Um entardecer – Tradução de Ana Helena Souza

Florianópolis, 21 de novembro de 2011.

Um entardecer
Samuel Beckett

Tradução: Ana Helena Souza*

Escrito em francês em 24 de outubro de 1979, Um entardecer foi traduzido para o inglês pelo próprio Samuel Beckett na primeira semana de novembro e publicado no Journal of Beckett Studies 6 (Outono 1980). É considerado uma versão anterior do início de Mal visto mal dito – começado em francês também em outubro de 1979 e terminado em janeiro de 1981. Com esta prosa mais longa, tem em comum a personagem da velha de luto que vaga pelos campos, a menção a cordeiros, o entardecer, os comentários do narrador sobre o que é dito (“Isso parece se sustentar”) e, sobretudo, um tipo de narração que cria imagens em movimento, como se observadas por uma câmera. No final do texto, personagem e câmera se detêm. No “tableau vivant” que é produzido, a partir do corpo morto encontrado, só a luz ainda se move para a sombra. Com algo de cinematográfico e também de teatral, Um entardecer traz as marcas das narrativas finais de Beckett, que incorporam elementos dos diferentes gêneros com os quais o escritor trabalhou. Esta é sua primeira tradução para o português. O texto-fonte encontra-se na coletânea Company, etc., editada por Dirk Van Hulle (London: Faber and Faber, 2009).
(Ana Helena Souza)
UM   ENTARDECER

Ele foi encontrado estendido no chão. Ninguém sentira falta dele. Ninguém estava procurando por ele. Uma velha o encontrou. Dizendo assim vagamente. Aconteceu há tanto tempo. Ela perambulava à procura de flores do campo. Amarelas apenas. Com olhos só para elas tropeçou nele estendido ali. Deitado de rosto para baixo e braços estirados para fora. Usava um sobretudo apesar da época do ano. Escondida pelo corpo uma longa fileira de botões fechava-o todo até embaixo. Botões de todas as formas e tamanhos. Usado na vertical as abas roçavam o chão. Isso parece se sustentar. Perto da cabeça um chapéu caído de lado no chão. Ao mesmo tempo sobre a aba e o topo. Ele se estendia inconspícuo no sobretudo esverdeado. Para atrair um olhar perscrutando à distância havia apenas a cabeça branca. Ela poderia tê-lo visto em algum lugar antes? Em algum lugar em pé antes? Não tão depressa. Ela estava toda de preto. A barra de sua longa saia preta se arrastava na grama. Era o fim do dia. Se ela fosse agora mover-se para leste sua sombra iria na frente. Uma longa sombra preta. Era a época dos cordeiros. Mas não havia cordeiros. Ela não conseguia ver nenhum. Se um terceiro se aventurasse por ali os deles seriam os únicos corpos que veria. Primeiro o da velha em pé. Depois ao se aproximar o estendido no chão. Isso parece se sustentar. Os campos desertos. A velha toda de preto parada quieta. O corpo parado quieto no chão. Amarelo no final do braço preto. O cabelo branco na grama. O leste afundando-se na noite. Não tão depressa. O tempo. Céu encoberto o dia todo até o entardecer. No oés-noroeste perto da borda o sol já saiu afinal. Chuva? Alguns pingos se quiserem. Alguns pingos de manhã se quiserem. No presente para concluir. Aconteceu há tanto tempo. Trancada em casa o dia todo ela sai com o sol. Apressa-se para ganhar os campos. Surpresa de não ter visto ninguém no caminho perambula febrilmente à procura de flores do campo. Febrilmente percebendo a iminência da noite. Nota com surpresa a ausência de cordeiros em grande número aqui nesta época do ano. Está usando o preto que adotou quando enviuvou jovem. É para reflorescer o túmulo que perambula à procura das flores que ele adorava. Não  fosse pela necessidade de amarelo no final do braço preto não haveria nenhuma. Há portanto apenas tão poucas quanto possível. Esta é para ela a terceira surpresa desde que saiu. Pois crescem em abundância aqui nesta época do ano. Sua velha amiga a sombra a irrita. Tanto assim que se vira com o rosto para o sol. Qualquer flor ao largo do seu trajeto ela alcança de esguelha. Ela anseia que o pôr-do-sol termine para perambular livremente outra vez na claridade longa do ocaso. Para aumentar sua aflição o conhecido ruflar de sua longa saia preta na grama. Ela se move com os olhos semicerrados como se atraída para dentro do clarão. Pode dizer a si mesma que é estranheza demais para um único entardecer de março ou abril. Ninguém à vista. Nem um único cordeiro. Quase nenhuma flor. Sombra e ruflar irritantes. E para coroar tudo o choque do seu pé contra um corpo. Acaso. Ninguém sentira falta dele. Ninguém estava procurando por ele. Preto e verde das roupas se tocando agora. Perto da cabeça branca o amarelo das poucas flores colhidas. O velho rosto iluminado pelo sol. Tableau vivant se quiserem. A seu modo. Tudo em silêncio de agora em diante. Pelo tempo em que ela não puder se mover. O sol desaparece afinal e com ele toda a sombra. Tudo sombra aqui. Lento apagar-se da claridade do ocaso. Noite sem lua ou estrelas. Tudo isso parece se sustentar. Mas nada mais sobre isso.

* tradutora e ensaísta, especialista na obra de Samuel Beckett.