Do fundo do baú – Aurora Bernardini
Do fundo do baú
Aurora Bernardini*
Poesia em Tempo de Guerra e Banalidade
Quanto ao caráter sagrado da poesia em seu primeiros dias, não subsiste dúvida. Constituía, juntamente com os gestos, os rituais das religiões primevas de nossos predecessores.Era, para dizê-lo com Heidegger, o momento da “ instauração do ser”.
Passou depois a ser canto, madrigal, ode, epitáfio, desafio: passou pela idade de ouro, de prata, bronze e ferro…ah, ia esquecendo, pela idade dos heróis, também. Teve imenso número de cultores em vários continentes e grandes críticos( especialmente os românticos e os pós-românticos) que estabeleceram cânones e regras.
O que está em dúvida — hoje em que os tempos não parecem propícios e, por outra, em que tanto o que se escreve tende a chamar-se poesia — é o que ainda pode sê- ló realmente, em termos de criatividade transformadora.
A inclusividade
Um dos ensaios mais interessantes de SIBILA n.10 ( novembro, 2006), que mencionaremos aqui, vem da remota Finlândia, o pequeno país que temperou seu aço espremido ao lado da então toda-poderosa União Soviética, e seu autor ( jornalista-ativista político ( comunista sem ser esquerdista)-poeta), Leevi Lehto, dá-nos umas respostas que, curiosamente, vêm atualizar dois dos mais conhecidos textos ocidentais sobre poesia, o de Heidegger (1916) sobre a essência da poesia e o de Benjamin (1915) sobre dois poemas de Hölderlin (“Holderlin y la Esencia de la Poesia” in Martin Heidegger- Arte y Poesia,Fondo de Cultura :Econômica, México, 1973 (doravante H) e ”Deux poèmes de Friedrich Hölderlin” in Walter Benjamin . Mithe et violence,Denoël, Paris, 1971).
Nesse nosso mundo de Guerra e de Banalidade, diz Lehto ( referindo-se ao título do Seminário Internacional de Poesia realizado no Espaço Cultural CPFL em maio e junho de 2006, em Campinas.,que os números 10 e 11 da SIBILA abrigam ), a poesia “ tem a capacidade de olhar a estupidez e a barbárie diretamente nos olhos” no sentido também de aceitá-las, inclusivamente mas anti-ideologicamente.
Esta inclusividade levou a formas contraditórias e extremadas: a poesia vista como “ a mais inocente de todas as ocupações” e ao mesmo tempo como “ o mais perigoso dos bens” (H) por estar fundada e fundar a linguagem enquanto palavra essencial, autêntica.
Enquanto mediação entre formas extremas, pensamento x sensorialidade, racional x irracional, particular x universal, sublime x trivial etc., no sentido de “abranger tudo”, trilha a poesia outra dimensão:a da incomprensibilidade.
A incomprensibilidade
“Habitar poeticamente – diz H. – significa estar na presença dos deuses e, ao mesmo tempo, ser tocado pela essência das coisas próximas. Que a existência humana é poética em seu fundamento significa – para além de qualquer esforço do homem que não chega à razão de ser da existência humana – que sua instauração não é um mérito, mas uma doação. “A poesia não é um ornamento que acompanha a existência humana, nem tão somente uma exaltação passageira, ou calor da hora, ou uma diversão. Ela é o fundamento que suporta a história, e por isso não é, tampouco, uma manifestação da cultura, e menos ainda a mera “expressão”da “alma da cultura” (H.) A essência da poesia deve ser concebida como essência da linguagem ou melhor, a essência da linguagem ( da linguagem primitiva de um povo histórico) é a essência da poesia.
Mas “ somente às vezes suporta o homem a plenitude divina” e “deve partir a tempo/aquele por quem fala o espírito”( respectivamente versos de “Pão e vinho” e de “Empédocles” de Hölderlin, citados por H.), daí a incomprensibilidade, tal como era definida na época : a excessiva clareza afunda o poeta nas trevas (H).
Se, como diz agora Lehto, a poesia perdeu a incomprensibilidade hoje, isso teria acontecido por dois motivos. “ Poderia ter perdido sua conexão com o ideal ou – caso ainda mais grave – a estupidez e a barbárie poderiam ter adquirido novas dimensões, tornando-se fortes demais para a poesia [poder] abrangê-las e até mesmo tornando-se capazes de engoli-la.”
Mas, deixemos a poesia lidar com isso ela própria, continua L. que se considera um otimista: tampouco o presente nos pertence. [Os tempos] já não nos pertencem, da mesma maneira que eles já nos pertenceram. A queda do Muro de Berlim (1989), a expansão da Internet, a Globalização e o Capitalismo – faz questão de frisar L –apontam para um mundo completamente novo onde nada é o que já foi.
Tradição e Capitalismo
Até mesmo a ‘ Tradição’, para Lehto , é mais uma ’tradição de rupturas‘ , de uma constante separação do obsoleto: a idéia de ilhotas de liberdade, sempre temporárias, marginais, com fronteiras instáveis e proporcionais – mas só parcialmente – à História ( nem contínua , nem teleológica), e que limitam com as anteriores‘tentativas do mesmo´.
Diria L. que o Capitalismo nunca produz tais ilhotas, mas – parece – nunca deixa de produzir possibilidades para elas. “ Não posso acreditar nelas; não posso deixar de acreditar nelas. Talvez eu resumisse minha atitude em duas formulações de dois grandes pensadores marxistas que me influenciaram na juventude: ´pessimismo do intelecto, otimismo da vontade ´ de Gramsci, e ´Materialismo aleatório´- de Althusser.
Em todo caso, para mim a história é aberta. Aberta, mas cega. Cega, porque aberta.
Voltando à poesia, “ nunca senti uma necessidade ´séria´ de me expressar, nenhum desejo juvenil de ´desabafar´; apenas um (bem humorado) apetite de produzir algo novo ( para mim), um tipo de desejo vazio que não sabe o que procura. E a colisão – lateral, diria – desse desejo com a ainda jovem tradição da moderna ficção finlandesa.
Acontecia, porém, que quanto mais eu ‘entendia‘ minha própria tradição, mais ficava claro para mim que não poderia partir dela, distanciando-me, ir para lugar algum. Para que a segunda parte de minha obra decolasse [O “Google Poem Generator”que L.inventou em 2002] foi necessário um novo confronto lateral, dessa vez com uma grande tradição estrangeira: a Language Poetry norte-americana. O que me interessava nela era exatamente o fato de que eu não podia sequer imaginar entendê-la: por causa da distância geográfica e porque a Language não tinha a intenção de ser entendida.
Mas não há progresso sem influências : a minha mente e seu outro incompreensível: sempre de um outro lugar. Sempre lateralmente
ABC do pensamento e criação de conceitos na Poesia
Diria que essas duas experiências combinadas [ inclusividade e incompreensibilidade] – continua L.– ensinaram-me o ABC do pensamento que resumo assim: a poesia é pensamento – apenas uma forma de pensamento na qual, com freqüência, certas contradições internas podem ser levadas mais longe e reveladas mais abertamente do que em qualquer outra forma. Em segundo lugar, o pensamento não é a atividade de um sujeito auto-expressivo, ‘raciocínio’ ou ´racionalização’, não é uma tomada de consciência da proporção entre as coisas, mas pelo contrário, é se expor à desproporção das coisas , ao ‘ não entendimento’: criar conceitos, como se diria na nova teoria francesa. Em poesia, pelo menos, o pensamento também chega até nós de um outro lugar, deixando-nos ‘fora de nós mesmos’.É não-subjetivo mas também é não-comunal. Num certo sentido isso quer dizer que a poesia não pode ser política e ainda, deve resistir a toda tentativa de se tornar socialmente útil. Como a resistência para Negri, para mim, diz L., a poesia não pode existir no contexto de um Contrato Social no qual é necessário supor a existência de um sujeito histórico ( a pátria, o povo, as classes operárias…a literatura… o movimento… a empresa…) com o qual o indivíduo/poeta se identifica, da mesma maneira em que os sujeitos individuais se tornam ‘cientes´ por meio da ideologia.
Resistência
Para nos opormos aos males da Globalização [trivialidade, guerra como auto-evidente continuação da política, midiatização da guerra , militarização da mídia, indústria da mídia…] temos apenas a dissolução e a fragmentação de todo tipo de resistência…
Estou convencido de que haverá espaço [ para um otimismo da vontade] e de que a poesia pode recuperar sua ‘ perspectiva e urgência’ aproveitando, precisamente, sua relação particular com a Barbárie e a Banalidade em pauta: em geral, enfatizando sempre mais radicalmente sua própria insignificância e renovando constantemente sua relação com sua própria incompreensibilidade.
O enigma do significado poético não pode se reduzir ao uso’correto’ nem ao uso incorreto da linguagem ( apesar do último resultar mais produtivo): a poesia inclina-se para algo que vai além disso e que está ligado ao que é chamado de ‘escrita conceitual” ( a Conceptual Writing de Dworkin, Goldsmith, Weshler-Henry etc.) e que eu chamaria de ‘o sublime linguófugo’.
Explico-me.
Proposta
As comunidades lingüísticas tradicionais ( em geral associadas ao estado-nação) estão perdendo seu caráter unitário: temos um nexo de linguagens especializadas que se fragmenta rapidamente. Tais linguagens especializadas ( gírias, jargões etc.), de fato evoluem com suas respectivas línguas gerais, mas não podem ser reduzidas a elas. – as influências nas margens da linguagem, com frequência, têm uma importância maior.
De maior interesse para essa mudança ( tanto para o futuro da poesia como para o futuro do mundo) – e esta é minha afirmação principal neste ensaio – é que essa mudança parece não impedir as possibilidades de uma interação humana, mas pelo contrário, tende a aumentá-las.
Comunhão e pertencimento, enquanto sentimento de unidade – são vistos como mutuamente dependentes. Quero propor o contrário: talvez a comunalidade seja entendida melhor como a experiência da linguagem do outro, uma língua que nunca será compreendida totalmente, que nunca será ‘ dominada’, mas que situa você num lugar do mundo onde você pode falar como uma singularidade, como um modo único numa multidão infinita. ( não mais como membro da comunidade, como sujeito do Contrato Social).
Esta nova língua, enquanto visão de um novo tipo de World Poetry que ainda não existe, poderia ter as seguintes coordenadas: independência das literaturas nacionais ( do tipo da Weltliteratur de Goethe); mistura de línguas; empréstimo de estruturas alheias, rítmicas e sintáticas;invenção de novas línguas [como o caso do zaúm de V. Khlébnikov]; tentativas de escrever para um público heterogêneo, etc.
Voltando ao início, à Guerra, à Barbárie e ao Capitalismo, a fragmentação e a dissolução de que falo são, de fato, geradas pelo Capitalismo, também produtor da ‘ voracidade comunicativa e midiática’. Como separar ou conciliar essas tendências?
A indústria midiática global é típica dos fundamentalismos, onde condensa e simplifica a complexidade do mundo mediante slogans vazios e primários: ‘ Nós contra os Malfeitores’; ‘A Guerra Santa contra os Infiéis’, etc. etc. Mas também ( cf. Althusser e Gramsci) funciona como uma espécie de ‘cola’ que une a sociedade – uma ideologia onipresente que , de um lado, obriga os indivíduos a se tornarem sujeitos num reality-show, fazendo coisas ‘ inversas’ ao seu ser social e, no outro, obriga os indivíduos a pilotarem um avião contra as Torres Gêmeas… “Lá, uma ideologia dominante e unificante; aqui, uma crescente fragmentação que requer um tipo totalmente novo e diferente de interação”.
Apesar dessas duas maneiras terem muito em comum, gostaria ( por brincadeira séria) de traçar uma linha de contradição entre elas.
Lembrando que caracterizei a poesia como anti-ideológica, vou valer-me dos termos ‘ ideologia’ e ‘ trabalho imaterial’.
Na teoria marxista a ideologia se situava na superestrutura, num nível isento de evolução, herdado da antiga sociedade e devendo ser eliminado para permitir o ‘ desenvolvimento livre das forças produtivas’.
Posteriormente ( século XX) esta teoria foi substituída pela mencionada teoria da ‘cola’ que apresentou outro problema: como pensar na possibilidade de uma consciência revolucionária se desenvolver fora dessa ideologia onipresente?
( Isso se põe em relação ao futuro da poesia)
Pois bem, sugiro que pensemos em nosso tempo como aquele em que o Capitalismo entrou finalmente em contradição com os seus alicerces, com sua superestrutura e com sua ideologia dominante ( conforme já disse, a fragmentação – positiva – é um produto do capitalismo.) Faço agora a seguinte provocação: “se ainda procuramos fazer com que a poesia tenha relevância, ‘perspectiva e urgência’ dentro do esquema capitalista, temos que situá-la – ela que é uma atividade ‘ que nada produz’ e a mais insignificante das artes — na base material e econômica da sociedade, como parte de suas forças produtivas.
De fato, muitos teóricos hoje vêem como sendo a parte mais dinâmica da produção atual justamente o assim chamado ‘trabalho imaterial’( seu ser para si, sua tendência à auto-suficiência, — o que é parte de todo o trabalho intelectual)
Mas “essas noções, não são por acaso exatamente os ingredientes centrais da velha utopia marxista do comunismo?”(Cf. Teses sobre Feuerbach de Marx: “ Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o fundamental agora é transformá-lo…. O fundamental não pode deixar atrás o pensamento, mas torná-lo uma força ativa e, sim, produtiva”…)
Existem pontos em comum. Se há um futuro nesse sentido, a poesia contribuirá para ele cumprindo seu papel, para onde isso a conduzir.
Afinal, para onde seria conduzida a poesia?
O editorial da SIBILA fala da poesia de nosso tempo como uma produção cada vez maior, mais prolixa, dentro de ambientes cada vez mais homogêneos e conforme com uma dimensão mediana, sendo que se descrê em sua ação transformadora .
Com esse amortecimento das expectativas dá-se o indiferentismo, a alienação e o tédio. Mas, pode existir uma criação que renuncie à transformação?
Pois bem, responde Lehto, não pode existir uma criação que renuncie à transformação e – justamente por isso — a maioria das questões atinentes à poesia hoje redunda numa única questão: as (novas e mutáveis) condições de sua produção.E essas novas condições de produção da poesia, capazes de ‘desnaturalizar o desastre’, debelar ‘ o indiferentismo’ de que fala o Editorial,. e até produzir algo para a fruição de uma vida amena, estão relacionadas à INTERNET, ao mesmo tempo expressão das mais importantes tendências do Capitalismo e metáfora do desafio ao Capitalismo enquanto tal.
Como e porquê, fica para uma outra vez.
*Professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP