Karl Valentin na revista de hoje – Isabela Bazan

Karl Valentin na revista de hoje

Isabela Bazan*

 

Karl Valentin

Karl Valentin

 

Der Buchbinder Wanninger (O encadernador Wanninger), insigne esquete de Karl Valentin (1882-1948), estendeu-se dos palcos à cultura popular alemã, em especial na região sul do país, onde nasceu e viveu Valentin. A recorrente expressão “sich wie Buchbinder Wanninger vorkommen”(“sentir-se como o encadernador Wanninger”) remete ao contexto de uma ligação telefônica, durante a qual o solicitante é telefonicamente transferido de departamento em departamento, não alcançando, todavia, seu objetivo final. Situação essa, por vezes, experienciada por nós brasileiros. No caso do encadernador Wanninger, o propósito de sua ligação à firma Meisel & Co. é o simples conhecimento se ser-lhe-ia consentido enviar os livros acabados juntamente com a conta a ser paga. Depois de inúmeras transferências telefônicas e (im)paciência, Wanninger enfim comunica-se com o setor responsável pelo serviço, porém é informado que o escritório está fechado e que deve ligar na manhã do dia seguinte. O humor fica, desse modo, por conta da frustração e exasperação do encadernador, que acaba por tartamudear e trocar as palavras, além do caráter absurdo de uma situação cotidiana. Wanninger, afinal, espera por um simples “sim” ou “não”.

Outra situação diária apresentada por Valentin, autor de mais de 400 esquetes com a colaboração de sua parceira de palco Liesl Karlstadt (1892-1960), é a breve cena Die gestrige Zeitung (O jornal de ontem), a qual apresento, a seguir, ao leitor em tradução inédita para o português.

Embora pouco divulgado em língua portuguesa, Karl Valentin foi uma figura de grande importância na cena cômica alemã do século XX, desempenhando funções de ator, músico, escritor, diretor, produtor e cenógrafo. Cabe destacar a então expansão da arte cinematográfica, à qual Valentin dedicou-se vigorosamente, sendo, inclusive, dirigido pelo jovem Bertolt Brecht (1898-1956) na película Mysterien eines Frisiersalons (Mistérios de um salão de cabeleireiro), de 1923. A relação entre essas duas personalidades, contudo, não se limitou a esse projeto. Battistella (2007) ressalta Valentin como fomentador das ideias que fundamentariam o teatro épico de Brecht à medida que, segundo Bergson (1983), o riso impele a emoção. Brecht, inclusive, relata claramente, em terceira pessoa, a influência de Valentin sobre seu trabalho: “Mas a maior parte daquilo que aprendeu foi com o clown Valentin, que se apresentava em cervejarias […]“ (CALANDRA, 2003, p. 189, tradução minha).

Brecht não foi o único a admirar Karl Valentin. Samuel Beckett (1906-1989) igualmente ficou impressionado quando o viu em uma apresentação e teve um breve encontro com ele no ano de 1937 em Munique. “Really crazy” foram as palavras do irlandês sobre o cômico alemão, que o recebeu com uma lanterna em uma mão e em outra seu peculiar Winterzahnstocher (palito de dente de inverno). A reação de Beckett não denota somente a excentricidade de Valentin, mas também os diálogos absurdos representados pelo ator e sua colega, que se revelam como labirintos, nos quais “ele [Valentin] volta aos mesmos obstáculos, avançando sem avançar, recuando ao mesmo ponto de partida, subvertendo o processo natural de evolução do cotidiano.” (FERRAZ; BOTKAY, [s.d.], p.19)

A comicidade em Karl Valentin resultava de sua fisionomia. Bastante magro e alto, Valentin, por ideia de seu amigo e desenhista Ludwig Greiner, passou a explorar sua aparência nos palcos de modo que essa característica provocasse o humor. O uso de roupas justas, por exemplo, tinha o propósito de acentuar a magreza e os modos meio desengonçados do ator. Além disso, o artista adotou um nariz longo para compor sua imagem, tornando-se, dessa maneira, uma figura deveras cômica. Muitos de seus objetos artísticos e pessoais encontram-se expostos no museu Valentin Karlstadt, espaço aberto no ano de 1959 em Munique e dedicado ao trabalho da dupla Karl e Liesl.

Finalmente, introduzo na janela “Insulto ao público” a tradução do esquete “O jornal de ontem”, o qual foi apresentado por Karl e sua parceira na rádio München, bem como inúmeros outros textos de suas autorias entre os anos de 1928 e 1947. Semelhante ao caso do encadernador Wanninger, um simples contexto cotidiano desencadeia uma série de confusão e contradição, que provoca o riso do leitor ou ouvinte. Vale ressaltar que muitos desses esquetes encontram-se disponíveis na internet nas vozes dos próprios autores, de forma que ainda hoje podemos nos deleitar com arte do bávaro Karl Valentin.

 

Referência bibliográfica

BATTISTELLA, Roseli Maria. O jovem Brecht e Karl Valentin: A cena cômica na república de Weimar. 2017. 127 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Teatro, Udesc, Florianópolis, 2007. Disponível em: <http://www.tede.udesc.br/tde_arquivos/2/TDE-2007-09-10T080406Z-392/Publico/Roseli.pdf>. Acesso em: 06 out. 2016.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. Disponível em: <http://www.filoczar.com.br/filosoficos/Bergson/BERGSON,%20Henri.%20O%20Riso.pdf> Acesso em: 06 de out. 2016.

CALANDRA, Denis. Karl Valentin and Bertolt Brecht. In: Popular Theatre. Nova Iorque: Routledge Taylor & Francis Group, 2003. p. 189. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=avG5rDz3ENUC&pg=PA189&dq=karl+valentin+bertolt+brecht+calandra+denis&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwij1KS06MjPAhWBHpAKHfDXACIQ6AEINDAA#v=onepage&q&f=false> Acesso em: 07 out. 2016.

FERRAZ, Buza; BOTKAY, Caique. Cabaré Valentin de Karl Valentin: seleção de sketches cômicos. [S.l;s.n] Disponível em: <http://www.ingresso.ufu.br/sites/default/files/certificacao/Teatro_Cabare_Valentin_Karl_Valentin.pdf> Acesso em: 06 out. 2016.

GÖRL, Wolfgang. Entdecker des Skelettgigerls. Süddeustche Zeitung, Munique, p. R5, 23 abril 2014. Disponível em: <http://www.valentin-musaeum.de/SZ-23-4-14_Nachlass-Greiner.pdf> Acesso em: 06 out. 2016.

KARL VALENTIN. Die gestrige Zeitung. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5nw1XqUMuVM> Acesso em: 06 out. 2016.

*Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura (PPGLit) da UFSC.