A cantora careca ou eu e você de peruca – Bruno Santos

A cantora careca ou eu e você de peruca

 

Bruno Santos*

 

Théâtre de la Huchette

Théâtre de la Huchette

A cantora careca, de Eugène Ionesco, escrita no ano de 1950, foi classificada pelo próprio dramaturgo como uma anti-peça, por não conter em sua trama coerência na maioria dos diálogos, ao contrário do que comumente se preza na maioria dos textos dramáticos clássicos.

Na estreia do texto posto em cena uma surpresa: o autor, além de entrar em contato com a frieza que foi a recepção por parte do público, viu a maioria dos poucos espectadores rirem do que ele havia arquitetado como: “tragédia da linguagem e da condição humana.”

Hoje, por outro lado, após inúmeras montagens e releituras e a permanência de uma dessas adaptações há mais de 50 anos no mesmo teatro em Paris, onde todas as noites os 92 lugares do pequeno recinto teatral são preenchidos, a peça do autor franco-romeno já se tornou um clássico. E mesmo alçada a esse posto, o texto ainda é capaz de provocar questionamentos sobre o que se propõe.

A trama é simples e as ações são de pouco valor para o desenvolvimento desta. O jogo se dá mesmo no campo da fala, onde nos vemos numa encruzilhada de histórias e diálogos que pouco se valem do que chamamos de racionalidade.

O texto se enquadra no conceito do teatro do absurdo, onde figuravam autores como Samuel Beckett e Jean Genet. Esse movimento rompeu com padrões estéticos e mostrava, justamente, os absurdos da experiência e da condição humana. Como ressalta o crítico Martin Esslin, o teatro do absurdo trata: “do reflexo do que parece ser a atitude que mais autenticamente representa nosso próprio tempo.”

Esse tempo, ao qual se refere Esslin, é o tempo do pós-segunda Guerra Mundial, onde um fato tão doloroso é capaz de balançar de forma drástica a ideia do que somos. Ou talvez uma guerra seja capaz de deflagrar os absurdos do cotidiano que antes talvez pudessem passar despercebidos. Como o livro de inglês no qual Ionesco teve a primeira ideia sobre a peça, onde ele, ao aprender sua terceira língua, via lições que lhe ensinavam fatos escabrosos, como o de que a semana possui sete dias.

E ele observou que em seu cotidiano, por apreensão mecânica das coisas e por total individualização da escuta, todos falamos coisas absurdas, sem sentido, mas agimos como se elas possuíssem um. Recentemente, uma pesquisa feita no Brasil, se propôs a testar se realmente as pessoas dão atenção ao que o outro diz.

A ação era a seguinte: um ator, em um carro, parava em locais estratégicos para pedir informações cotidianas, como comumente fazemos. Praças, postos de gasolina, semáforos. Ao abordar um pedestre, pedia a informação básica, como: ‘Onde fica tal rua, tal edifício” e acrescentava algo que a qualquer pessoa soaria absurdo, como: “Onde fica o lar de idosos, eu estou indo lá pra matar uma senhora.” Ou: “Sabe onde tem um rio? Estou indo lá pra desovar um cadáver.” E quase oitenta por cento das pessoas abordadas simplesmente não ouviam essa parte, mas apenas respondiam de forma mecânica a informação. Como respondem há anos, sem qualquer envolvimento com o diálogo que travam.

Na peça de Ionesco, estando cada um preso em seu próprio invólucro. Com o diferencial de que colocam para o verbo a total falta de coerência que existe dentro de cada um deles. Claro acharmos que os personagens são sem nexo e rirmos do que achamos ridículo pode parecer uma saída fácil. Questionarmos se existe de fato uma coerência no que concerne a vida e o ser humano é que pode nos levar a também colocarmos para fora a desordem que pode então se revelar à nossa frente.

Aliás, fato curioso é que a própria cantora careca nunca se personifica em cena. Aparece numa frase que não pertencia a peça original e pode passar despercebida em meio a tantas. Fica no pensamento colocar em matéria como seria essa cantora, que roupa ela veste e, claro, sua falta de cabelo. Ou a nossa.

 

* Aluno de Artes Cênicas da UFSC