Samuel Beckett e seus duplos: espelhos, abismos e outras vertigens literárias, de Cláudia Maria de Vasconcellos – Ana Helena Souza

Samuel Beckett e seus duplos: espelhos, abismos e outras vertigens literárias – Cláudia Maria de Vasconcellos (Iluminuras, 2017)

Ana Helena Souza*

Faz muito tempo que Cláudia Maria de Vasconcellos lê, comenta e reflete sobre a obra de Samuel Beckett. Para citar apenas dois importantes marcos de seu trabalho com a obra do escritor, em 2012 lançou o resultado de sua pesquisa de doutorado, Teatro Inferno: Samuel Beckett (Terracota) e, em 2013, foi assistente de direção de Rubens Rusche na admirável montagem de Oh, os belos dias, tradução do francês de Dias Felizes. Esse percurso, certamente iniciado muito antes que seus resultados viessem a público, continua agora com Samuel Beckett e seus duplos: espelhos, abismos e outras vertigens literárias (Iluminuras, 2017).  É de se destacar, neste livro, além da competente pesquisa que o embasa, a fineza tanto de sua arquitetura como da elaboração textual.

A peça Improviso de Ohio (1981) é o texto-chave, a pontuar os quatro capítulos, dedicados a modos de duplicação, segundo esta se centre no Personagem, na Obra, no Autor ou na Plateia e Leitor. Ao fim de cada um deles, a leitura da peça é retomada e refinada, com base nas observações sobre as obras abordadas. Chama atenção o último dos modos de duplicação, que se refere tanto à plateia como ao leitor e que servirá à autora para criar o conceito de “efeito de imersão”. Sendo uma peça da fase final da obra beckettiana, Improviso de Ohio leva a um limite extremo a mescla de encenação e narração, revelando-se uma escolha certeira para mostrar as mudanças que Samuel Beckett imprimiu ao teatro e à prosa de ficção.

Mas o livro não se restringe à obra beckettiana. Vários autores são escolhidos para fazer-lhe companhia, propiciando a demonstração dos procedimentos estéticos ressaltados, dentro de cada tipo de duplicação. Através de várias leituras, Cláudia apresenta precursores e parceiros de Beckett. Sem vincular-se aos mestres autorizados pelo escritor e sua crítica, a autora convoca artistas como Dostoiévski e o gravurista holandês  Mauritz Cornelis Escher, bem como escritores com trabalhos contemporâneos aos de Beckett, como George Perec, W.G. Sebald e Thomas Bernhard, para fixar os conceitos que servirão a uma aproximação cada vez mais sofisticada de textos e peças de Beckett.

Poe, Dostoiévski e Saramago comparecem no primeiro capítulo com seus diferentes duplos. Desses textos, é extraído o conceito de seres autoscópicos, aqueles que se duplicam e surgem em seu próprio campo visual. A leitura de William Wilson de Edgar Allan Poe, para dar apenas esse exemplo, analisa em detalhes as características do duplo nesse conto, abordando sua presença na duplicação multifacetada da personagem, a partir do dado básico do seu nome. Ao já anotar no texto de Poe a presença da mise en abyme, conceito-chave do capítulo dois, e também mostrar a inserção de dados biográficos do autor na obra, recurso literário que será abordado no capítulo três, Cláudia começa a nos conduzir ao aprofundamento das questões literárias que lhe são caras, numa pequena mostra da própria duplicação en abyme.

Na segunda parte desse capítulo, quando, do conceito de duplicação autoscópica, surge o conceito de vozes acusmáticas  – termo utilizado para indicar vozes que se ouvem sem que sua origem seja necessariamente identificada, como vozes gravadas ou radiofônicas –, o leitor logo percebe a adequação do termo aos textos de Beckett estudados aqui. Trata-se de textos em que se dá a duplicação da personagem pelo tipo de cisão  ocasionada justamente pela presença dessas vozes acusmáticas, como na peça That time (1974) e no texto Companhia (1980). Fazendo a ponte entre os duplos visuais, autoscópicos, e os duplos por cisão, as vozes acusmáticas, a peça A última gravação de Krapp (1958), ao separar a imagem da personagem no palco da voz dela no gravador, configuraria uma “cisão de tipo ‘pathológica’, ou seja, uma cisão que permite o estudo do sentimento.” (p. 45) O que sempre surpreende e interessa nas leituras apresentadas é que elas nunca se detêm, como aqui, na novidade que anunciam. O comentário sobre o páthos no nível da fábula da personagem enseja ainda uma análise das duplicações formais na cena e imagéticas no texto.

No segundo capítulo, os conceitos de mise en abyme e de repetição guiarão primeiro as leituras de Os moedeiros falsos de André Gide e de A coleção particular de Perec. Antes, porém, para deixar claros os diferentes tipos de mise en abyme a serem comentados, examinam-se gravuras de Escher, o Hamlet de Shakespeare, As meninas de Velázquez e mesmo exemplos de artes gráficas utilizadas em propagandas. Desse modo, é oferecida ao leitor – sobretudo com a ajuda das ilustrações – uma base firme na qual se apoiar antes de chegar aos textos literários, facilitando a identificação precisa do tipo de duplicação em jogo. De Beckett, estão presentes novamente neste capítulo Krapp, That time, Companhia, e mais Godot, Molloy, Fim de Partida e Passos. E, por fim, em mais uma de suas camadas, Improviso de Ohio.

No terceiro capítulo, sobre a presença do autor na obra, há referências a Coetzee, Sebald e uma leitura detida de Mestres antigos de Thomas Bernhard.  Vários textos beckettianos são citados, mas a análise concentra-se em Improviso de Ohio. É importante sublinhar como a autora transita bem entre o romance de Bernhard e a peça de Beckett, a partir da constatação de que esta última se estrutura pela narrativa e da certeza de que a obra beckettiana não se deixa prender em “classificações estanques” (p.121). Um dos exemplos disso é a demonstração de como o conceito de narrador-narrado, tão usado nos estudos da prosa beckettiana, serve muito bem às suas peças. Nelas, como na prosa de ficção, os dados biográficos funcionam para “explicitar a mecânica imaginativa”, sem que se deixem aprisionar na composição apenas de uma história ou sujeito.

A primeira parte do último capítulo concentra-se no metateatro e suas características inovadoras em Seis Personagens à procura de um autor e Esta noite se representa de improviso de Pirandello, em O filho natural de Diderot, cuja força não reside na peça em si, mas no conjunto chamado de peça-conversas, que além da obra teatral inclui três ensaios em forma de diálogo, e no Beckett de Godot, Dias felizes, Comédia e Eu não. Em foco está o modo de duplicação da plateia ou leitor. O prazer voyeurista da plateia sedenta pelo espetáculo, que sobressai nas duas obras de Pirandello com algo de sua crueldade, encontrara suas bases no gênero proposto por Diderot e chega em Beckett a ser levado a um ponto quase insuportável. Por meio das quatro peças escolhidas, é possível acompanhar a radicalização da derrubada da convenção da quarta parede e a inclusão da plateia nessas peças. Eu não, o ápice desse processo, traz para a cena a Boca – fragmento corporal de personagem – que não consegue articular com clareza e, no entanto, vê-se compelida a proferir ininterruptamente fragmentos de uma história que também não consegue assumir como sua. A plateia atua nessa coação à performance, e o incômodo gerado ao ser confrontada com sua posição “expulsa a plateia da zona de proteção, convencionada pelo teatro ilusionista.” (p. 173)

Na segunda parte, Cláudia vai tratar da restauração da quarta parede nas obras tardias Rockaby (1980) e Improviso de Ohio (1981). Propõe, então, o conceito de “efeito de imersão”, como um outro tipo de deslocamento da plateia, diferente do conhecido “efeito de estranhamento”. A qualidade rítmico-poética dos textos, o cenário reduzido e as repetições compõem alguns dos traços que provocam essa imersão. São duas leituras preciosas para concluir um livro que celebra o vertiginoso prazer da literatura, seja narrativa seja dramática. Um estudo de Samuel Beckett em conversação com autores diversos, em que a qualidade estética de todas as obras analisadas ganha destaque, especialmente quando associadas as de um autor, cuja capacidade de renovar sua arte o faz capaz de despertar em nós “abismos de consciência”, da crueldade à compaixão.

 

* Autora de A tradução como um outro original: Como é de Samuel Beckett e tradutora de Molloy, Malone morre e O inominável, entre outros livros desse autor.