Tradução de Caixas, de Christophe Tarkos – Clarissa Loyola Comin

Tradução de Caixas, de Christophe Tarkos*

Clarissa Loyola Comin**

Christophe Tarkos

Christophe Tarkos

https://www.youtube.com/watch?v=5cqDS1EEsqo

A tradução de Christophe Tarkos é, na verdade, apêndice de um projeto maior. Na minha tese estou montando um panorama e um vocabulário crítico do que chamo “escrita de invenção” (cujos nomes mais exemplares são: Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Haroldo de Campos e Paulo Leminski). Movida pela curiosidade, passei a pesquisar em outras literaturas seus respectivos autores de “invenção”. Assim, tomei conhecimento da obra de Tarkos e, desde então, tenho traduzido e analisado sua escrita. Meu interesse é, futuramente, publicar traduções integrais de seus trabalhos e divulgá-los em língua portuguesa. Na sequência apresento brevemente o autor e a proposta de Caixas, de onde provêm os trechos aqui traduzidos.

Christophe Tarkos foi um poeta performático. Visualmente, muitos de seus escritos assemelham-se à prosa mas a maioria explode em sentidos quando declamados, à la Tarkos. Mas não confundamos a suposta liberdade com desleixo. Intérprete empenhado de si mesmo, o escritor tornou-se célebre pelas constantes intervenções públicas em que convidava o público à experiências únicas de desautomatização. Sua proposta estética insere-se num intenso projeto de revitalização e renovação da língua francesa, iniciado nos anos 1990, e pode ser acompanhado em revistas literárias independentes (RR53, Poèzie Prolétèr, Facial e Quaderno), idealizadas por Tarkos e colegas de geração como Nathalie Quintane, Stéphane Bérard e Charles Pennequin.

Interessado na materialidade dos signos e na desestabilização do logos institucionalizado,filia-se abertamente a Beckett, Gertrude Stein e Gil J. Wolman. Estas referências embasam-lhe a dicção porvir. Para isso, Tarkos desenvolve o conceito de palavra-pasta (patê-mot). Segundo esta ideia, a língua, imiscuída de outras linguagens, assume a feição (o sabor) pretendida pelo autor enformando seu objeto de expressão e rompendo com o paladar do leitor padrão.

 Sua estreia foi tardia e o primeiro livro, Morceaux choisis, foi publicado em 1995. Contudo, mesmo antes do début oficial já era ativo e conhecido na cena literária francesa, organizando eventos e periódicos literários. Caixas, de 1998, é sua terceira publicação. Os textos que compõem o volume remetem-se ao título: são diversos blocos, formando quadrados, feitos de linhas corridas, sem pontuações ou parágrafos. Apesar de um suposto eu-lírico não encontramos elementos recorrentes nas composições poéticas (versos, estrofes ou rimas). 

 Em cada um desses blocos há elucubrações exaustivas sobre temáticas e objetos triviais (descrição de um bule, do leite, do céu, de uma coberta, de lembranças), bem como a exploração minuciosa de suas perspectivas. Os temas são construídos a partir de encenações exaustivas, com ínfimas variações, em um processo que objetiva o redirecionamento do olhar.

 

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Me mate me mate não me deixe padecer por nada não me deixe morrer sem que ninguém me toque apenas com concentração não deixe eu me acabar por causa de nada não sou nada mereço que você me mate que você me apunhale as costas que você me estrangule que você me assassine mas não morrer desse jeito sem nada nas costas com nada de mais com nada que me pare na minha vivacidade e força eu não quero parar por nada me mate eu quero que você me mate me assassine não tenho nenhum poder sobre minha morte não quero morrer vegetando eu valho a pena matar sou uma estrada que não para que não vai parar se você não me matar na minha estrada meu combate é digno de um assassinato sou um combatente me mate que eu possa me defender e te olhar nos olhos te ver você o rapaz que vai ter vantagem eu me defenderei eu perderei serei morto por você vai me matar por suas razões porque sou um valente combatendo na sua estrada em demasia me mate na minha estrada eu tenho esperança de estar em demasia que precisaria acabar comigo me matar me assassinar pelas costas antes que nada nem ninguém me mate antes de me ver morrer desidratado de ainda deixar vivo por nada me tire a vida que amo de homem valente não me deixe definhar abandonado como se eu não fosse nada ao ponto que nenhum assassinato me assassine que nenhuma pessoa me estrangule que nenhum rapaz me apunhale durante meu valente combate não quero que isso seja nada eu estarei morto morrerei sem razões morreria à vácuo.

 

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Estou branco, todo branco. Não sei mais o que meu pensamento pensa. Não entendo mais o que ele quer pensar, isso que ele pensa, se isso que ele pensa é justo ou não, é bom ou ruim ou outra coisa, estou completamente branco, não posso mais julgar meu pensamento, penso sem poder saber, ele pode pensar o que quiser, estou descolorido não tenho mais como saber o que ele é, o que ele quer, não posso mais julgá-lo, não o julgo, ele faz o que quer, ele me liberta, não julgo mais, não sei mais o que ele pensa, como pensa, ele pensa sem que eu possa julgar, por sua vez ele pode pensar o que bem quiser, não tenho mais os olhos sobre meu pensamento, estou todo branco, agora não sei mais o que fazer, meu pensamento está diante de mim, está bem à frente, está entregue, movendo-se como bem entende estou completamente descolorido, dizer se o que ele pensa é justo e está terminado, não julgo mais, ele pensa, estou completamente descolorido, sou de uma imensa alvura.

 

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É tudo totalmente monstruoso meu rosto grudado na comida é monstruoso nos castões nos vãos à vontade para agarrar-se para agarrar-se a tudo é monstruosa minha boca aberta asquerosamente redonda de olhos líquidos são monstruosos piscam o rosto é monstro das minhas narinas apenas minhas narinas as duas apenas vistas as duas apenas narinas em movimento são monstruosas isso que sai das minhas narinas orelhas é monstro monstruoso minha monstruosa boca tudo é monstruoso o que sai das orelhas e dos olhos escapa para fora é asqueroso estoura para fora está para fora estourado meu hálito é monstruosa isso que sai da minha boca minha língua isso que sai da minha língua meu hálito isso que sai do meu hálito é monstruoso o que sai das minhas narinas que se mexe só é monstruoso e irrespirável os monstros me sai pelos olhos me sai pelo nariz estoura para fora é monstruoso e está para fora pensa para fora que pensa tudo me sai pelo nariz e pelas orelhas para fora estourou preparou tudo está bem acomodado tudo está tudo acomodado tudo está asqueroso transbordando para fora pensa monstruosamente eu como do lado de fora monstro.

 

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Há leite em todos os lugares. Há leite na manteiga. Litros de leite branco estão em todos os lugares. Há leite em todos os bons produtos. Leite em todos os lugares. Há leite na manteiga e na nata. Litros de leite branco nos toneis e nos cargueiros. São litros de leite derramados nos biscoitos, nas barras de chocolates, na confeitaria industrializada, o leite está em formas variadas. O leite está em todos os lugares. Litros de leite branco derramados. Leite em forma de toneis e toneis de litros de pó. O leite é em pó. Este leite seco em pó que se encontra em qualquer lugar. O leite branco das embalagens de manteiga, das massas e dos molhos e da nata e do confeito e do gosto. Há leite em todos os lugares, nos campos, os ordenhadores em rodas, as vacas e os vaqueiros, nas estradas, nas carretas de garrafas de leite. O leite é branco. Há leite branco para as manteigas, para o purê de batatas, para os cereais em pó solúveis em leite. Há um pouco de leite em tudo.  O leite está em todos os lugares, no purê de batatas em pó e no pó e no chocolate ao leite há pó de leite. Há leite em todos os lugares.

 

 

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Um escorredor com alça para massas, não sei se vou passar através, esperando muito tempo, não sei se vou passar através esperando muito tempo pelo escorredor com alça para coar massas, não sei se, esperando muito tempo pendurado não passarei através passando pouco a pouco pela embalagem, fico muito tempo, não sei se passo, não sei se passarei através da alternância do raio de sol e da geada, passarei, esperando muito tempo, não sei se vou atravessar sem querer, não sei se poderei passar através do vidro ficando muito tempo ao lado, esperando tempo suficiente ao lado do vidro, estarei do outro lado da vitrine, terei passado, fico contra a língua, não sei se conseguirei atravessar a língua, fico muito tempo contra a língua, não sei se conseguirei passar muito tempo através da língua até o cérebro ficando tempo suficiente sobre a língua.

 

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Se isso é uma coberta podemos olhá-la e dizer eis aí uma presença. Ela se espalhará e se fará presente, será grande o suficiente para se fazer presente, se for para proteger, protegerá do frio, se colocada sobre a cabeça esconderá os olhos da luz, pode ser colocada no alto, formará cavidades e saliências se a colocamos no alto, podemos fabricar montes de objetos com, então serão montes de objetos feitos de coberta, podemos cobrir vários objetos com assim ela terá um grande poder de cobertura, ela terá o poder de cobrir, serão todos cobertos com uma coberta, se é para ver se ela tem a forma de uma coberta pode-se olhá-la e então é o mesmo que olhar a coberta, se a coberta está desdobrada e grande então a coberta é grande, então podemos concordar plenamente olhando a coberta, olhar a coberta e concordar que ela é uma boa e grande coberta e que não corre o risco de fazer furos de desaparecer de partir de repente sem deixar vestígios ao contrário da tragédia, da injustiça, da vingança, da histeria, do não dito, do povo, da honra, da gordura humana, a coberta pode se apresentar, está grande, desdobrada, está apresentável assim desdobrada. Podemos olhar a coberta. Se é uma coberta, podemos olhá-la com os olhos abertos. A coberta está apresentável.

 

Bibliografia:

TARKOS, Christophe. Caisses. Paris: P.O.L, 1998.

 

* A tradução que segue corresponde às seis primeiras páginas do livro cujo original encontra-se disponível em: http://www.pol-editeur.com/pdf/82.pdf

** Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná email: cominclarissa@gmail.com