100 anos de A sagração da primavera, de Igor Stravínski – Dirce Waltrick do Amarante

100 anos de A sagração da primavera,de Igor Stravínski

Dirce Waltrick do Amarante* 

A sagração da primavera, versão de Pina Bausch

No dia 29 de maio de 1913, no Théatre des Champs-Élysées, em Paris, o Ballets Russes, de Serguei Diáguiliev, fez uma apresentação de gala para uma plateia requintada e desconfiada dos métodos do seu diretor. No programa daquele dia constava a estreia do balé A sagração da primavera, do compositor russo Igor Stravínski, com coreografia de Vaslav Nijínski. O próprio Diáguiliev sabia que, depois da estreia de Pierrot lunaire, de Arnold Schönberg, sete meses antes num cabaré em Berlim, a Sagração seria “um novo frisson que sem dúvida inspirará debates acalorados”.

A apresentação teve um início tranquilo com As sílfides, de Chopin. Depois de uma pausa, o público assistiu em silêncio à seção de abertura de Sagração. Aos poucos, o silêncio foi sendo substituído por assovios e por gritos, à medida que a densidade e a dissonância da música cresciam, como lembra Alex Ross.

A sagração da primavera é composta de duas partes. A primeira, intitulada “Dança da terra”, termina de modo entusiasmado e festivo, já a segunda, a “Dança do sacrifício”, é mais árida, oscilando, segundo Ross, entre “a languidez e a violência”.

A segunda parte é a mais radical da Sagração e começa emitindo um rangido desarmônico e o acorde se repete por cerca de duzentas vezes. Até mesmo Diéguiliev teria estranhado essas repetições: “Vai continuar assim por muito tempo?”, perguntou a Stravínski, que lhe respondeu: “Até o fim, meu caro.”

A plateia reagiu negativamente não só à partitura da Sagração como também à coreaografia de Nijinski, “uma criação excessivamente rebuscada e estéril”, como afirmou o próprio Stravínski, surpreso com o que viu.

Nijínski havia trocado o gestual clássico por uma quase anarquia: “os dançarinos tremiam, sacudiam-se, agitavam-se, sapateavam; davam saltos rudes e violentos e giravam pelo palco numa selvagem dança de roda eslava”, descreveu o historiador Lynn Garafola.

Para Otto Maria Carpeaux, a estreia da Sagração foi um escândalo quase sem par na história da música. Foi o batismo de fogo da nova música, mas logo se transformou num imenso sucesso, pois os ouvintes parisienses perceberam que a linguagem da Sagração não estava tão distante deles: ela era composta de canções folclóricas de melodia singela e acordes comuns, mas em camadas conflitantes. A confusão inicial, ao cabo de alguns dias, se transformou em prazer e as vaias, em aplausos.

De fato, como percebeu Bela Bartók, muitas das características da Sagração remetem à música do folclore russo e da Europa Oriental, com assimetrias rítmicas e métricas fortes. Stravínski dizia que A sagração da primavera era uma “espécie de apoteose da musica russa”, uma grande fusão entre sons nacionais e modernos.

Tendo recolhido as melodias folclóricas russas, Stravísnki “se dedicou a pulverizá-las em fragmentos temáticos, juntá-las em camadas e rearranjá-las em colagens e montagens cubistas”. Porém, como lembra Taruskin, esses mesmos ritmos irregulares eram também uma característica tradicional da música folclórica russa.

Naquela época, um grupo de compositores europeus, entre eles Stravínski, se dedicava às canções folclóricas e a outros “resquícios” musicais da vida pré-urbana, na tentativa de se desvencilharem do refinamento das cidades e de se livrarem também das influências dos compositores germânicos, como afirma Otto Maria Carpeaux.

 A idéia do enredo da Sagração foi do próprio Stravínski, que teria sonhado com “um solene ritual pagão: os velhos sábios sentados em círculo observavam a dança de uma jovem que será sacrificada para tornar propício o deus da primavera.”

A obra de Stravínski, ressalta Carpeaux, parece ligada ao estado de espírito de 1913, às vésperas das grandes catástrofes e quando as sociedades supostamente civilizadas escolhiam seus bodes expiatórios: “a população das cidades russas promovia progroms contra os judeus, americanos brancos linchavam jovens negros […]”. Segundo Ross, “contra esse pano de fundo, os ruídos urbanos na partitura de Stravínski – sons como o bombear de pistões, apitos silvando, as pisadas da multidão – sugerem uma cidade sofisticada passando por uma regressão atávica.” Nada mais atual ainda hoje.

A temporada de 2013 da Osesp (São Paulo), que começa no dia 28 de fevereiro, dedicará o ano para homenagear a obra-prima de Stravínski. 

* Professora do curso de artes cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina.