Um Butô Selenita – Sérgio Medeiros

Florianópolis, 06 de junho de 2011

UM BUTÔ SELENITA

Por Sérgio Medeiros*

Todos aguardamos o novo espetáculo de Emilie Sugai**, uma das mais talentosas dançarinas de butô do Brasil. Em breve ela dançará na lua, e para a lua, em São Paulo, e poderá trazer depois esse espetáculo solo a Florianópolis.
Como sabemos, o butô começa como dança das trevas, ou “ankoku butô”, criado em meados do século XX no Japão do pós-guerra por Tatsumi Hijikata. Não sei se devo falar de dança ou de performance, ou dessas duas coisas unidas.  Dança da crise, como já foi chamada, ela remete a muitas coisas, e também à poliomelite, como disse num artigo o romancista, dramaturgo e ator Yukio Mishima. Colaborador e incentivador do ankoku butô, Mishima transcreve estas palavras de Hijikata:

“Outro dia, eu vi um paciente de poliomelite tentando pegar uma coisa. Entretanto, as suas mãos não se dirigiam ao objeto. Após algumas tentativas e erros, ele moveu as mãos para o lado oposto, fez uma longa volta e no jeito com que finalmente apanhou o objeto, eu descobri que eram os mesmos movimentos essenciais das mãos que eu correntemente ensinava às pessoas. Então, me encorajei.”

Nascido do encontro do Oriente com o Ocidente, em plena ocupação americana do Japão, o mundo do butô é também o da infância. A criança que existe no dançarino e no performer tenta se comunicar com os mortos. E com todos os objetos, visíveis e invisíveis, a seu redor. Por isso os gestos esquisitos das crianças pequenas sempre foram importantes para Hijikata:

“Crianças pequenas, inconscientemente, consideram as mãos e outras partes de seus corpos como objetos. Sem dúvida nenhuma pensam que uma ou outra parte do corpo é uma terceira pessoa.  Uma vez vi uma criança que tentou destorcer a própria orelha. (….) . A observação de crianças e de como elas se comunicam com seus gestos influenciou fortemente meu butô”.

E agora, essa mesma forma de expressão, o butô, que tanto deve a outro mestre, Kazuo Ohno, reaparece no Brasil do século XXI sob a luz da lua, ou na lua, brilhando nas trevas tropicais graças à arte de Emilie Gusai, que se propõe a nos ofertar um butô capaz de traduzir outras e novas crises.
Enquanto aguardamos a estréia do seu novo espetáculo solo, podemos ir usufruindo seus gestos mais antigos, registrados nas fotografias agora publicadas neste jornal.

*professor da UFSC, tradutor e poeta.

**dançarina-performer, desenvolve uma linguagem própria e singular, em criações solos e em grupos, fruto de suas inquietações artísticas e de vida, geradas das influências recebidas de seu mestre Takao Kusuno no período de 1991 a 2001, introdutor do butoh no Brasil, das pesquisas relacionadas às memórias do corpo, da ancestralidade e de colaborações com artistas da dança, teatro, cinema e da vídeoarte. Premiada com a Bolsa Vitae de Artes (1999) aprofundou as investigações relacionadas às memórias do corpo como nipo-brasileira, com a Bolsa UNESCO-Aschberg ministrou um ateliê coreográfico no Senegal – Africa com dançarinos e percussionistas tradicionais senegaleses (2003), recebeu os Prêmios FUNARTE de Dança Klauss Vianna 2006  e  2007, Prêmio APCA melhor concepção em dança em 2008. Criou os espetáculos “Tabi” (2002), “Totem” (2004), “Intimidade das Imagens” (2006), “Hagoromo o manto de plumas” (2008).
Paralelamente participou de duas produções com consagrados diretores: “Foi Carmen Miranda” sob direção de Antunes Filho, uma homenagem a Kazuo Ohno em Yokohama – Japão (2005);  e com a Cia. Pappa Tarahumara na montagem do espetáculo “Heart of Gold”, baseado na obra Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques, sob direção de Hiroshi Koike em Tokyo – Japão (2005).
Com a Cia. Tamanduá de Dança Teatro fundada em 1995 sob direção de Takao Kusuno e Felicia Ogawa participou de diversos festivais internacionais de teatro (Alemanha, Cuba, Japão, Brasil), com os espetáculos “O Olho do Tamanduá” (Troféu Mambembe de Dança/1995) e “Quimera o anjo vai voando” (1999).