensa noite, conversando com a escuridão. O pai o aconchega, aperta nos braços, defende-o da intempérie que fala e fala, mas para o filho esses braços são translúcidos, a noite o alcança neles e, por através das carícias do pai, ele escuta incessantemente sua persuasão. E atormentado, cheio de fatalismo, responde às indagações da noite, com trágica prontidão, inteiramente entregue à grande intempérie da qual não há fuga.
Há conteúdos de algum modo predestinados para nós, preparados, esperando por nós no prólogo mesmo da vida. Assim recebi a balada de Goethe aos oito anos com toda sua metafísica. Por meio do alemão apenas em parte compreendido, capturei, pressenti o sentido e estremecido até o fundo chorava, quando minha mãe a lia para mim.
Tais imagens constituem um programa, estabelecem a reserva de capital da alma, é-nos dado muito cedo na forma de pressentimentos e experiência parcialmente conscientes. Parece-me, que passamos todo o resto da vida a interpretar essas introvisões, superá-las em todo conteúdo que conquistarmos, guiá-las por todo a extensão do intelecto de que formos capazes. Essas imagens precoces delineiam aos artistas as fronteiras de sua criação. Sua criação é dedução de premissas prontas. Depois já não descobrem nada de novo, tão-somente aprendem a cada vez melhor entender o segredo que lhes fora confiado na entrada e sua criação é incessante exegese, um comentário a esse mesmo verseto que a eles foi entregue. Contudo a arte não desata esse segredo até o fim. Resta ele amarrado. O nó no qual a alma foi atada não é um nó falso que se desfaz ao puxar a extremidade. Ao contrário, aperta-se ainda mais. Manipulamos junto a ele, seguimos o curso dos fios, buscamos o fim e dessas manipulações surge a arte.
À pergunta se nos meus desenhos já se antevê o mesmo traço que na prosa, responderia afirmativamente. É essa a mesma realidade, apenas distinto seu recorte. O material, a técnica aqui funcionam como regra de seleção. O desenho realça fronteiras mais estreitas com seu material do que a prosa. Por isso julgo que na prosa confessei-me mais plenamente.
Da pergunta se seria capaz de interpretar filosoficamente a realidade de Lojas de Canela, de mais bom grado preferiria esquivar-me. Julgo que a racionalização da visão das coisas que se embute na obra de arte iguala-se ao desmascaramento dos atores, é o fim da diversão, é empobrecimento da problemática da obra. Não porque a arte seja um logogrifo com uma chave oculta e a filosofia esse mesmo logogrifo – solucionado. A diferença é profunda. Na obra de arte ainda não foi cindido o cordão umbilical que a liga com a totalidade de nossa problemática, lá ainda gira o sangue do segredo, os fins dos vasos partem na noite circundante e de lá voltam plenos de escuro fluído. Na interpretação filosófica temos apenas um preparado anatômico descosido da totalidade da problemática. Apesar disso estou eu mesmo curioso sobre como soaria em forma discursiva o credo filosófico de Lojas de Canela. Isso será antes uma tentativa de descrição da realidade lá dada que seu embasamento.
Lojas de Canela dá certa receita de realidade, estabelece um certo gênero especial de substância. A substância daquela realidade está em estado de incessante fermentação, de brotamento da vida latente. Não há materiais mortos, duros, limitados. Tudo difunde para além de suas fronteiras, dura apenas um segundo numa certa forma, a fim de deixá-la à primeira oportunidade. Nos costumes e modos de ser dessa realidade manifesta-se um certo gênero de norma – a pan-mascarada. A realidade veste uma forma apenas por aparência, por galhofa, para diversão. Alguém é um homem, e alguém é uma barata, mas essa forma não alcança a essência, é apenas um papel recebido por um momento, apenas epiderme, que em um momento será largada. Está aqui estabelecido um monismo radical da substância, para a qual os materiais particulares são unicamente máscaras. A vida da substância consiste na utilização de incomensurável quantidade de máscaras. Essa jornada das formas é a essência da vida. Porque dessa substância emana a aura de alguma panironia. Está lá presente a incessante atmosfera dos bastidores, a parte de trás da cena, onde os atores, depois de livrarem-se das fantasias, riem-se do páthos de seus papéis. No fato mesmo da existência individual está contida a ironia, o embuste, a língua mostrada à moda do bufão. (Aqui, parece-me, um ponto de toque entre Lojas e o mundo das tuas composições pictóricas e cênicas).
Qual seja o sentido dessa desilusão universal da realidade – não sou capaz de dizer. Afirmo apenas que seria ela insuportável, se não obtivesse compensações em alguma outra dimensão. De algum modo experienciamos profunda satisfação desse afrouxamento do tecido da realidade, estamos interessados nessa falência do real.
Fala-se sobre uma tendência destrutiva do livro. Pode ser que do ponto de vista de certos valores estabelecidos seja assim. Mas a arte opera nas profundezas pré-morais, no ponto onde o valor está apenas in statu nascendi.
A arte como confissão espontânea da vida impõe tarefas à ética – não o contrário. Se a arte tivesse apenas de afirmar o que aqui e acolá já fora estabelecido – seria desnecessária. Seu papel é ser uma sonda introduzida no inominado. O artista é o mecanismo que restaura os processos nas profundezas onde se cria o valor.
Destruição? Mas fato de que esse conteúdo tornou-se obra de arte significa que o afirmamos, que nossas profundezas espontâneas declaram-se em favor dele.
A qual gênero pertence Lojas de Canela? Como classificá-lo? Entendo Lojas como um romance autobiográfico. Não somente porque está escrito em primeira pessoa e porque pode-se nele enxergar certos eventos e experiências da infância do autor. Ele é uma autobiografia ou mais uma genealogia da alma, genealogia kat’ exochen, pois revela a linhagem da alma até aquelas profundezas onde ela parte à mitologia, onde se perde no delírio mitológico. Sempre senti que as raízes da alma individual, perseguidas em profundezas suficientemente longínquas, perdem-se em algum ninho mítico. Esse é o fundo final, para além do qual não há mais saída.
Uma imponente realização artística dessa ideia encontrei depois em As Histórias de Jacó de Thomas Mann, onde ela é levada à escala monumental. Mann mostra como no fundo de todos os eventos humanos, quando extraídos do joio do tempo e da multiplicidade, revelam-se certos proto-esquemas, “histórias”, nas quais tais eventos se formam em grandes repetições.
Em Mann essas são as histórias bíblicas, os eternos mitos da Babilônia e do Egito. Eu tentei em minha escala mais humilde encontrar uma mitologia própria, privada, as próprias “histórias”, uma linhagem mítica própria. Assim como os antigos retiravam seus ancestrais de casamentos mitológicos com deuses, assim efetuei a tentativa de estabelecer para mim uma geração mítica de antepassados, uma família ficcional, da qual derivo minha verdadeira estirpe.
De algum modo essas “histórias” são verdadeiras, representam minha maneira de vida, meu destino particular. A dominante desse destino é a profunda solidão, o afastamento dos assuntos da vida quotidiana.
A solidão é o reagente que leva a realidade à fermentação, à derrubada do depósito das figuras e das cores.
[1] Publicado, originalmente, na revista cultural Tygodnik Ilustrowany (Semanário Ilustrado), n. 17, em 1935. Tygodnik Ilustrowany funcionou entre 1859 e 1939. O texto que nossa tradução tem por base é aquele disponível em < http://www.brunoschulz.org/1935.htm> (último acesso em 13/11/2014)