PALAVRARMAIS: rastros, restos, registros – Victor Rafael Gonçalves Bento

PALAVRARMAISrastros, restos, registros

Victor Rafael Gonçalves Bento[1]

“escribo con cuerpo, danzando la marca.”

Cecília Vicuña

Cecilia Vicuña

  1. Primeiras palavras

Com a visão impedida, Chile se volta inteiramente à América Latina. Sua estreiteza permite apenas olhar para a Bolívia e o Peru, e manter sua extensa fronteira com a Argentina. O sentimento é de que o Chile está comprimido, o que, em verdade, se configura como uma expansão sintomática pelas artérias da América. O presente trabalho tem como objetivo analisar a poesia de Cecília Vicuña, artista plástica e poeta chilena, a partir de conceitos históricos, filosóficos e literários estudados por diferentes autores do século XX e XXI. Em um primeiro momento, direciona-se a análise ao conceito infans de Giorgio Agamben, no qual procura-se estabelecer o que há em Palavrarmais, livro de Vicuña, que parece recuperar uma certa infância, entendida aqui não como uma etapa cronológica, mas como aquilo que decorre da experiência. Para tanto, servirá de base o historiador e filósofo Walter Benjamin, para trazer à revelia seu conceito sobre a história e suas implicações na modernidade (que não deixou de ser moderna na contemporaneidade).

Em um segundo momento, o trabalho caminha em direção à Jean-Luc Nancy junto a Christian Prigent, observando a materialidade da voz, conceito substancial para a poesia. Também será introduzida, de forma consubstancial, a ruinologia de Raul Antelo, paradigma arquifilológico que visa a emergência e a arché (não-origem). É decisivo, nessa perspectiva, a escritura como entre-lugar e exigência. Em um terceiro momento, o trabalho pende ao vórtice, conceito agambiano que será analisado a partir de Antelo, que se utiliza para seu estudo ruinológico. Encara-se, com o vórtice, uma ideia de limiar, entre o fazer e o feito, encerrado na pura ausência; recupera-se, assim, o aparato histórico-filosófico e literário empreendido nos dois primeiros momentos e introduz-se o conceito aturdito de Jacques Lacan como forma de escuta às adivinhações que propõe a poeta chilena. Esse percurso busca em Palavrarmais uma reflexão apurada e emergencial da poesia enquanto ato, e sendo ato pode-se dar em política, como resistência. De tal modo, Chile encontra-se aprisionado a si mesmo, embora seu limite seja banhado de norte a sul pelo o outro e o impedido em sua visão é somente a Europa.

 

1.1  História, linguagem e infância

Walter Benjamin, ensaísta alemão, em 1933 desenvolve um importante estudo no qual intitula: experiência e pobreza.[2] Tal estudo assinala a perda da aura do sujeito moderno no pós-guerra, que foi furtado de toda e qualquer experiência transmissível. Isto está ligado, principalmente, ao horror da guerra que cala o homem sem oferecer-lhe estadia na experiência ou na linguagem. Não há como narrar esses fatos de maneira enriquecedora porque há um silêncio intraduzível sobre isso. Benjamin, então, recupera algo como uma “cultura de vidro”, analisada a partir de Scheebart. O vidro se apresenta como uma pobreza, em vista de sua incapacidade de fixação, e deixa também transparecer os lados, tornando-se inimigo do mistério e também da propriedade – por isso colocamos cortinas para ocultar o interior. “As coisas de vidro não têm nenhuma aura”[3], diz Benjamin, com um retorno ao conceito da aura, anunciando seu declínio em virtude da técnica. Tendo isso em vista, Agamben toma esse estudo de Benjamin para conceitualizar a questão do infans, o não-dito, aquele que não possui fala. O filósofo italiano, portanto, busca desenvolver seu estudo em como o sujeito da ciência moderna, tratando-se de René Descartes, foi expropriado de sua experiência e, com a racionalidade, perdendo sua voz em razão de um cogito que o centraliza. De tal modo, o sujeito cartesiano estreita a relação do humano/divino, pensamento/alma, etc., com a finalidade de atingir o conhecimento via uma experiência científica. Sua relação com o objeto é marcada por uma cisão dual, a res cogitans é separada da res extensa, são duas substâncias que visam o conhecimento. O que Agamben busca evidenciar com essa análise é o efeito da linguagem, pois Descartes acaba nominando o cogito fora do âmbito da enunciação. Desse modo, tomando a palavra e fazendo dela sua experiência, o infans não pode se dar no nível da razão, mas sim no espírito. Em face disso, aquele que retorna ao infans de certo modo redescobre a linguagem, o começar a falar é um sempre se espantar ante os signos que, a princípio, se mostram fechados. Portanto, a experiência da linguagem se mostra inevitável para o poeta, que no contato com a língua a ressignifica, a vive como um infantil, não de forma cronológica, mas como se cada palavra se a apresentasse a ele como contendo um universo, sem limite de significações e sempre se renovando.

 

1.2  À caminho da voz

“¿quién lee los signos?

Cecília Vicuña

Tal como a pintura Angelus Novus de Paul Klee, que de costas para o futuro fixa seus olhos no passado, impelido por uma tempestade que sopra do paraíso, e com a asas abertas acumulando ruínas, a História deve ser vista pelas lentes desse anjo: um presente que volta ao passado, de forma a reconsiderá-lo, ou, na análise de Benjamin, reconhecer na tempestade o progresso iminente da modernidade que arruína, e num esforço de afastamento encarar o passado que pode trazer uma nova maneira de olhar. Este movimento configura um “escovar a história à contrapelo” segundo Benjamin, de modo a remontar o que foi dito, a narrativa em transe, passível de distorção em benefício de determinada classe, etnia ou pensamento, que se impõe como a “história dos vencedores”. Se ousamos nos pôr de costas para o futuro, devemos então fazê-lo como Cecília Vicuña que “siempre se ha movido com facilidad entre el presente y el pasado remoto”.[4] Num artigo publicado em 2014 pelo Museo Nacional de Bellas Artes, catálogo intitulado Artists for Democracy: El archivo de Cecília Vicuña, Lucy Lippard lembra de uma instalação da autora chilena que remonta um guerrilheiro contemporâneo em forma de um “códice maya precolombino”, isto é, à maneira de livros ou textos produzidos na pré-história das Américas. A instalação, continua Lucy, relembra uma criança sacrificada pelos incas há quinhentos anos, no entanto, pode ser vista também como uma homenagem às crianças assassinadas por aviões no Afeganistão.

A performance deixa-se entrever na obra de Vicuña. A autora cria, a partir de objetos descartados, significados visuais e verbais que dão forma às suas instalações, ao que podemos entender aqui também como intervenções. O quipo, nesse trânsito, é resgatado pela autora para as suas exposições. Na época andina os quipos eram utilizados como sistema de escrita, bem como para registros oficiais ou para realizar cantos em língua quéchua. Sua forma consiste em cordas (que nas instalações de Vicuña fixam-se no teto), que são unidas para serem feitos nós, para então transmitirem mensagens. As cores, os enfeites e a quantidade de nós dado nas cordas são particularidades que compõe o sistema de escrita quipo. Com isso, a autora denomina sua produção de precário[5]. Assume-se, então, o precário como aquilo que vertebra nos escritos poéticos da autora em uma condição primeira: precor, do latim, pode significar tanto aquele que pede, no sentido da mendicância, quanto de prece, processo de oração. Para fins de análise, levemos em consideração o processo de oração. A língua, que conecta o humano ao divino nessa ação, é espaço de reverberações misteriosas que se quer íntimo e por isso exige do poeta a contemplação.  Concomitante, Raul Antelo lembra uma frase de Kafka, onde se lê: “da prece adquirimos a energia necessária para a ação”[6]; o crítico ainda ressalva que essa ação nunca se dá de uma vez, mas sim num processo de lentificação, de demora. Consiste nisso um exercício lento sobre a língua, uma desmontagem paradigmática da neutralidade desta, para então ouvir o balbucio que clama no seu interior; no caso da autora, ocorre também com os objetos que, através da basura, o lixo, servem de material a sua obra, e por isso ela

“[…] realizó proto land-art en los años sesenta: acciones silenciosas, casi invisibles en el paisaje, inspiradas por las huacas incas, altares ubicados en todo el paisaje andino que servían como líneas guías para eventos astronómicos. Ella los ve y a su próprio trabajo como ‘señales’ que hacen revivir a los lugares: ‘Dos o tres líneas, una marca, y el silencio comienza a hablar’. En el terreno, y especialmente en las montañas, ella comulga con lo atemporal”.[7]

Diante disso, Lippard inscreve um ponto de emergência da ideia do precário: Palabrarmas, obra publicada originalmente em 1984. Palavrarmais[8] é, antes de tudo, uma prece: valer-se mais da palavra, para além de seu estado mudo de dicionário e discricionário. No início de sua obra, a autora nos diz que “cada palavra é o registro de sua criação”[9]; e o que é o registro senão a instalação de um rastro? Raul Antelo, numa conferência tornada livro, que recebe o título de A Ruinologia,[10] alude para a questão da letra enquanto rastro, inscrição. Sendo, para o crítico, a ruinologia uma teoria dos objetos sociais, em que os objetos inscritos permanecem enquanto inscrição, no sentido de que são uma relação e não configuram um ponto de origem – tal ponto escapa sempre que buscado –, temos que o ato de inscrição, além de sua característica política, é um ato de construção, de dispersão do signo. De imediato, a origem é posta em dúvida, pois, como colocará Agamben, o “antes da linguagem” não é possível, isto porque o homem só se compreende através da linguagem e a busca pela sua origem determinaria sua renúncia. Desse modo, Antelo tal como Agamben, inclinam-se a pensar numa genealogia, ou um a priori histórico, embebidos dos estudos de Nietzsche e Foucault.

A escavação do registro, portanto, se dá num médium abismal entre o significado e o significante, signatura que suspensa torna-se negatividade e dela decorre o questionamento tanto da história, que não deve ser discursivamente práticas que regulam a transmissão de geração a geração, quanto do sujeito, que não deve ser comprimido a essas práticas para não permanecer estanque. Antelo diz, então, que antes de uma busca pela origem, o interesse da ruinologia é a “captação da emergência”[11], a saber uma regressão histórica, que não cessa de ser fazer presente, um instante já da letra. Podemos lembrar, diante disso, o poema “Um Lance de Dados” de Mallarmé, que dizendo “nada terá tido lugar senão o lugar” ousa um paradoxo do tempo, demonstrando que a marcação temporal no pretérito do futuro, isto é, um passado presente e também um presente passado, encerra uma leitura de um não-lugar presente, o tempo mesmo da ficção. A exemplo de Borges, o presente nos é único e só para ele existimos, as infinitas veredas do tempo que se bifurcam são atravessadas pelo espaço e ganham estatura na sua indeterminação, restando apenas a lacuna. A problemática que se define é a da cisão, que irrompe nas dicotomias passado/presente, racional/irracional, humano/inumano e etc., percebendo que há nisso não uma separação ou uma dualidade, mas uma reciprocidade onde um regimenta a existência do outro através de uma relação opositiva. E, ainda em Antelo, essa cisão não deve ser pensada como uma terceira instância, antes um polo negativo, uma ausência.

Com efeito, Cecília Vicuña comunga com essa perspectiva uma vez que seu trabalho é voltado ao simbólico e nele estremece a adivinhação onde o silêncio da letra atravessa o pensamento e a voz, porque agora a palavra há tornado o objeto ausente, num sentido blanchotiano, e estamos pendurados na face despida da palavra:

“quem faz um retrato conjunto da foca, a toupeira, os degraus e os fiambres?

a fotografia”[12]

A ausência é ela mesma fundante de um sentido e uma realidade. A imagem, ao que parece, oculta seu objeto para fazê-lo surgir novamente tornado imagem, instância que passa do ausente ao presente – de presença. Entende-se por isso a imagem também como uma realidade, porém afastada do real; em outras palavras, a imagem contém sua própria realidade – a de ser imagem. Contudo, essa nova presença não deve ser deslocada da ausência, antes desdobrada, como se uma emergisse da outra e ambas coexistissem nas suas assimetrias. A palavra, nesse viés, sucede a voz do sujeito que, tornado infans, deve buscá-la, assim experimentando a linguagem que antes se apresentava petrificada a ele. “A voz é a precessão da linguagem, ela é a iminência da linguagem no deserto no qual a alma ainda se encontra só” apresenta Jean-Luc Nancy no seu texto Vox clamans in deserto, onde podemos compreender que a voz não é linguagem, porém a precede e a torna linguagem. Ainda em Nancy, “é por isso que ele [sobre Paul Valéry[13]] podia dizer: ‘a voz define a poesia pura’”, o que evidencia ser a poesia essa voz antes de ser tornar linguagem, e que a partir dela surge uma linguagem, que fala uma língua saída da voz. Desse modo, a voz clama no deserto o outro, mas que, estando sozinha, só faz ressoar e inquieta-lo.

Cada palavra

espera o viajante

que nela

espera encontrar

sendeiros e sóis

do pensar

Esperam tranquilos

e cantarolando[14]

 

Então a autora chilena se põe a escrever o inaudível, desértico dizer da alma em processo de criação, de inscrição na realidade. Não sendo, por isso, silêncio sem qualquer rumor, mas, contrario sensu, o rumor próprio do silêncio. Nancy nos diz ainda que não é porque a voz não diz nada (lê-se como o dizer de uma língua) que ela não nomeie, que ela não evoque, mas é precisamente a abertura da voz que diz, que clama, que constitui o sujeito que ouve. Tomando de empréstimo uma citação de Antelo, se tratando de um “esforço de timpanização da linguagem”, me sirvo de uma frase de Oswald de Andrade, onde se diz: “a gente escreve o que ouve, nunca o que houve”.[15] Christian Prigent[16], ao dizer que a voz, sob efeito psicológico, serve como uma etiqueta social, busca na língua um meio em que essa etiqueta cause um monstro, que desperta do estilo do escrito, ou seja, que a voz tente de algum modo soçobrar seu interior que é a escrita.

 

1.3  O vórtice

“el rastro borrado”

Cecília Vicuña

“Nasce do silêncio e volta a ele numa espiral/ des/ contínua e desde o princípio associada ao fio”, diz Vicuña sobre a palavra. Pergunta-se, então: “o nada criador, um movimento circular?”[17] Me parece que, além de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, referidos por Antelo, também Cecília Vicuña gira no redemoinho do vórtice. Imaginemos de início o leito de um rio que corre calmo, mas que, por obstáculo de algum objeto, irrompe num rodopiar sem fim. Tal imagem nos é apresentada por Giorgio Agamben em seu recente livro O fogo e o relato[18], onde o filósofo nos apresenta o uso da linguagem no seu limite: negativo, agressivo. Dispensando, por certo, o uso comum e corrente da língua, o filósofo nos põe a pensar esse redemoinho como um campo de dissoluções, isto é, girar incessantemente é confundir palavras, é deserda-las de sua condição materna e, principalmente, afundá-las a tal ponto de entrarem num estado negativo. Então o vórtice gira em espiral: “Ao enrolar-se […], ele se alonga para baixo e depois sobe de novo, numa espécie de pulsação íntima”[19]. Em seguida, para demonstrar como funciona o vórtice, Agamben nos diz que ao lançarmos algum objeto no seu interior, ele manterá um ponto constante em direção ao norte, e o centro do turbilhão seguirá agindo numa “sucção infinita”. O movimento do vórtice, como se pode pensar de início, não é algo autônomo e nem faz parte inteiramente do fluxo ao qual separou-se. Ele é, contudo, algo sem rosto, um movimento que se desprende de sua origem (o fluxo) e, por ser originado desta, não pode exercer sua autonomia, situando-se num entre-lugar sem identidade.

A partir disso, Raul Antelo traça uma etimologia do que seria a madeira (objeto lançado no interior do vórtice) tanto para os romanos (lignum) e os gregos (hylé), quanto para os latinos (liber). Tais definições acercam-se da matéria, o material, exceto liber que significa o não-material. De outra forma, o imaterial lançado ao vórtice somos nós, de maneira que Agamben detecta no interior do redemoinhar o movimento da história, isto é, esse estado silencioso que nos compõe em passado e presente, mas que não forma um todo, no sentido de que a verdade discursiva não pode ser uma e nem a única (isto porque estão embrenhadas e dispersas, segundo o a priori histórico de Michel Foucault), antes um fragmento desprovido de origem, uma arché (sendo o “princípio” e não a origem), e que nos interpela vez ou outra para dizer que só existe o presente, e para nos revelar à nós mesmo.

Mas, nos momentos decisivos, aferra-se e se arrasta dentro de nós, e então nos damos conta de que também nós não passamos de um fragmento do início que continua a remoinhar no vórtice de que provém nossa vida, a rodopiar ali dentro até que – a menos que o acaso o cuspa para fora – alcance o ponto de pressão negativa infinita e desapareça.[20]

A Gorgona, significando a prisão sem rosto e sem persona, “equivale a terrível, feroz, turvo, espantoso”[21], onde também pode se detectar um furo do real, tendo em vista que o real é aquilo que não se pode simbolizar e, todavia, atravessa o inconsciente feito linguagem (sonhos, lapsos, “falhas” do inconsciente), operando também como formas parceladas, fragmentadas, atabalhoadas da relação inconsciente-linguagem. Significa dizer que o real se apresenta como fruto dessa falha, onde dirá Christian Prigent que o “real [da poesia] se entende aqui no sentido lacaniano: o que começa ali onde o sentido se detém”[22]. Dessa maneira, o vórtice também gira para Vicuña quando a autora diz que “o horror me fez ver as palavras outra vez”[23], fazendo menção ao golpe militar de 1973 no Chile. Ocorre que o horror desperta a escuta, a busca de um sentido, e há nisso a dissolução do próprio sentido que se abre à uma revisitação, recontextualização.

Consequência disso pode ser visto com o real lacaniano, uma vez que o erro, a falha, o bizarro que se deixa entrever no inconsciente, são efeitos do real interpelando o sujeito, que não exerce domínio sobre tal, não há possibilidade de escolha nesse vulto, de maneira que nos deixa aturdito[24]: isto é, a apreensão do real permanece incólume e, no entanto, nos atravessa a fim de mostrar nossa existência, à qual nos sujeitamos. O aturdito tem como ausência o que se escreve, para dar espaço aquilo que se ouve, permitindo a descontinuidade e os modos pelos quais o inconsciente interpreta aquilo que se está sendo dito. O lapso, então, irrompe do inconsciente em forma aturdita, uma vez que pensamos estar ouvindo uma coisa e, na verdade, descobrimos que estamos ouvindo outra. Assim Lacan sugere que o real se situe nesse furo de sentido do synthoma (de synthome, no francês, palavra que enseja o aturdito).

O vórtice, enfim, é a exigência da apreensão do real; é, para lembrar Nancy, a exigência de fazer sentido na impossibilidade, de acessar uma orla de sentido com a poesia, mesmo na sua dificuldade. E, para abrir mais esse percurso, o impossível equivale a uma potência-de-não – da recusa da poesia –, isto porque a potência do sim estaria mais próxima da mecanização, do fascismo. Basta lembrar a frase repetida várias vezes pelo escrivão Bartleby, de Herman Melville, “I would prefer not to”; o lado deslocado dessa força é um sempre existir, ao que podemos colocar também como resistir, pois sempre está em ação, de modo que a força não age sozinha, existirá sempre consigo uma contra-força.

men tira, tira a mente

ver dad, dar a ver”[25]

As palavras, aparentemente enigmáticas, estão grifadas como signaturas para serem abertas com a escuta, fonemas soltos que vão se juntando e ocasionando sentido:

“Uma mentira havia sido instalada no poder, e estava roubando, ‘tirando’ a mente e os corpos daqueles que amavam e desejavam a verdade em dar a ver.”[26]

Por fim, as palavras antes parceladas são a poesia que se anuncia, que nos abocanha por sua dispersão e ferocidade, porém, quando organizadas, nos revela e nos dá uma abertura à compreensão – nos revela, precisamente, o aturdito.

 

1.4   Un eco sin distancia: la resistencia

“Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.”

Silviano Santiago

O golpe militar em 1973 no Chile despertou nos artistas que estavam produzindo naquele período um ativismo de resistência. Em 74, por idealização de John Dugger, foi instalado um estandarte com as palavras “Chile Vencerá”, integrando em sua instalação grande parte do povo chileno e transmitindo esperança contra o fascismo que há um ano se instaurava. Cecília Vicuña, fazendo parte da Unidad Popular de Salvador Allende, uma unidade de esquerda e de frente democrática que se opunha ao imperialismo e à oligarquia, governada por Salvador Allende, nesse período do golpe encontra-se exilada em Londres, embora contribua significativamente para o movimento popular chileno cofundando o Artists for Democracy. É também nesse período que a autora escreve a segunda parte de seu livro Palavrarmais. De algum modo, depois de períodos históricos turbulentos, a narrativa que se produz passa a não corresponder com os acontecimentos, o que, em termos benjaminianos, seria um desvio para proveito dos vencidos ou para a fixação de um discurso que libera um poder. Segundo Paulina Varas, curadora das instalações do Artists for Democracy, o Chile é acometido a esse apagamento ou manutenção histórica em favor de uma versão. Ocorre que a curadora, junto com Vicuña, volta a esse tempo e retoma o que há de esclarecedor e causal, se tratando de documentos, fotos, obras, etc., para então desarmar um silêncio que se tenta impor. Paulina chama isso de memória falada, pois implica voltar a dizer algo que um dia foi esquecido, ou que se está para esquecer – nesse caso os acontecimentos do golpe de 1973. Contra a fascismo de Pinochet, e a fim de restaurar a democracia no Chile, o grito Chile Vencerá! ressoa “como um eco perdido y fetichizado por alguna acción nostálgica”[27].

O Ocidente quando encara a si próprio no presente sofre um constrangimento em razão de seu passado. O homem europeu contrai uma culpa que o deixa estanque quando tenta estabelecer relações com o tempo que já foi; tempo este que só possui existência no presente, quando é lembrado por ele. Isso se dá pela tradição e o apelo do Ocidente em manter a história “tal como ela foi”, projetando um ideal ocidental que assombra o resto dos continentes. Em contrapartida, a resistência maior parece emergir dos povos neocolonizados, tal como nós da América Latina. Silviano Santiago em seu ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, incluído no livro Uma literatura nos trópicos[28], atenta para o modo como os escritores latinoamericanos têm resistido às imposições que veem da Europa. Em primeira observação, temos que a América Latina destrói o que há de único e puro que como água nos é tratado. Se reconhecendo como vários, o latino não pode importar do ocidente a ideia ariana de uma raça pura, para exemplificar. A poesia e a literatura latino-americana percebem que seu modo de fazer arte é sempre um resistir, desarmar aquilo que historicamente foi imposto. De Borges a Cortázar, aos mais recentes Césair Aira e Mário Levrero, para ficar apenas com estes nomes, os escritos são divididos em um entre-lugar que, para o crítico Santiago, se dá no que vem de fora (se tratando de livros, influências literárias, etc.) e na vontade de produzir o novo. De outro modo, o escritor latino-americano se utiliza das suas leituras europeias para a partir delas criar seu escrito que irá criticar a produção europeia. Dentre outras situações, esse escritor insere-se no entre-lugar que o obriga a estar dividido entre a obediência e a rebeldia, a prisão e a transgressão, a assimilação e a expressão, etc., voltado à sua relação com o Ocidente e seu passado colonial. Palavrar, nesse sentido, busca soltar as palavras de seu eixo e por um momento – o da leitura – senti-las libertas a fim de experimentá-las novamente. Palavrando nos damos conta da dimensão interior do objeto que lidamos no processo de escrita e então nos ponhamos a resistir, a usar desse artificio como meio para fazer emergir uma voz.

 

1.5   Últimas palavras

Com este trabalho, buscou-se analisar a obra Palavrarmais da autora chilena Cecília Vicuña a partir de conceitos como o infans, o aturdito e a própria ideia da história e do vórtice, que são ideias chaves para o pensamento do século XX, passando por autores como Walter Benjamin, Giorgio Agamben, e outros não abordados como Georges Bataille, Roland Barthes ou até mesmo Jacques Derrida. Ocorre que o vazio da escrita, a volta incessante do mesmo, a escritura como ato político ou de trapaça dos signos, tudo isso abre um leque de autores e estudos que foi muito difundido na modernidade. A peculiaridade de Vicuña é como ela dialoga com essa tradição seja com seus versos, seja com os fragmentos de frases em Palavrarmais. Nos versos “a palavra cria o ser e é criada por ele/ num mistério apenas conhecemos as chaves/ para fazê-lo crescer”, a poeta confirma a real estatura da palavra, pois, quando desmontadas, percebemos seu interior como algo vivo: de som, imagem e pensamento. Ezra Pound[29], nessa perspectiva, insiste que poesia deve conter justamente essas três características: melopeia, fanopeia e logopeia, respectivamente. Quando juntas, essa tríade cria um poema potencialmente relevante, em que trabalha as três áreas do ser: a escuta, a visão e o logos. Os poetas do concretismo como Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, para ficar com os principais, se utilizaram fielmente dessa reflexão de Pound, inclusive Mallarmé. Quando Paul Valéry diz que o poema é hesitação entre som e sentido, balança a estrutura do poema. De igual modo, nos versos “escribo con cuerpo/ danzando la marca” Vicuña, na tensão entre sentido das palavras e o ritmo que elas podem conter, dança no meio delas a explorar, a diverti-las. Por fim, o trabalho buscou analisar essas questões mantendo constantemente o escopo para o vazio, para os passos de dança que saem das palavras da poeta chilena.

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

­­­­­­_____­_. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Trad. Andrea Santurbano, Patricia Peterle. 1° ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTELO, Raul. A ruinologia. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2016. 40p.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet – 8° ed. – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1).

BRODSKY, Ricardo B; FARRIOL, Roberto G. Artists for democracy: el archivo de Cecília Vicuña. In: Cecília Vicuña: la persistencia del gozo – Lucy Lippard. Santiago: Museo Nacional de Bellas Artes, 2014.

MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street. 1° ed. Trad. Irene Hirsch. São Paulo: Editora Ubu, 2017.

POUND, Ezra. Abc da literatura. 11° ed. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2006.

PRIGENT, Christian. Para que poetas ainda? Trad. Oseki-Dépré e Marcelo Jacques Moraes. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2017.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.

VICUÑA, Cecília. Palavrarmais. Trad. Ricardo Corona. Editora Medusa: Curitiba, 2017.

______. Livro deserto. Trad. Ricardo Corona. Editora Medusa: Curitiba, 2013.

[1] Universidade Federal de Santa Catarina. Acadêmico do curso de Letras-Português, gncalvesvictor@gmail.com. Trabalho realizado para a disciplina Teoria Literária III, ministrada por Sérgio Medeiros.

[2] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet – 8° ed. – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1).

[3] Ibid., id., p. 117 (grifos meu).

[4] BRODSKY, Ricardo B; FARRIOL, Roberto G. Artists for democracy: el archivo de Cecília Vicuña. In: Cecília Vicuña: la persistencia del gozo – Lucy Lippard. Santiago: Museo Nacional de Bellas Artes, 2014.

[5] Sobre a poética do precário, conferir CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2010.

[6] Informação extraída da Aula Inaugural chamada “A ruinologia”, de Raúl Antelo, realizada na Fundação Cultura BADESC. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vIxma7f4vKo&t=291s Acesso em: 30/06/2018.

[7] BRODSKY, Ricardo B; FARRIOL, Roberto G., op. cit., p. 18.

[8] VICUÑA, Cecília. Palavrarmais. Trad. Ricardo Corona. Editora Medusa: Curitiba, 2017.

[9] Ibid., id., p. 13.

[10] ANTELO, Raul. A ruinologia. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2016. 40p.

[11] Ibid., id., p 15.

[12] VICUÑA, op. cit., p. 14. Grifos da autora.

[13] Diz Valéry: “a linguagem saída da voz, mais do que a voz da linguagem.” (grifos do autor, p. 63).

[14] VICUÑA, op. cit., p. 35.

[15] ANTELO, op. cit., p. 17. Grifos do autor.

[16] PRIGENT, Christian. Para que poetas ainda? Trad. Oseki-Dépré e Marcelo Jacques Moraes. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2017.

[17] VICUÑA, op. cit., p. 24.

[18] AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Trad. Andrea Santurbano, Patricia Peterle. 1° ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

[19]ibid., id., p. 84

[20] AGAMBEN, 2014 apud ANTELO, op. cit., p. 34.

[21] Ibid., id., p. 35.

[22] PRIGENT, op. cit., p. 31

[23] VICUÑA, op. cit., p. 20

[24] Conceito de Jacques Lacan, inspirado numa comédia barroca de Molière, L’étourdi: efeito teorizado como aquilo que se diz e permanece esquecido atrás do que foi dito naquilo que se ouve.

[25] VICUÑA, op. cit., p. 20. Grifos da autora.

[26] Ibid., id., na mesma página. Grifos meu.

[27] BRODSKY, Ricardo B; FARRIOL, Roberto G., op. cit., p. 19.

[28] SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.

[29] POUND, Ezra. Abc da literatura. 11° ed. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2006.