Adaptações Cinematográficas oriundas da Literatura: Reflexões sobre os Primeiros Anos do Cinema – Diogo Berns
Adaptações Cinematográficas oriundas da Literatura: Reflexões sobre os Primeiros Anos do Cinema
Diogo Berns*
O Cinema criou e alimentou, ao mesmo tempo, um apetite pelo espetáculo, oferecendo a oportunidade de se recriar o passado, reimaginar o presente e visualizar o futuro. A tecnologia que o possibilitou foi inventada em 1895, mas os primeiros filmes tinham, em geral, apenas poucos segundos de duração e mostravam cenas cotidianas simples ou trucagens visuais. (KEMP, 2011, p. 16)
Ao longo das últimas décadas, pesquisadores têm se empenhado em estudar os conteúdos audiovisuais produzidos desde o início da existência do cinema até o contexto atual. Em muitos casos, existe o objetivo de compreender a história da cinematografia e a busca por obras que foram perdidas durante os anos. Através de diversas análises e evidências encontradas, eles constataram que a arte cinematográfica, ao menos, sob o ponto de vista estético e narrativo era diferente do que se observa na contemporaneidade. As técnicas empregadas nas filmagens e, consequentemente, os aspectos fílmicos utilizados na composição da diegese, como a trilha sonora, elementos de cena e postura dos atores diante da câmera, eram organizados de modos distintos do que se percebe no século XXI. Se atualmente o cinema é considerado um meio de relevância cultural e artístico que influencia milhares de pessoas ao redor do mundo em relação à moda, comportamento, ideologias e formação de opinião, no princípio era uma atividade marginal, distante do glamour e mais ainda do poder econômico e político que o cinema hollywoodiano conquistaria anos depois. Ele era apenas uma atração em meio a tantas outras que chamava a atenção de plateias ansiosas por diversão e novidades.
Para entender o porquê de as primeiras obras cinematográficas serem diferentes das que estamos acostumados a assistir é preciso que esqueçamos os complexos efeitos especiais que vislumbram o público na maior parte do mundo. É importante lembrar que as tecnologias não eram tão sofisticadas e nem havia os famosos blockbusters, filmes assistidos por um grande número de espectadores. Um detalhe que não devemos esquecer é o contraste entre aquela época e a que vivemos. Se ficássemos apenas nesse assunto, já teríamos um estudo de grande relevância para discutir a história da cinematografia através de conceitos relacionados aos mais variados costumes, debates e questões políticas distintas entre o passado e o presente. Faz-se necessário também recordar que, apesar de inúmeros estudos acerca dos primeiros filmes, ainda muitas incógnitas, referentes à produção, questões narrativas, exibição e como se deu a recepção dessas obras quando entraram em contato com culturas de diversos locais do mundo, permanecem sem respostas.
Quando se assiste àquelas que são consideradas as primeiras obras cinematográficas, nota-se a ausência das cores vibrantes, da trilha sonora como estamos habituados a ouvir, dos diálogos, das sequências narrativas, do ritmo e até mesmo da adrenalina causada pela ação. Naquela época, o cinema deu seus primeiros passos. Era um período de experimentação, de gestos improvisados pelos atores e, evidentemente, de muitas limitações técnicas para as quais os diretores tentavam buscar soluções, a fim de que a criatividade não fosse afetada. Muitos leitores e até mesmo pesquisadores talvez pensem que aqueles filmes eram arcaicos, sem prestígio algum. No entanto, foram a base para que hoje pudéssemos apreciar uma arte com recursos capazes de criar as narrativas e que, futuramente, poderá vir a apresentar ainda mais opções técnicas que enriqueçam a construção das histórias e a interação com o público.
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a convenção sobre o surgimento do cinema não menciona os Estados Unidos como país berço dessa arte, mas sim a França. Em 28 de dezembro de 1895, era exibido o filme “A saída dos Operários da Fábrica Lumière” (La Sortie de l’usine Lumière à Lyon), considerado o início do cinema para alguns pesquisadores. Arlindo Machado, na apresentação do livro “O Primeiro Cinema: espetáculo, narração, domesticação”, de Flávia Cesarino Costa, comenta esse fato:
Há mais de cem anos, os irmãos Louis e Auguste Lumière fizeram projetar, no Salon Indien do Grand-Café de Paris, uma coleção de imagens fotográficas animadas e essa projeção foi considerada, por grande parte dos historiadores, a primeira exibição pública do cinema e, por extensão, o marco do nascimento dessa arte. Como qualquer outro marco, o do cinema não deixa de ter um valor simbólico, já que do ponto de vista histórico rigoroso ele é arbitrário. (2005, p.7)
Figura 1 – Filme A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1885), de Louis e Auguste Lumière
Assim como é impossível, até o momento, afirmar a data em que o primeiro filme foi exibido, o mesmo pode ser dito acerca de qual foi a primeira adaptação realizada da literatura para o cinema. Os pesquisadores têm trabalhado na busca de obras que foram perdidas no decorrer dos anos. É uma investigação preciosa tanto para o cinema quanto para a história, pois pode trazer importantes reflexões sobre a sociedade da época. Afinal,
Ao interrogar um filme, vários filmes, ou parte de um ou mais filmes mediante determinada opção metodológica, deve-se tratar esse objeto de estudo como um conjunto de representações que remetem direta ou indiretamente ao período e à sociedade que o produziu. A análise das narrativas e do momento de produção dos filmes comprova que estes sempre falam do presente, dizem algo a respeito do momento e do lugar que constituem o contexto de sua produção. (VALIM, 2012 p. 285)
Nesse sentido, é importante destacar que se as adaptações realizadas, por exemplo, nos primeiros dez anos do cinema fossem produzidas no momento atual, certamente seriam diferentes em vários aspectos. Um deles é o estético. No início, o preto e o branco eram as cores com que o cinema apresentava as histórias aos espectadores e, com o passar do tempo, essa limitação foi superada e os filmes ganharam novos dimensionamentos ao explorar outras cores e tonalidades. Os recursos sonoros também avançaram. No começo, os filmes limitavam-se ao acompanhamento musical nas cenas, que, muitas vezes, possuíam letreiros para indicar as falas. A cinematografia pôde valer-se do som para compor as narrativas e instaurar uma nova opção na composição fílmica. Além disso, não devem ser esquecidas as discussões presentes na sociedade no período em que se está produzindo um filme. Elas são, em muitos casos, representadas nas obras audiovisuais através das ações dos personagens e influenciam a opinião do público. Além disso, os costumes da época, o modo de se vestir, a tecnologia usufruída pelas pessoas alteram com o passar do tempo e essas mudanças são percebidas quando se assiste a obras de períodos diferentes.
O cinema é uma arte que já nos primórdios despertava a atenção do público pelas imagens e histórias que eram contadas. Desde o início, ele encantou os espectadores pela novidade (e por que não dizer pela revolução?) que estava trazendo à sociedade. Segundo, Román Gubern, em Historia del Cine, quando viram o primeiro filme ser exibido pelos irmãos Lumière, “os espectadores ficaram petrificados, (…) impressionados diante daquele espetáculo jamais visto antes” (2005, p. 23). Era a partir dali que surgia uma nova forma de comunicação e expressão da humanidade que mais tarde seria considerada uma forma de arte.
De uma atividade desacreditada até mesmo por muitos cineastas em relação ao potencial que atingiria anos mais tarde e apresentando filmes de curta duração, o cinema emergiu na sociedade em feiras onde o público buscava novidades. Pouco a pouco, ele foi ganhando relevância e chegando aos diversos países do mundo. Para comentar a história da arte cinematográfica, certamente, existe a necessidade de ser feito um recorte e ainda mais quando tratamos das adaptações realizadas da literatura para o meio audiovisual.
Dadas algumas reflexões sobre os passos que o cinema deu em seu início, podemos agora discutir acerca de algumas das primeiras adaptações realizadas no campo audiovisual, tendo como ponto de partida a literatura. Nesse momento da história, elas estão inseridas no que se costuma dizer primeiro cinema, um período essencial para a consolidação dele como arte, comunicação e expressão humana:
As datas referentes ao primeiro cinema não são arbitrárias. A delimitação do período abarcado pelo primeiro cinema fundamenta-se na constatação, por parte da historiografia recente, da presença de algumas características constantes no cinema até 1908. São características relativas aos modos de produção e exibição dos filmes, à composição e comportamento do público e às formas de representação dos filmes. A dificuldade em descrevermos o primeiro cinema decorre do fato de que este período é um momento de constantes transformações. (COSTA, 2005, p. 35)
É nesse cenário que ocorreram as primeiras adaptações da literatura para o cinema. Não se pode afirmar, de fato, qual a obra fílmica que inaugurou essa tendência no meio audiovisual e, praticamente, impossível, até então, estabelecer a data em que foi apresentada ao público e, tampouco, como ele a recepcionou. Porém, existem diversos estudos que procuram por essas respostas. É certo que faltam muitos dados ainda devido à grande perda das obras ao longo da história. No entanto, ao analisar algumas que foram recuperadas, podemos constatar semelhanças com os estudos das que foram escritas especialmente para o cinema e até mesmo questionar certas convenções que se tem acerca do período conhecido como primeiro cinema.
O livro “Da Terra à Lua” (De la Terre à la Lune), escrito por Júlio Verne, publicado em 1865, por exemplo, é um exemplo de obra literária adaptada para o cinema. Na adaptação, recebeu o título de “Viagem à Lua” (Le Voyage dans la Lune). Dirigido por George Meliès, o filme é uma das obras audiovisuais mais populares da história da cinematografia, sendo referenciada em videoclipes musicais, imagens e em outras produções. A narrativa conta a história de um grupo de astrônomos que viaja ao espaço até chegar à Lua e lá é preso pelos habitantes do local. Meliès utilizou diversas trucagens e efeitos na transposição da obra literária para o cinema. Os cenários foram cuidadamente preparados para conferir verossimilhança ao enredo, a fim de que o público pudesse imergir na história. Um fato interessante é a presença da fusão entre duas imagens quando se passa de uma cena a outra, algo que, segundos pesquisadores, não era tão comum para a época.
Assim como qualquer outra adaptação, no período do primeiro cinema fez-se fundamental as escolhas do que seria transposto do texto fonte para o meio audiovisual e o que seria recriado nele. Linda Hutcheon, em “Uma Teoria da Adaptação” menciona que “a adaptação sempre envolve tanto uma (re-)interpretação quanto uma (re-)criação” (2011, p. 29). Foi preciso, portanto, que Meliès e os demais cineastas do período analisassem os textos que desejavam adaptar para o cinema e selecionassem partes que consideravam fundamentais ao entendimento do público. Além disso, foi necessário utilizar recursos cinematográficos para contar a história aos espectadores, e isso, certamente, sempre será um desafio dos cineastas ao adaptarem uma obra de qualquer outro meio. Porém, já naquele período, Meliès e os demais diretores puderam analisar o cinema como arte e verificar as possibilidades de mostrar a narrativa às pessoas de forma visual na transposição do texto para o cinema.
Figura 2 – Filme Viagem à Lua (1902), de George Meliès
O clímax do filme de Meliès ocorre quando o foguete atinge o olho da Lua. Essa é a cena mais lembrada da obra. As gesticulações dos personagens são presentes durante a história para demonstrar o agito que eles estavam vivendo, no princípio, pela ideia de irem ao espaço, depois pela construção do foguete, mais tarde por serem aprisionados pelo povo que habitava a Lua e, por fim, na chegada à Terra. O que se observa em “Viagem à Lua” é que devido ao grande número de personagens é difícil reconhecer todos ao longo da narrativa e o motivo de cada um agir de forma diferente dos outros. Meliès recriou a paisagem lunar, as criaturas alienígenas, atribuindo a elas movimentos incomuns, como se arrastar no chão, para representar um lugar e um povo distinto do que o público estava acostumado.
Ao analisarmos esse filme é necessário ressaltar que ele e os demais apresentados neste artigo foram restaurados e que, evidentemente, ao menos, no que se refere à imagem, são diferentes do que público da época assistiu. Apesar de conter fotogramas coloridos atualmente, os filmes eram exibidos em preto e branco ou com apenas alguns trechos ou personagens em cores utilizados para destacá-los. A restauração foi necessária para que pudéssemos assistir a essas obras sem notarmos a maioria dos danos ocasionados pela deterioração do tempo. Além disso, em algumas delas foram acrescentados trilha sonora e até mesmo letreiros para explicar as cenas.
Através de alguns estudos de pesquisadores da área, sabe-se que na época era bastante comum, no cinema, os temas religiosos, entre eles “A Vida e a Paixão de Jesus Cristo” (La Vie et la passion de Jesus Christ), lançada em 1903. O filme foi dirigido por Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet, sendo uma das inúmeras obras baseadas nos quatro Evangélicos Bíblicos – Mateus, Marcos, Lucas e João. É importante ressaltar que esses filmes, em muitos casos foram vistos com um meio de evangelização, como destaca Flávia Cesarino Costa:
Em alguns lugares a Igreja (principalmente a católica) rapidamente compreendeu a utilidade evangelizadora de tais imagens e acabou apoiando os filmes. Mas a tendência dos setores protestantes foi mais moralista e resistente (…) (2005, p. 139)
Esse novo meio de levar a palavra divina aos povos foi amplamente utilizado. Existiram diversos filmes bíblicos na época. O diferencial da obra de Zecca e Nonguet em relação aos demais é a duração. A história é contada em cerca de quarenta e cinco minutos, o que surpreende tendo em vista que a maioria das obras tinha apenas um terço desse tempo. Isso nos faz lembrar que essa é uma das escolhas que os diretores devem realizar ao adaptar uma narrativa para o cinema. O tempo que um filme terá impacta em todos os aspectos desde estéticos até orçamentários. Segundo Linda Seger, por exemplo, em “A Arte da Adaptação: como transformar fatos e ficção em filme”, “o primeiro trabalho do adaptador é descobrir como fazer adequar o material original a parâmetros de tempo diferentes” (2007, p. 18). Sendo assim, no caso dos filmes do período do primeiro cinema, seria a análise de como transformar textos, em geral, longos, em narrativas curtas.
Figura 3 – Filme A Vida e a Paixão de Jesus Cristo (1903), de Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet
Em “A Vida e a Paixão de Jesus Cristo” observamos algumas das escolhas realizadas pelos diretores. Eles selecionaram trechos como a anunciação, o nascimento de Cristo, a visitação dos pastores e dos reis magos, além de alguns acontecimentos da vida de Jesus até a morte e Ascensão ao céu. Assim como os filmes da época, nota-se o uso do plano aberto, mostrando o corpo inteiro dos personagens que gesticulam constantemente nas cenas. De modo geral, as sequências apresentam muitas pessoas envolvidas com movimentos realizados de forma exagerada, provavelmente devido à influência do teatro que era bastante significativa nas obras do primeiro cinema. Há pouca movimentação de câmera e as passagens da vida de Cristo são mostradas rapidamente e de modo simples, sem requinte. Os diretores trabalharam de forma simbólica para apresentar os anjos ao elaborarem figurinos que sugerissem ao público a ideia da existência desses seres. Além disso, percebe-se nessa e em outras adaptações comentadas neste artigo que os envolvidos no trabalho procuraram criar cenários que remetessem ao conteúdo literário, talvez para que os leitores dessas obras pudessem se identificar com que haviam lido e imergissem na história. De qualquer modo, foram essas algumas das opções que os diretores encontraram para adaptar as passagens bíblicas para o cinema, procurando contemplar fatos significativos da vida de Cristo ao público.
No caso das primeiras adaptações, falar de fidelidade para o com o texto do qual está se adaptando é no mínimo deixar de observar uma das características presentes nas obras daquele período. Se na cinematografia com a que estamos acostumamos isso é impossível, devido, entre outras coisas, pelo fato de o cinema e a literatura serem meios narrativos diferentes e conterem recursos e linguagens distintas para expor as histórias, nas primeiras adaptações pode-se dizer que seria absurdo. Primeiro devido ao pouco tempo que os filmes possuíam, segundo porque havia inúmeras limitações técnicas, desde a elaboração de cenários, dos recursos sonoros e até mesmo dos diálogos que nem estavam presentes nos filmes daquele momento. É preciso lembrar também que nessa época, em alguns lugares, era frequente o uso de uma pessoa para explicar as cenas apresentadas ao público. Afinal, eles eram “entendidos pelo espectador através de referências externas, provenientes do contexto sociocultural da época (…) ou da explicação que era fornecida pelo comentador” (COSTA, 2005, p. 138). Era essa figura responsável, muitas vezes, por recriar ainda mais a história além do que ela foi modificada ou simplificada no cinema. Como, então, falar de fidelidade sobre essas adaptações que poderiam ser exibidas de modos tão distintos, inclusive somente as cenas que interessavam a quem iria apresentar?
Outra adaptação desse período foi Alice no país das Maravilhas (Alice in Wonderland), também de 1903, dirigido por Cecil Hepworth e Percy Stow. A obra foi baseada no livro “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” (Alice’s Adventures in Wonderland) de Lewis Carroll, publicado em 1865. A história da menina que entra em um buraco à procura do coelho branco e vai para um lugar distante e diferente da civilização foi apreciada pelo público através de cenas rápidas que buscavam no simbolismo dos cenários e figurinos o modo de simplificar e objetivar a narrativa. Durante o filme, nota-se a presença de alguns efeitos e trucagens que auxiliaram a tornar a obra mais dinâmica e contar a história, sem precisar abdicar dessas passagens que, aparentemente, poderiam ser difíceis de serem criadas no cinema naquela época.
Figura 4 – Filme Alice no país das Maravilhas (1903), de Cecil Hepworth e Percy Stow
Os diretores procuraram escolher cenas importantes da obra literária para construir a diegese, como a entrada de Alice na toca do coelho, o encolhimento da menina, a conversa com o gato de Cheshire, o chá com o chapeleiro e a lebre de março e, evidentemente, o encontro com a tão temida rainha. A versão cinematográfica procurou mostrar a aventura de Alice com uma atmosfera infantil para conceber os personagens valendo-se de fantasias que remetessem a um universo distante do que os espectadores estavam acostumados. Além disso, nota-se que, apesar de os diretores buscarem no livro a inspiração para a composição das cenas, eles tiveram a liberdade de criar, através dos gestos dos personagens, novos dimensionamentos para a obra fílmica. Isso é possível na adaptação de uma obra, pois
A teoria da adaptação dispõe de um rico universo de termos e tropos – tradução, realização, leitura, crítica, dialogização, canibalização, transfiguração, encarnação, transmogrificação, transcodificação, desempenho, significação, reescrita, detournement – que trazem à luz uma diferente dimensão de adaptação. O tropo da adaptação como uma “leitura” do romance-fonte, inevitavelmente parcial, pessoal, conjuntural, por exemplo, sugere que, da mesma forma que qualquer texto literário pode gerar uma infinidade de leituras, assim também como qualquer romance pode gerar uma série de adaptações. (STAM, 2008, p. 21)
Por isso, em “Alice no país das Maravilhas”, percebemos o ritmo acelerado da obra, não apenas por ser característico em filmes da época, mas para demonstrar o universo lúdico que existe no mundo ao qual a menina está. Observa-se também o cuidado na elaboração dos cenários para situar a história e construir o enredo. As cenas, em muitos casos, parecem confusas devido ao ritmo e a movimentação exagerada dos atores que impossibilita o espectador de entender tudo o que está acontecendo de uma só vez. Além disso, os planos abertos impedem que o público veja a expressão do rosto de Alice diante dos fatos que a menina encontra no local. Cortes bruscos são vistos na mesma sequência, contribuindo para criar um clima de confusão e nonsense.
O livro “Ben-Hur: Uma História do Cristo” (Ben-Hur: A Tale of Christie), escrito por Lew Wallace, publicado em 1880, foi mais uma das obras literárias adaptadas para o cinema. A narrativa conta a história de Judá, um personagem fictício que viveu nos tempos de Jesus Cristo. Por divergências com o pensamento romano da época, é traído por um amigo e condenado à escravidão nas galés, voltando anos mais tarde para se vingar. Ao longo da história, em algumas passagens, aparece Jesus Cristo, mas sem este ofuscar o protagonista. A adaptação para o cinema foi realizada pelo diretor Sidney Olcott com o título “Ben-Hur” (Ben-Hur), sendo bastante relevante na história da cinematografia por ser pertencente ao gênero épico e, principalmente, devido ao problema com os direitos autorais, como descreve Philip Kemp:
Em 1907, o diretor canadense Sidney Olcott (1873-1949) realizou a primeira versão cinematográfica de Ben-Hur para a Kalem Company, uma produtora nova-iorquina. Adaptado do romance de 1880 de Lew Wallace, o filme de 15 minutos é difícil de acompanhar (a não ser que o espectador conheça a história) e a famosa corrida de bigas – filmada com uma câmera parada – não é muito emocionante. Contudo, ele fez sucesso o bastante para a Kalem ser processada por violação de direitos autorais. O caso abriu um precedente para adaptações literárias futuras. (2011, p. 18)
A partir de “Ben-Hur”, os cineastas, ao menos dos Estados Unidos, passaram a solicitar a permissão dos autores antes de adaptarem as obras literárias para o meio audiovisual. Esse foi, sem dúvidas, um marco na história do cinema e, certamente, das adaptações cinematográficas. Os autores literários passaram a ser, então, creditados nas obras fílmicas, evitando assim que se repetisse o mesmo problema que a produtora Kalem havia tido com a questão dos direitos autorais.
Figura 5 – Filme Ben-Hur (1907), de Sidney Olcott
Em “Ben-Hur” foram utilizados diversos personagens para recriar imageticamente a atmosfera da época. A corrida de bigas, por exemplo, é um momento de concentração de várias pessoas, demonstrando a importância desse evento para aquele povo. A aglomeração dos personagens conseguiu remeter a ideia de uma narrativa épica pelo fato de eles estarem em torno de heróis e/ou acontecimentos relevantes para aquele período. Olcott valeu-se desse recurso para tornar a adaptação ainda mais atrativa, colocando pessoas simples, soldados, heróis e vilões juntos com o intuito de dramatizar as cenas. A escolha do diretor, certamente, contribuiu para o êxito da adaptação. Afinal, os cineastas precisam sempre ter em mente que “Adaptar uma história é como procurar agulhas em um palheiro. Significa ter que escolher o que é mais importante em determinado material, dentre um leque de opções que pode ser muito rico e complexo, além de dotado de certo grau de caos”. (SEGER, 2007, p. 26)
Ainda em se tratando das escolhas do diretor, observamos o cuidado em relação aos cenários para garantir verossimilhança à narrativa. O visual que o cinema proporciona ao público é um dos parâmetros que devem ser levados em consideração ao realizar uma adaptação. Como contar uma história em imagens? Como usufruir do som, dos efeitos especiais e de outros elementos dessa arte para levar ao espectador a trama que se deseja adaptar? Certamente, essas foram questões que muitos cineastas utilizaram ao longo da história e que ainda hoje fazem antes de realizarem as adaptações. Em “Ben-Hur”, nota-se que o diretor procurou construir o enredo tendo como alicerce os cenários, objetos de cenas e figurinos que remontassem àquele período em que se passa a história. Assim, a adaptação pôde levar ao público a atmosfera épica e o sentimento de grandiosidade do império romano e do evento que marca esse filme.
Cada filme não pode ser analisado apenas pelos critérios levantados neste artigo e muito menos uma adaptação. O que se trouxe aqui foram apenas alguns pensamentos para se iniciar uma discussão e problematização acerca das primeiras adaptações que ocorreram na história do meio audiovisual. Precisamente, outras foram realizadas no início do cinema, muitas até mesmo mais antigas. Porém, optou-se por apresentar algumas que tiveram grande relevância para a cinematografia, além de tentar desconstruir certas características que, em muitos casos, são ditas comuns a todos os filmes dessa época. Por outro lado, pode se observar, após analisá-las, que existem semelhanças em diversos aspectos de filmagem e construção narrativa nessas obras entre elas e as que foram produzidas exclusivamente para o cinema que não foram mencionadas. Desse modo, como salienta Alexandre Valim, “pensar o cinema no âmbito da história significa ir além das possibilidades de interpretação que temos como espectadores e adentrar em vastas searas, pouco ou mal exploradas, onde se entrecruzam o cinema, a cultura e a sociedade”. (2012, 299) Talvez um dia, possamos obter muitas das respostas que ainda não temos e poderemos entender ainda mais sobre os primeiros passos do cinema e, precisamente, da sociedade da época. Afinal, ele é uma arte que resulta de diversos fatores presentes na vida das pessoas e, evidentemente, influencia-os através das obras apresentadas ao público.
Referências Bibliográficas
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CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Tradução Dirce Waltrick do Amarante. São Paulo, Rafael Copetti Editor, 2015. 84 p.
COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2005. 256 p.
GUBERN, Román. História del Cine. Barcelona, Editorial Lumen, 2005.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da Adaptação. Tradução André Chechinel. Florianópolis, Editora da UFSC, 2011. 280 p.
KEMP, Philip. Tudo Sobre Cinema. Tradução de Fabiano Moraes. Rio de Janeiro, Sextante, 2011. 576 p.
SEGER, Linda. A Arte da Adaptação: Como transformar fatos e ficção em filme. Tradução Andrea Netto Mariz. São Paulo, Bossa Nova, 2007. 281 p.
STAM, Robert. A Literatura através do Cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Tradução Marie-Anne Kramer e Gláucia Renate Golçalvez. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008. 511 p.
VALIM, Alexandre B. História e cinema. In: CARDOSO, Ciro F; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro, Elsevier, 2012, pp. 283-300.
VERNE, Júlio. Da Terra à Lua. Revisão e atualização Iba Mendes. São Paulo, Poeteiro Editor Digital, 2014. 157 p.
WALLACE, Lew. Ben-Hur. São Paulo, Scipione, 2005. 98 p.
Referências Fílmicas
A SAÍDA dos operários da fábrica Lumière. Produção, Direção, Roteiro: Auguste Lumière, Louis Lumière. França, 1 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fNk_hMK_nQo>
ALICE no país das maravilhas. Produção: Cecil Hepworth, Herman Casler, Elias Koopman, Harry Marvin. Direção: Cecil Hepworth, Percy Stow. Roteiro: Cecil Hepworth. Intérpretes: May Clark, Geoffrey Faithfull, Norma Whitten, Cecil Hepworth e outros. Reino Unido, Hepworth, 1903, 8 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zeIXfdogJbA>
A VIDA e a paixão de Cristo. Produção: Pathé Frères. Direção e Roteiro: Ferdinand Zecca, Lucien Nonguet. Intérpretes: Madame Moreau; Monsieur Moreau; Robert Henderson-Bland; Percy Dyer; Gene Gauntier e outros. França, 1903, 44 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=w5VPWPgkT8A>
BEN-HUR. Produção: Lawrence Bender. Direção: Sidney Olcott. Roteiro: Gene Gauntier. Intérpretes: Herman Rottger, William S. Hart e outros. Estados Unidos, Kalem Company, 1907, 15 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=udnBq_lQkFc>
VIAGEM à Lua. Produção, Direção e Roteiro: George Meliès. Intérpretes: Bleuette Bernon, François Lallement, George Meliès, Henri Delannoy e outros. França, George Meliès, 1902, 15 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aZfq1uE1zjI>
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. É formado em Cinema pela mesma instituição. Tem experiência em roteirização de games e videoaulas para ensino à distância.