Surrealismo e América Latina: reflexões gerais – Elys Regina Zils

Surrealismo e América Latina: reflexões gerais

Elys Regina Zils*

 

Montes de nueve torres, Xul Solar

O surrealismo aspira a uma criação artística voltada ao inconsciente e ao mundo onírico, com o intuito de ir além da realidade física e racional. Consequentemente, fascina-se pelo pensamento mágico das sociedades pré-colombianas. O surrealismo encontra nessas culturas os poderes poéticos que foram perdidos pelo homem ocidental, e como afirma Jean Puyade, procura “a continuidade do trabalho de ‘tábula rasa’ iniciado pelo dadaísmo” (PUYADE in PONGE, 1999, p.19). Essas novas descobertas trouxeram energia para renovar a inspiração surrealista. O enriquecimento foi significante, exercendo um fascínio duradouro.

Os surrealistas vieram em busca do espiritual maravilhoso desses povos.  Seus mitos ancestrais, sua concepção de unidade entre o homem e a Pacha-mama foram elementos de inspiração poética. Segundo Enrique Molina, “o surrealismo é, de certo modo, um estado natural da América” (MOLINA in PONGE, 1999, p. 25). O mito, de grande interesse em contraste com a sociedade dominada pelo racionalismo cientificista, possui um caráter estético. Não se trata de voltar ao tempo em que se acreditava nos mitos como verdade, mas de “incorporar a la vida contemporánea su potencialidad de metamórfosis” (LUIZ, 2008, p.3). Toda a magia envolta das máscaras primitivas também seduziu os surrealistas, representando a utopia surrealista de um universo onde tudo é possível.

Enrique Molina começa seu artigo Surrealismo Novo Mundo com a imagem do bisão gravado na pedra de uma caverna. Gesto realizado por impulsos instintivos, sem qualquer referência religiosa, porém, o “artista” penetra nos segredos do mundo desconhecido, em uma vertente mágica, desejando o sucesso de sua caçada.  Cria-se aqui a magia por correspondência que alimentará o ocultismo por séculos. Essa concepção imaginaria por analogias atua na fronteira entre o mundo interior e exterior, fazendo-a se dissipar. Ponto formulado por Breton, lembrado aqui por Molina, “onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável deixam de ser percebidos contraditoriamente” (MOLINA in PONGE, 1999, p. 23).  O surrealismo busca a surrealidade, quase uma “realidade absoluta”.

O surrealismo vem propor a revolta em busca da liberdade integral do homem com o lema de “mudar a vida e transformar o mundo”. Portanto, o surrealismo também inscreve-se na resistência das nações da América que lutam para mudar a sua realidade de oprimidos, pois o surrealismo assume as responsabilidades diante de fatos sociais injustos e de exploração do homem. Queriam preservar sua arte, exaltar seus aspectos criativos e defende-los do imperialismo dos grandes opressores. Um bom exemplo é o manifesto “Não visitem a exposição colonial!”, de 1931, em contra ao museu dedicado as colonias porque faria apologia ao colonialismo retrando um “bom selvagem” que seria submisso. O manifesto exigia a evacuação das colonias e o julgamento dos responsáveis pelos massacres.

A arte pré-colombiana tem característica semelhante ao surrealismo ao “desnudar as raízes da criação” (PUYADE, in PONGE, 1999, p. 19).  Esse processo passa por uma subversão dos cânones ocidentais. Desse modo, as mitologias primitivas representavam um oásis não contaminado pelas formas de poder ocidentais.  Pierre chama a atenção para o fato que as religiões da América indígena relacionam-se exclusivamente com a magia, com concepções mítico-poéticos. Para o surrealismo todos nascemos livres e dotados de potencial poético até que a dura realidade de valores práticos reprime todo esse potencial que ficará apenas no inconsciente. Acredita-se que os americanos antes da Conquista eram “verdadeiros poetas, no sentido mais profundo, mais violento e mais ‘primitivo’[1] que esse termo é passível de revestir” (PIERRE in PONGE, 1999, p. 102). O verdadeiro poeta é o xamã, o mágico, que age sobre o mundo pela palavra.

Essa admiração dos surrealistas com relação às civilizações indígenas da América, fez com que os mesmos importassem vários elementos artísticos dessas culturas, e despertasse neles um grande interesse pelo seu pensamento e filosofia. Nesse quadro, a relação do homem com os objetos está fundada numa relação de emoção, sensíveis a esse objeto, ele torna-se uma abertura a novos conhecimentos. Por isso, os surrealistas desconfiam dos etnólogos que teriam uma visão objetiva e assim seriam incapazes de alcançar a verdadeira interpretação dessa arte.

Nessa terra de sonhos, outro fator que chama a atenção dos surrealistas é o espírito de coletividade que flui entre eles. A criação coletiva é umas das propostas dos surrealistas, que a propuseram através de jogos como o cadáver esquisito. Nesse jogo cada participante escreve uma palavra ou frase e a última seria a representante do pensamento inconsciente coletivo.

Em 1936 ocorre a Guerra Civil Espanhola e quando finalmente ela termina, em 1939, estoura a Segunda Guerra Mundial. Esses acontecimentos fazem com que inúmeros artistas partam para a América. O México foi privilegiado, governado por um presidente progressista, abriu as portas para os intelectuais espanhóis. Evidentemente, outros países também receberam esses artistas e contribuíram para a busca do maravilhoso no novo mundo.

Em 1938, Breton vai conhecer o México após ouvir os relatos de Artaud que havia conhecido os povos do peiote do México, experiência da qual acredita ter experimentado o encontro do seu eu com suas verdadeiras origens. Entre 1941 e 1948, Péret também vive nessa terra “mal despertada de seu passado mitológico” nas palavras de Breton. Outros pintores que demostraram interesse pela América indígena, foram André Masson, Wolfgang Paalen, Max Ernest, Victor Brauner, entre outros.

Além dos próprios artistas surrealistas franceses viajarem para a América e de voltarem a Europa inspirados por esse continente, as ideias surrealistas vieram e floresceram no novo continente onde encontram ecos de elementos próprios.

O surrealismo teve grande repercussão na literatura hispano-americana, com presença marcante em países como México, Argentina, Chile e Peru. Evidencias de que o surrealismo tocou nossa América são as produções, a partir de 1926, de Enrique Molina, Aimé Césaire, Wilfredo Lam, Roberto Matta, Octavio Paz, César Moro e E.A. Westphalen, exemplos como esses provam que o movimento surrealista foi um dos de maior influência no continente. Além de muitos outros artistas que nunca foram propriamente considerados surrealistas.

Segundo Barthes, para que possa existir vanguarda, a sociedade deve combinar duas condições históricas, uma arte reinante de natureza razoavelmente conformista, e um regime de estrutura liberal; noutras palavras, é preciso que a provocação encontre ao mesmo tempo sua razão e sua liberdade.  Na América hispano a vanguarda encontrou um solo que precisava de suas sementes para trazer a renovação de sua linguagem e técnicas, seu espírito questionador e crítico, de certa forma se incorpora a tradição reformulando-a.

Em países como Argentina, Peru e Brasil percebemos as vanguardas como uma potência de renovação das linguagens existentes e a possibilidade de pensar em uma língua que fosse realmente nacional. Exemplos como Macunaíma de Mário de Andrade, o neocriollo de Xull Solar e o projeto de Francisco Chuqiwanqa Ayulo de recuperar marcas indígenas na fala, retratam essa vontade de expressar-se em uma língua que fosse sua e representasse a realidade nacional e não a imposição colonial. Lembrando que já em 1825 faz-se a distinção entre língua escrita europeia e “língua falada americana” (SCHARTZ, 2008, p. 66). As vanguardas reforçaram o desejo de uma identidade própria com essa reflexão sobre as especificidades da língua. Mesmo que o surrealismo não tenha interesse no “nacional”, seu desejo pela liberdade integral do homem, pelo maravilhoso cotidiano, pelo amor, acabam por incluí-lo nessa discussão.  A linguagem de origem onírica situa a poesia em uma realidade.

Ainda que foram muitos os contatos com os franceses, o surrealismo ganha diferentes tons ao brotar em solo americano. Teve sim influência do surrealismo francês, talvez com maior abertura ao francês por se distanciar da experiência norte-americana e do legado colonial. O surrealismo latino-americano se deu mais como uma linguagem, um código, um meio. Mais que explorar o sonho, temos aqui a vontade de buscar outra dimensão do real com uma linguagem poética.

Robert Ponge consta que a chegada do surrealismo na América Latina foi extremamente rápida e se deu de modos distintos nas diferentes localidades. Como expõe Octavio Paz, Aldo Pellegrini, na Argentina, foi o fundador do primeiro grupo surrealista de língua castelhana de aspecto mais estético e introspectivo; o grupo chileno foi mais político e amplo; e nos demais países não houve grupos organizados surrealistas, apenas destaques para algumas personalidades (PAZ in PONGE, 1999, p. 165).

Quanto ao que diz respeito ao Brasil, ainda hoje parece que alguns creem que não houve surrealismo no Brasil. Essa ausência brasileira nos estudos sobre o surrealismo, às vezes justifica-se pela barreira da língua portuguesa como intransponível ou pela força que teve o Modernismo. Mas o fato é que tivemos artistas brasileiros surrealistas como Sergio Lima e Roberto Piva; e, inclusive a presença do francês Péret em nossas terras.

Do México a Argentina o surrealismo parece ter significado mais que apenas um novo movimento artístico, seria uma oposição ao discurso oficial, o inconsciente a favor da liberdade. O surrealismo significou uma revolução na expressão artística e no homem.

 

 

Referências

 

BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. Textos reunidos por Jean-Loup Rivière. Tradução: Mário Laranjeira. Martins Fontes, São Paulo, 2007.

LUIS, Carlos M. Los surrealistas en la América. Revista de cultura # 65
fortaleza, são paulo – setembro/outubro de 2008.

PONGE, Robert. Surrealismo e o Novo mundo. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999.

SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

 

*Mestranda na UFSC



[1]Primitivo no sentido de primeiro a existir.