HIDRIDISMO, SEMIOSFERA E ENTRE-LUGAR – DUAS MARAFONAS DE WILSON BUENO COMO “PERSONA SEMIÓTICA” – Valteir Vaz

HIDRIDISMO, SEMIOSFERA E ENTRE-LUGAR – DUAS MARAFONAS DE WILSON BUENO COMO “PERSONA SEMIÓTICA”

 

Valteir Vaz[1]

Wilson Bueno

Sou, ou penso que sou, um escritor de fronteiras – literal e figurativamente… Estou sempre na fronteira. Sou um escritor de fronteiras e também um ser humano na fronteira entre o pasmo de viver e o sagrado horror à morte, essa pantera… (WB, 2009)[2]

 

Neste ensaio, examino as novelas Mar Paraguayo e “Mascate”, ambas de Wilson Bueno[3], utilizando como instrumento de análise os conceitos de “híbrido romanesco”, de Mikhail Bakhtin, de “semiosfera” e de “fronteira”, de Iúri Lotman, e de “entre-lugar” (in-between), de Homi K. Bhabha.

 

1. Introdução

Atentemos às declarações de WB no que tange ao processo de composição de sua novela Mar Paraguayo:

 

[Com Mar Paraguayo] Desejei dar uma resposta estética ao isolamento histórico em que se encontravam submergidas as línguas do continente hispano-americano. Ao mesmo tempo, tudo me indicava a direção de um personagem que fosse um pouco nossa alma comum, nossa alma cachorra e perturbada pelo drama.”  (WB, 2009)[4]

Vejamos então como esse desejo do autor se radica em duas de suas novelas: a primeira e sua mais conhecida obra é Mar Paraguayo, um híbrido romanesco que mistura artisticamente português, espanhol com algumas palavras do guarani; a segunda é “Mascate”, texto inédito, que, de acordo com declarações do do próprio escritor, compor-se-ia com outras narrativas a coletânea Novêlas Marafas[5]. “Mascate” também é um híbrido romanesco, com a diferença que desta vez a mistura é composta de palavras e expressões portuguesas, espanholas, guaranis e algumas do idioma árabe.

Ressalta-se, em um primeiro momento, o meticuloso trabalho de composição dessas narrativas, algo que ultrapassa o linguajar típico que se tem verificado nas bordas do Brasil com outras territorialidades da América Latina, linguajar este que, como se sabe, se convencionou chamar de Portunhol. A linguagem literária de WB é uma invenção, um trabalhoso arranjo linguístico com vista a fazer arte. Sua inventividade, não raro, nos lembra a de um Guimarães Rosa transposto para as os confins da América Latina, locus privilegiado das trocas simbólicas entre línguas, culturas e costumes.

Em uma passagem da Poética, Aristóteles associou a linguagem poética a um tipo de escrita que se vale de palavras “estranhas”, composta de termos que não se verifica na comunicação cotidiana; diz o filósofo que as palavras de uso corrente – popular – têm a qualidade de tornar a mensagem clara, mas pecam pela simplicidade:

A principal qualidade da elocução é ser clara, mas não banal. De facto, a que é composta de palavras correntes é muito clara, mas vulgar. Um exemplo é a poesia de Cleofonte e a de Esténelo. Em contrapartida, é excelente e evita a vulgaridade aquela que usa palavras estranhas. Por estranha entendo a palavra rara, a metáfora, a palavra alongada e tudo que for contra o que é corrente.[6]

Esta posição não deixa de ser polémica, não sendo, porém, difícil de refutá-la. Particularmente se escolhermos falar do que se produz em termos de literatura a partir da modernidade, em que a linguagem tem se tornado cada vez mais simplificada, tanto a de uso cotidiano como a poética. Poderíamos testar até que ponto resistiria a declaração de Aristóteles se contraposta à poética de um Manuel Bandeira ou mesmo à de um Manuel de Barros, por exemplo. Guardadas as devidas particularidades, trata-se de um tipo de literatura cuja literaturidade se aninha justamente numa constante busca pelas construções simples, pelo trivial, por aquilo que não é notado, automatizado que está pelo uso cotidiano. Neste contexto, a linguagem que se utiliza de “palavras estranhas” mostrar-se-ia inapropriada, inconcebível. Isso se dá, possivelmente, pelo fato de tais poetas acreditam que para captar a essência das coisas simples o ideal seria se valer de uma linguagem também simples. Para esses poetas o máximo da literaturidade às vezes consiste em não se valer de léxico exótico, estrangeiro, chocante; às vezes o poético se manifesta ao res do chão.

Acontece que a aparente simplicidade muitas vezes engana; trata-se muitas vezes de um invólucro que oculta um rigoroso projeto estético, que nada tem de simplicidade, bem pelo contrário, o caso da poética de Manuel de Barros é ilustrativo, sua poesia é erudição e sofisticação, um passar de olhos pelas páginas de Gramática Expositiva do chão dá bem a medida do que estou afirmando. Porém, o uso de um léxico popular na poesia não pressupõe má poesia.

Mas ainda sobre a declaração de Aristóteles, é interessante observar o que o jovem formalista russo Victor Chklóvski tem a ela a acrescentar. Chklóvski escreveu em 1917 um importante ensaio que tem sido tomado como um manifesto do Formalismo Russo, trata-se de “A arte como procedimento”. Neste texto ele recupera a afirmação de Aristóteles e escreve como que prolongando as ideias do pensador grego:

De acordo com Aristóteles, a “linguagem poética” deve conter algo de estrangeiro, algo de surpreendente; muitas vezes, esta linguagem é literalmente estrangeira: a língua suméria poderia ser considerada poética para o povo assírio, idem o Latim para homem da Europa Medieval, o árabe para aos persas, assim como o búlgaro antigo foi considerado a base da literatura Russa.[7]

 

À primeira vista, pode-se objetivar que Chklóvski interpreta Aristóteles de maneira muito literal: a palavra estranha do pensador grego se converte imediatamente em palavra estrangeira para o formalista. Chklóvski associa a linguagem poética àquela que se utiliza de algo muito distante da linguagem cotidiana, o máximo da poeticidade estaria em sofisticar de tal forma a linguagem que o uso de termos estrangeiros não seria um problema, mais sim, sinônimo de beleza estética. Neste tipo de linguagem, como pode-se deduzir, que o importante talvez não fosse propriamente o sentido das palavras, mas a força do insólito provocada pelo termo estrangeiro, algo capaz de desautomatizar a linguagem vulgar, tornando-a mais sofisticada.

A esta definição de linguagem poética de Chklóvski, não fica difícil estabelecermos uma analogia com a poética de fronteira de WB. Pois, na medida em que integra termos de idiomas distintos, o escritor vai tornando seu texto cada vez mais denso, sua narrativa retém a percepção do leitor sobre si mesma, a comunicação estética aqui se dá, antes de tudo, na própria materialidade dos signos, advindo de idiomas distintos. O híbrido que se produz deste encontro tem qualquer coisa de estranhamento, de desautomatizador perceptivo pelos usos poéticos de palavras de léxicos distintos. A resposta estética pretendida pelo autor ao isolamento histórico em que se encontravam imersas as línguas do continente hispano-americano parece residir justamente neste híbrido fecundo criada por ele.

 

2. Vivendo nas fronteiras

No momento em que conta sua melancólica história, ou como ela mesma prefere às vezes dizer, seu raconto[8], a Marafona de Mar Paraguayo reside em Guaratuba, cidade praieira do Paraná. Aliás, a alcunha que ela recebeu – “Marafona do Balneário de Guaratuba” – deve-se a essa sua derradeira morada. Por outro lado, sendo ela mesma a mistura resultante de tantas coisas (línguas, culturas e etnias), um nome próprio seria o mesmo que fixar-lhe uma identidade única, algo totalmente contrário à sua natureza híbrida.

Afora os expedientes da lamúria, reflexos imediatos de uma pobre alma acossada a um só tempo pelos fantasmas de Eros e Tânatos – pois, na mesma medida que deseja se relacionar com um jovem garoto de bermuda florida que lhe tragou o olhar (o muchacho), também aguarda ansiosamente pela morte do “Viejo”, um amante que a manteve financeiramente por anos e que está à beira da morte quando a narrativa se passa – a marafona de Guaratuba descreve, ora com repulsa, ora com zelo, o lugar em que ela vive. Fala particularmente do mar, das famílias que frequentam as praias repletas de guarda-sóis multicoloridos, da natureza que circunda o local, das ruas, das velhas senhoras curiosas a espreitar a vida alheia pelas frestas das janelas, das ladeiras e da casa em que habita.

WB situa esta sua narrativa em uma fronteira a um só tempo geográfica, linguística e cultural, daí designá-la como um relato de fronteira. Dada a constante interação de povos de línguas distintas no local, Guaratuba reflete a imagem de um espaço de convivência das culturas brasileira, paraguaia e guarani. O idioma guarani não apenas é falado pela maioria dos habitantes do Paraguai, como também constitui, com o espanhol, as línguas oficiais deste país. A propósito da localização geográfica de sua novela, escreve WB:

Situei a novela em Guaratuba, no litoral do Paraná, não só porque ali se encontrava exilado o recém deposto ditador paraguaio, Alfredo Stroessner, como também porque a cidade é efetivamente o “mar” dos paraguaios, balneário preferido pela classe média do país vizinho.[9]

Quando mais jovem – não se sabe ao certo quando, pois ela se nega veementemente a declarar a sua idade[10] –, quando ainda não havia sido confinada a um suposto matrimônio com o viejo, a Marafona, na condição ainda de prostituta, vivia em estado de diáspora, em itinerância por várias geografias: em um primeiro momento, conta ela ter nascido numa fazenda guarani no interior do Paraguai e, desde então, tem habitando diferentes cidades brasileiras e paraguaias, entre elas Aquidauana, Dourados, Puerto Soledad e, por último, Guaratuba. Além disso, também conta que morou com outras mulheres, na mesma condição que a sua, em uma casa de prostituição localizada em uma fronteira: “Que tristes, que melancolicos los demorados entardeceres encendiados y todavia mudos, nuestra casa de mujeres, currutela en la frontera, nuestros quartos sufocados, lençol y sexo punitivo calor”[11]. Vê-se que a imagem da fronteira reverbera por toda parte.

Há nostalgia em tudo que conta, particularmente em eventos que se sucederam durante sua juventude, eventos estes, não raro, de temática sexual; tem obsessão pela figura de Sonia Braga, particularmente pelo vigor que vê nas ancas desta. À maneira de um dispositivo desencadeador de nostalgias, Sonia Braga, toda vez que aparece na TV, aciona na marafona qualquer coisa de sexualidade perdida, uma pulsão remota dos tempos de meretriz que a põe em estado de confusão. Seu discurso híbrido e difuso é reflexo desta confusão. Não seria exagero afirmar que reside nesta espécie de res amissa (encarnada numa latente busca por uma sexualidade há muito perdida) o núcleo propulsor que motiva o relato da marafona. A narrativa então, correndo os riscos de um reducionismo apressado, é resultado desta busca.

Outra marafona também a habitar terras fronteiriças é a Marafona de Eldorado del Paraná, narradora-protagonista de “Mascate”. Esta, também sem nome, por sua vez, no momento em que conta sua desilusão amorosa, ainda está vivendo na condição de prostituta, e também mora, com outras mulheres, em um bordel na cidade de Eldorado del Paraná (em sua própria expressão: no “El putero de Eldorado del Paraná). A localização da cidade, contrária à da novela Mar Paraguayo, é fictícia: Eldorado del Paraná é, para usarmos uma expressão de Benedict Anderson, “uma geografia imaginada”[12]. Mas, a medir pelos nomes das cidades vizinhas – estas aferíveis em mapas – constata-se que se trata, mais uma vez, da divisa entre Brasil e Paraguai, particularmente a região que limita o sul do estado do Mato Grosso do Sul com a parte norte do Paraguai.

A imagem da fronteira é recobrada momentaneamente em “Mascate”, como nestes trechos selecionados: “Drume la frontêra y los árboles de la frontêra.”[13]; “De acá veo Androkê, el índio viejo extraviado en nestas frontêras, […]”[14]; “Lo que sucediô con este obsedante muçulmano estávamos todos para saber, enorme la curiosidad, quando el decidiô sumir-se en estas frontêras, […]”[15].

Em uma perspectiva macro, a recorrência a determinadas ambiências geográficas atesta certa predileção do escritor por zonas de interseções linguísticas, culturais, étnicas, a tudo aquilo que de alguma forma remete à figuração do híbrido.

Tudo se passa como se o escritor estivesse dando direito de voz a personagens e visibilidade a territórios com pouca representatividade: prostitutas, índios, mascates, velhos, fronteiras, periferias, etc., todas essas personagens falam por elas mesmas sem intermédio de ninguém. Nesse ponto, vale lembrar a tese central do importante ensaio de Gaytri Spivak, “Pode o subalterno falar?”, texto em que a teórica denúncia uma particularidade do discurso das ciências humanas de negligenciar o acesso direto ao discurso das chamadas minorias, por isso reivindica que tais “minorias subalternas” cobre seu direito de voz, que sejam capazes de falar por elas mesmas e não emprestem suas vozes a terceiros, prática que frequentemente acaba eclipsando causas particulares. WB passa o bastão a essas personagens, quem fala aqui são duas prostitutas que, longe se serem tolhidas por qualquer moralismo, expõem suas vidas precárias, suas angústias, suas misérias e seus desejos.

A questão da fronteira aqui é primordial para entendermos uma das facetas do hibridismo presente em Mar Paraguayo e em “Mascate”. Viver na fronteira significa pertencer a um só tempo a duas ou mais nacionalidades, não ter uma identidade fixa, falar mais de um idioma, pertencer a mais de uma cultura e religião e, num grau mais extremo – como é o caso entre a cultura guarani e a brasileira –, ter duas visões de mundo diferentes impostas pelos dois idiomas.

As fronteiras a um só tempo unem e separaram; nas fronteiras vive-se sempre em um “estado de exceção”[16]. São locais – físicos ou imaginados – em que os processos de hibridização mais facilmente encontram recursos para se manifestarem; é, pois, nos locais de trânsito de elementos de procedências diversas que as formas híbridas costumam apresentar melhores resultados. Atesta isso Mikhail Bakhtin que,  ante uma solicitação do jornal Novy Mir por uma posição quanto ao estado da pesquisa em Literatura na Rússia de então, entre outras tantas informações, pontuou a produtividade cultural que pode se encontrar nas fronteiras:

No nosso entusiasmo por especificação, ignoramos questões de interconexão e de interdependência entre várias áreas da cultura; temos esquecido com frequência que as fronteiras dessas áreas não são absolutas, que em várias épocas elas têm sido delineadas de várias maneiras; também não temos levado em conta que a vida mais intensa e produtiva da cultura localiza-se nas fronteiras (bordas) das suas áreas individuais e não em locais onde essas já se tornaram enclausuradas em suas próprias especificidades.[17]

A ideia de que as fronteiras são locais privilegiados para um tipo de vida mais intensa e produtiva – certamente uma constatação que ainda se depara com resistência – parece encontrar nas novelas de WB uma ilustração convincente: o drama vivido por suas personagens, algo beirando, não raro, o patético, dá uma boa medida dessa “intensidade” a que se refere Bakhtin, a forma de expressão de seus dramas acaba por tornar a linguagem intensamente carregada de sentido. Por outro lado, há o mais importante: é justamente nas fronteiras que o hibridismo mais vivamente se prolifera, vive aí a sua incontestável liberdade.

Nas duas novelas, a noção de fronteira é justamente o entre-lugar que permite a passagem, o contato e a interação entre as diferenças linguísticas, culturais, religiosas. Estamos diante, portanto, de processos dinâmicos que se dão na construção e negociação de identidades, a partir de trocas simbólicas promovidas pelo hibridismo.

Em “Mascate”, por exemplo, as formas híbridas promovidas pela condição fronteiriça ou “marginal” não estão restritas ao híbrido linguístico intencional que ocorre entre as línguas portuguesa, espanhola, guarani e árabe, outras manifestações de hibridismos também se radicam em elementos do social e da cultura. Vejamos como isso se dá.

3. Formas híbridas e de hibridização em “Mascate”

Quando a Marafona de Eldorado del Paraná se encontra completamente apaixonada pelo jovem mascate muçulmano – personagem de vários nomes[18] –, é também o momento em que o viajante estrangeiro – o fato de ser estrangeiro possivelmente esteja entre os motivos da sedução pela marafona – anuncia sua partida. Em outras palavras, trata-se de uma história de amor que anuncia seu derruimento no seu auge, no momento em que as duas almas afins parecem ter encontrado o estado de equilíbrio entre as profundas diferenças cultural, religiosa, linguística e étnica que os separam.

Para a desgraça da marafona, ele parte sem dar garantias de que algum dia retornará a essas fronteiras longínquas. O desconserto gerado é tamanho que, após a partida de el-Rachid, a Marafona não conhecerá mais qualquer tipo de paz ou felicidade, tal como, em um momento de desconsolo, ela diz: “El sim, Don Felício, tovarorî, esto fue feliz inteiramente, por todo que irá contado en nesta charla mateada de azúcar y vino. Torî, Tecororî.”[19]. A narrativa privilegia exatamente o sentimento de perda e de solidão em que se encontra a Marafona pós-partida, o que torna a linguagem da novela um tanto lacrimosa, nostálgica e patética.

Contudo a Marafona, a princípio, não aceita que as coisas ocorram desta forma. Por isso, antes de perder completamente o objeto de sua paixão, não medirá esforços no sentido de tentar mantê-lo junto de si, mesmo que isso lhe custe abrir mão de sua já híbrida identidade.

Na cega intenção de agradar o parceiro – pois quem sabe assim ele resolvesse permanecer ao seu lado em Eldorado del Paraná –, a Marafona decide, em um despojado ato de assimilação, copiar elementos culturais do amante, e acaba misturando particularidades que a princípio se aparentavam antitéticas. Ela, portanto, conta:

Brincante, yo ponía en la cabeça una toalha ô mismo un pañuelo de platos e me hacía una rotunda turca de pechos caídos y dançando la dança que  yo já vira dançar por los muezins de la frontêra, acabava por lo tener em mis braços, a esto Abul Abdula, sobretodo se ya passava de las seis de la tarde y era Viernes y ya podríamos hacer, de risa y galhofa, todo pecado, toda la nudez y todo el sexo, una cosa así animal mas que, pelo adiantado da hora nocturna, podríamos hacerlo con la entera aprovación de los dioses.[20]

A marafona deduz que o mascate estrangeiro partirá porque tem saudade de sua pátria; na visão dela, ele parece viver exilado em Eldorado del Paraná. A condição de mascate, necessário dizer, é a do indivíduo desenraizado, do indivíduo que não mantém vínculos com nenhum lugar e com nenhuma tradição local por onde transita. Apegar-se demais a particularidades locais representa um contrassenso à sua condição de andarilho. Se pensado por este prisma, o desfecho já estava implícito no começo.

Ficamos sabendo então que o mascate, de fato, intencionava retornar à sua pátria – talvez Síria, Turquia ou Arábia –, falava com frequência de sua família, das supostas esposas que lá deixara. Diante da situação, com o fito de agradá-lo e, consequentemente, atenuar sua tristeza, a marafona põe de lado seus trajes tradicionais e se transveste de muçulmana. Ela sabe que um dos costumes das mulheres da cultura de onde vem o mascate viajante é se cobrir completamente, e assim ela o faz. O fato é bastante particular no total da narrativa, porém ilustra processos nos quais a hibridização se reverbera. Neste exemplo, ele se presentifica exatamente no momento em que a Marafona importa um elemento cultural de outro povo para, em pé de igualdade, torná-lo um elemento de sua cultura, promovendo um fenômeno híbrido bastante peculiar.

Ainda sobre o mesmo episódio, observa-se um outro tipo de mistura, desta feita entre elementos que, a partir da cultura muçulmana, poderíamos denominar sagrados e profanos. Se lembrarmos que a condição de meretriz sempre foi algo reprovável pela maioria das religiões[21], logo, uma prostituta vestida de muçulmana talvez fosse um exemplo extremo de profanação[22]. Entretanto, a marafona não se importa com essas separações – o que pertence à esfera dos deuses (sagrado) e o que pertence ao uso comum dos homens[23]. Na verdade, ela parece desconhecer qualquer sistema ideológico deste tipo, sua condição fronteiriça não lhe dá subsídios necessários para a eleição de categorias fundacionistas; à feição de Riobaldo de Grande sertão: veredas, ela poderia muito bem bradar com certo desprendimento: “bebo água de todo rio”[24]. Cristo, Maomé e deuses guaranis transitam livremente na arena democrática de seu mundo. Seu locus de enunciação e de atuação é o entre-lugar das culturas, onde tudo se mistura. Na dança da sedução, acaba por ter Abul Abdula em seus braços, mas não consegue convencê-lo a ficar.

A religião de Abul Abdula estabelece não fazer sexo às sextas-feiras, até às 18h – uma proibição que se revela um contrassenso para quem decidiu viver, ainda que por pouco tempo, nas dependências de um bordel. Todavia, ele segue à risca suas tradições e não peca. A marafona, por sua vez, não insiste; prefere abrir mão de seu próprio costume – que nada disso prevê – e acaba, desta maneira, assimilando mais um aspecto religioso do outro, e aguardar o momento oportuno.

Há inda outro episódio em que as diferenças religiosas entre ambos se cristalizam de forma peculiar: trata-se do momento em que a narradora parece testar os limites da crença de seu amante, o que acaba revelando, num primeiro momento, certa incompatibilidade religiosa entre ambos:

Mûhara, ñemûhara. Solo creo en Cristo – Su dolor y agrura. Confessê esto com tamanha agonía que el Faissal Mohamed Muhamar Bin el-Rachid todo se puso en alerta – de un Dios no se cabe hablar con esto impublicable dolor, dijeme. E, de nuevo, no lo creí. Habería de intentar, por undécima vez, convencirme de su Alá. Toda Viernes mantenía-se sin comer ni jugar ô mismo los cigarrillos de que tanto le gustaba, en esto sagrado día, hasta el poner del sol, no los fumaba.Y rezava, Cristo mio!, como que rezava! Unas preces cantantes, todo de rodillas, la cabeza indo y volviendo del solo, batendo la testa contra el tapiz de mi quartito apretado al fondo de aquel putero en Eldorado del Paraná.[25]

 

Afora o fato bastante particular de misturar Cristo e Maomé em um “quartito apretado al fondo de aquel putero em Elborado del Paraná”, a estranheza no que tange aos costumes religiosos de cada um é recíproca. Embora, em princípio, esta pareça ser uma questão que afastaria imediatamente um do outro, o que se observa não é exatamente isso. Uma possível conversão por parte da Marafona à religião do amante se esboça no momento em que ela declara: “Habería de intentar, por undécima vez, convencirme de su Alá”. A mudança de religião por parte da Marafona não é evidente, no entanto ela continua seu trânsito livremente por ideologias, línguas, culturas, uma vez que não dá atenção a esse tipo de segmentação.

O fato de a narrativa estar a todo tempo descrevendo relações sexuais entre as personagens aponta para outro dispositivo gerador de hibridismo. O teórico do pós-colonialismo Roberto J.C. Young, em o Desejo colonial, observa que os contatos culturais muitas vezes se dão, ao menos em suas fazes inicias, pela linguagem e pelo sexo:

Não obstante a linguagem preservar um produto importante do contato, um segundo modelo […] é igualmente literal e mais físico: o sexo. No império Britânico, como observa Hyam, numa metáfora curiosamente incauta, “a sexualidade era a ponta de lança do contato racial”. Os veículos históricos entre linguagem e sexo foram, contudo, fundamentais. […] Ambos os modelos de interação cultural – a linguagem e o sexo – se amalgamam com o seu produto, o qual é caracterizado pelo mesmo termo: hibridismo.[26]

Particularmente na era dos impérios[27], a aproximação entre culturas distintas, muitas vezes, foi desencadeada pelo contato sexual. As diferenças raciais e preconceitos parecem ficar suspensas quando o assunto é desejo sexual; separações ideológicas são facilmente esquecidas ou tratadas como algo sem importância. Edward Said, em Orientalismo, recorrentemente faz questão de lembrar que o exotismo com que o Ocidente imperialista pintou o Oriente carregava em si uma imagem bastante viva de sexualidade. Com isso, as campanhas políticas europeias do século XIX que procuravam incentivar a migração de cidadãos europeus para as colônias tinham um tempero adicional: era garantido aos varões uma vida sexual abundante. Nos trópicos, Brasil sempre incluso, o exotismo e os corpos nus sempre fizeram a cabeça do estrangeiro, primeiro a dos portugueses, de todos os outros. A metáfora da casa grande e senzala tem mil faces.

Um caso conhecido em que o hibridismo cultural se deu inicialmente pela aproximação sexual é o descrito por Octavio Paz, em o Labirinto da solidão. No capítulo 4, “Os filhos da Malinche”, Paz relata o caso da índia Malinche que se oferece voluntariamente ao conquistador espanhol Hérnan Cortés, e a ele tudo entrega, inclusive as minas de ouro que as tribos tão secretamente guardavam. O primeiro contato de ambos é sexual, e só depois acorrem as trocas de caráter simbólico, como aquelas entre línguas e culturas, por exemplo. Assim, os mexicanos pertencem a uma cultura de ascendência híbrida, pois nasceram –  como a brasileira –, do contato entre o colonizador europeu e o colonizado ameríndio.  Entretanto, o fato de descenderem de uma mãe traidora não lhes agrada, daí negam com certa veemência sua ascendência híbrida.[28]

No caso da novela “Mascate”, há um exemplo claro de que a sexualidade foi a ponta de lança do contato cultural entre o estrangeiro árabe e a prostituta autóctone. As descrições sexuais se multiplicam pela novela. Possivelmente a estada do muçulmano no bordel durou somente o tempo em que o muçulmano se encontrava ainda atraído sexualmente pela marafona. À guisa de exemplo, cabe a descrição que a Marafona faz do mascate, no exato momento em que ela o avista adentrando ao bordel, um verdadeiro quadro orientalista, à feição de Jean-Léon Gérôme[29], pintado muito a posteriori, com as tintas do desejo e com o pincel da solidão: “las manos deste Abdul, haîhupiré, haîhupiré, la caliente sonrisa, su piel de un casi cobre e el bigote elegante, aparado y negro. Más que todo, su ar señor, apessar de jovem aún, su ar señor – muchacho en los probables trinta y cinco, de gestos sêrios, de palabras sêrias, de suprema religión.”[30] O estranho muitas vezes fascina.

Esse mesmo desejo desenfreado de agradar o estrangeiro, seja sexualmente, seja incorporando aspectos da cultura deste, fez com que a meretriz assimilasse ainda algumas poucas palavras da língua do muçulmano. São no total nove termos ou expressões, que reaparecem em vários momentos da novela:

Ahd lulo – colar de pérolas.

Ãrtiah nafse – paz de espírito

Biah – mascate; comerciante.

Biah ashiah sãcar – doce mascate amante meu…

Daw – luz

Mara – mulher; ser humano do sexo feminino.

Mãssa – crepúsculo; pôr-do-sol.

Shoh lal watta – saudades da pátria, banzo.

Surya – Síria, o país.[31]

 

Os termos árabes assimilados pela Marafona, no decorrer de sua fala, são hibridizados com outros advindos do português, do espanhol e do guarani. Sirva de exemplo, o próprio título e subtítulo da novela, que já apontam para um híbrido linguístico prolífico: “Mascate: Pî’ aitteguivé”. “Mascate” é uma palavra comum ao espanhol e ao português; já “pî’ aitteguivé”, na língua guarani, significa “de todo o meu coração”. Contudo, a mescla entre línguas é muito mais profunda e refletida. Tomemos, em seguida, um trecho mais longo em que o hibridismo linguístico se mostra mais expressivo:

Me he ensinado muchas cosas pero ninguna como la palavra mara que es dizer, em árabe, mulher. E me dió el daw de sus luces de prantos y agapanto, los volteios de las manhanas – sãbah, sãbah, y la sedossa manzana delos crepúsculos de ayer – massa, como el intento ensinar-me com su charla comovida, toda em sêrio, esto hijo de la Súrya más que de toda Istambul y que de ser para todo siempre mi turquito Felício, con su juventude tempranamiente envejecida. Torî, Tovarorî.[32]

 

Eis um momento em que o texto se hibridiza ao seu extremo com termos das quatro línguas. A título de ilustração, vale aqui uma demarche analítica e a classificação dos termos. Assim observaríamos: “he”, “muchas”, “cosas”, “pero”, “la”, “dió”, “el”, “sus”, “luces”, “y”, “los”, “las”, “manzana”, “ayer”, “su”, “es”,  “charla”, “esto”, “hijo”, “más”, “siempre”, “mi”, “turquito”, con”, “tempranamiente”, “intento”, “envejecida” como palavras pertencentes ao léxico espanhol; “ensinado”, “dizer”, “em”, “mulher”, “e”, “prantos”, “agapanto”, “volteios”,  “massa”, “ensinar-me”, “comovida”, “Istambul” , “há”, “Felício”, “juventude” são termos do português; “me”, “como”, “que”, “es”,  “árabe”, “crepúsculo”, “toda” pertencem aos dois idiomas, ao mesmo tempo; já os vocábulos “mara”, “daw” e “Súrya” são do árabe; “torî” e “tovarotî”, do guarani. Resta saber onde categorizar os termos “manhanas”, “sedossa”, “sêrio”.

A primeira palavra, “manhana”, é um neologismo, embora semelhante ao português (manhã) e ao espanhol (mañana), ela não pertence a nenhum dos dois; trata-se antes de um neologismo criado por uma contaminação fonética: o termo foi grafado em português segundo sua pronúncia em espanhol. No caso da palavra “sedossa”, há uma ocorrência semelhante: o termo “sedosa” é comum tanto ao idioma de Camões quanto ao de Cervantes, acontece que, grafado com “ss”, ele também constitui neologismo. Outro caso de contaminação fonética: a ortoépia do termo em espanhol foi responsável pela grafia neológica em português. No caso da palavra “sêrio”, o acento agudo do português – “sério” – foi substituído pelo circunflexo, denotando como ressoa esta palavra em espanhol.

O poeta Douglas Diegues, ao fenômeno literário que se expressa por meio da mistura artística entre os idiomas português, espanhol e, às vezes, guarani, deu o nome de “Portunhol selvagem”. O adjetivo aqui é importante porque faz a distinção com o portunhol língua franca, um pidgin que não pressupõe intencionalidade artística e que se desenvolveu a partir de intenções comerciais, servindo muitas vezes para as trocas cotidianas dos povos fronteiriços.

Diegues concebe Mar Paraguayo como um dos precursores de seu “Portunhol selvagem”. Partindo de uma perspectiva mais ampla, a qual procuraria contemplar não somente misturas linguísticas locais, prefiro utilizar o termo “híbrido romanesco ou intencional” – conforme cunhado e conceituado por Bakhtin em sua teoria do romance – para caracterizar não somente a literatura de WB, mas todos aqueles híbridos linguísticos que têm a literaturidade como proposta fundamental. Vejamos uma síntese proposta pelo próprio Bakhtin quanto ao híbrido romanesco:

 

Resumindo as características de um híbrido romanesco, podemos dizer: diferentemente da mistura opaca de línguas em enunciados vivos que são falados numa linguagem historicamente em desenvolvimento […], o híbrido romanesco é um sistema artisticamente organizado de forma a pôr diferentes línguas em contato, um sistema cujo propósito é a iluminação de uma língua por meio da outra, o delineamento de uma imagem viva de outra língua.[33]

 

Na tentativa de melhor aclarar o conceito e distingui-lo de qualquer outro tipo de híbrido, Bakhtin, mais uma vez, enfatiza:

 

Um híbrido artístico requer um esforço enorme: ele é estilizado de ponta a ponta, pensado, pesado, distanciado. Com isto ele difere da mistura de linguagens dos prosadores medíocres, mistura superficial, irrefletida, sem sistema, que frequentemente destaca a falta de cultura.[34]

 

A caracterização dada por Bakhtin a este tipo de hibridismo linguístico encontra na literatura de WB uma ilustração bastante convincente. Pois estamos tratando de uma mistura refletida e totalmente intencional e não uma simples cópia de um linguajar de fronteira.

Voltando a outras formas de misturas presentes em “Mascate”, confere-se na passagem citada abaixo mais uma das intenções da marafona em borrar todas as fronteiras e assimilar o que fosse preciso para ter o amante junto de si. O trecho dá a dimensão do trânsito entre culturas que ela acaba promovendo:

Quando uno está contente ni contente quiere saber se está. Esto sei de mucho tempo, se oír falar, sea bien dicto, porque no alcançê aún en mi existência conocer lo que sea una autêntica alegría. Dançaria la dança griega, dançaria la dança muçulmana, la samba y até, no duvidem, el bailado de la muerte del cisne, por uno solo día en que me fuísse dona y señora de la extensa paz de los dadivôssos. […] Apena quiero amar y todo esto ya me pone profunda, descabeçada, enferma de mi y de la tarde. Ah, pudiera, yo desearía morir.[35]

 

Embora hipoteticamente, a marafona está disposta a fazer qualquer coisa para alcançar a felicidade e a paz interior, as quais lhe foram suprimidas depois da partida do árabe. Trata-se de uma metáfora, porém a noção de transnacionalidade representada é bastante útil. Ela reverbera quando a personagem traz à baila imagens de danças étnicas de outros povos, fala-se em “dança grega”, “dança muçulmana”, “samba” e dança clássica russa (nesse ponto a referência é precisa, trata-se do ballet O Lago dos Cisnes, de Tchaikóvsky). Importante dizer que neste ponto a marafona não está misturando somente línguas diferentes, mas linguagens diversas. Todos esses ritmos ela os dançaria se lhe fosse possível alcançar a paz espiritual, a qual depende da presença do árabe. A imagem do diálogo cultural e do trânsito entre etnias é intensa, assim como todos os demais exemplos apontados acima, eis aqui amostras que trazem reverberar formas híbridas de diversos tipos presentes em “Mascate”.

 

4. Entre-lugares

Como já afirmado, tanto Mar Paraguayo quando “Mascate” são novelas ambientadas em fronteiras e elegem como forma de expressão línguas em interação, muito longe de conhecerem qualquer tipo de padronização.

No caso particular de Mar Paraguayo e “Mascate”, se por um lado as narrativas são o conjunto artisticamente elaborado de falas agônicas que denunciam estados de “devaneio” das personagens narradoras, por outro, estes mesmos textos permitem situar essas mesmas personagens nas condições de “informantes locais”; ou seja, as narrativas denunciam loci de enunciação que, por sua vez, são coabitados, como vimos, por línguas e culturas de prestígios diferenciados. Tais espaços são palco de convívio de forças antagônicas em permanente estado de tensão, espaços estes que proponho denominar, à feição da terminologia dos estudos pós-coloniais, de “entre-lugar” (in-between).[36] É justamente dessa atmosfera própria de entre-lugar, seja ela promovida pela interação entre geografias, línguas, linguagens, etnias ou mesmo culturas diferentes, que devemos interpretar as falas próprias das Marafonas de Guaratuba e de Eldorado del Paraná. Seus discursos, contudo, não ocupam categorias monolíticas, são antes plurilíngues e multiculturais, atravessados por vozes adversas.

Pensado por esse ângulo, podemos então adjetivar as duas marafonas como personagens que “não respeitam limites, são insolentes, transgressoras”[37]. Suas falas e comportamentos devem ser tomados enquanto corpora que explicitam características culturais da região em que habitam. Como quer a antropologia cultural[38], as personagens de WB enquadram-se nas condições de “informantes locais”[39], para usar aqui uma expressão de Gayatri Spivak.

As informantes detêm um “saber local”[40]. Se recorrermos a uma divisão apresentada por Walter Benjamin em seu ensaio “O narrador”, a Marafona do Balneário de Guaratuba e a de Eldorado del Paraná ajustam-se facilmente à categoria de “narrador local”: são mulheres que conhecem as tradições, lendas, costumes e línguas de uma determinada, daí poderem falar com tanta habilidade sobre eles. Entretanto, não podemos deixar de lado que estas mesmas marafonas, outrora, quando ainda poderiam ganhar a vida como meretrizes, perambularam por outras geografias, o que certamente influiu no que tange à constituição de suas naturezas heterogêneas e multifacetadas, assim como o plurilinguismo inerentes às respectivas falas.

Em discussão sobre as implicações de conceitos da crítica pós-colonial em contextos como o da América Latina, Roland Walter coloca uma questão importante acerca do papel que a geografia representa no imaginário cultural de qualquer povo, questão que encontra um paralelo com a literatura de WB. Diz Walter: “Em cada cultura, a geografia tem um papel fundamental na constituição do imaginário cultural de um povo: ela é tanto natural quanto cultural; uma entidade material e uma visão mítica que participa na definição identitária.”[41]

Por este prisma, poderíamos pensar o papel da geografia na novela Mar Paraguayo, tomando como exemplo o próprio nome da narrativa: “Mar Paraguayo”, que, além de ser um híbrido perfeito – pois “Mar” é um termo comum tanto ao espanhol quanto ao português, e “Paraguayo” é puramente do guarani – recorre a uma geografia imaginada, uma vez que, como se sabe, o Paraguai é um país continental, sem saídas para o mar. O mar aqui tem associação com a fluidez discursiva, com a profundidade e com a incerteza dos próprios sentimentos da personagem narradora, os quais se materializam em angústia, desejos não correspondidos, nostalgia, dúvidas. Também convém lembrar que o mar é resultado da confluência de rios de todos os tipos. Em uma passagem do Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Greerbrant, o verbete “mar” é assim descrito:

Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes e as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão […]. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte.[42]

O trecho traz à tona várias características que encontram ecos na matéria amorfa de Mar Paraguayo. Para lembrarmos uma delas, basta trazer à mente que nas últimas linhas da novela, a marafona parece dar a chave para uma interpretação possível de Mar Paraguayo, quando diz: “Mi mar? Mi mar soy yo. Ĩyá.”[43] Se lida por este prisma, Mar Paraguayo e marafona seria uma mesma coisa.

Em contrapartida, pela ótica da relação do conteúdo da novela com o real, a narrativa não está esvaziada de indícios de verossimilhança; há, pois, diversos elementos que participam da realidade empírica cuja relação com um “mundo possível”[44] é evidente. O procedimento que visa pôr em correlação elementos reais e ficcionais, algo muito ao gosto do pós-modernismo, podem ser arrolado entre as múltiplas faces do hibridismo. Em Mano a noite está velha, livro póstumo de WB, essa característica foi explorada a um grau surpreendente, o escritor procurou turvar intencionalmente todas as fronteiras entre informações de ordem biográfica e ficcionais. No capítulo “O mundo híbrido”, dedicado à narrativa de Franz Kafka, Lubomír Dolezel apresentou uma série de exemplos em que a confluência entre os mundos ficcional e real se entrecruzam:

O mundo híbrido, criado por Franz Kafka, tem causado um tremendo impacto na ficção moderna e pós-moderna. Posto que se dissolvem as fronteiras entre o mundo ficcional do mito clássico, o mundo híbrido é a coexistência, em um espaço ficcional unificado, de entidades ficcionais (pessoas, episódios) fisicamente possíveis e de outras, fisicamente impossíveis.[45]

 

A norma básica a seguir – aliás a mesma proposta por qualquer obra ficcional – é a “suspensão momentânea da descrença”, proposta por Samuel Coleridge; ou seja, o leitor abre mão da descrença e assume para si que está ante a uma obra literária, cuja relação desta com a realidade nunca foi uma obrigatoriedade.[46] Com isso, o próprio ato da recepção se torna uma atividade híbrida, pois aceitamos, assim, participar do jogo oscilante entre o que é invenção e o que é realidade.[47]

 

5. As fronteiras da semiosfera

Ainda que faça usos de fronteiras imaginadas, é justamente a partir desses loci de enunciação que emergem os discursos das Marafonas. As duas narrativas são recriações estilizadas desta realidade regional fronteiriça; trata-se, para usarmos um termo de Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, de duas novelas que operam à maneira de um “espaço de um mosaico móvel”[48], onde línguas, culturas, costumes e povos se hibridizam de maneira conflituosa, de maneira a tornar os limites segmentadores em “fronteiras vaporosas”[49].

Como até aqui vimos falando de maneira indireta sobre “fronteira”, talvez esse seja o momento de aclarar as acepções nas quais o termo está sendo utilizado. O conceito é tomado de empréstimo da Semiótica da Cultura, particularmente da obra de Iúri Lotman.

Em um ensaio denominado “Sobre a semiosfera”, de 1984, Lotman, estabeleceu as linhas gerais daquele que talvez seja o mais vigoroso dos conceitos apresentados no âmbito da sua teoria semiótica: a noção de “semiosfera”, o espaço semiótico no qual elementos linguísticos e culturais se encontram e se hibridizam constantemente. Uma das exemplificações que Lotman propõe para sua noção de espaço semiótico ou semiosfera é a de uma sala de museu. Vejamos:

Imagine a sala de um museu em cujas vitrines encontram-se expostos objetos de diferentes séculos, inscrições em línguas conhecidas e desconhecidas e algumas instruções para decodificá-las; há também um guia esclarecedor redigido pelos museólogos, com roteiro para o trajeto e regras de conduta para os visitantes. Imagine também, na mesma sala, monitores e visitantes, cada qual com seu mundo semiótico, todos compondo um único mecanismo (o que, em certo sentido, eles são). Teremos, então, a imagem da semiosfera. Teremos que lembrar também que todos os elementos da semiosfera estão em correlações dinâmicas, não estáticas, correlações cujos termos estão constantemente mudando.[50]

 

A semiosfera se consolida ou é gerada a partir da interação dialógica de diversos códigos, todos confluindo para uma totalização integrativa. Há uma imagem em Mar Paraguayo que materializa a noção de Lotman; trata-se do momento em que a Marafona de Guaratuba afirma que seu discurso será construído à feição de um “zoo de signos”. A imagem do zoológico com sua multiplicidade de espécies e raças tem semelhança de família com o turbilhão de linguagens que pululam no espaço semiótico. Sendo a semiosfera uma variegada atmosfera de códigos diversos em interação, não incorreríamos em erro se a denominássemos, à feição da marafona de Guaratuba, um zoo de signos.  É importante dizer que a semiosfera não é a mera soma dessas linguagens todas, Lotman frisou tantas vezes que a noção de semiosfera necessariamente deve ser compreendida enquanto um total global, um todo em interação. A semiosfera é totalmente dependente da noção de fronteira, uma vez que aquela só se instaura a partir da existência desta.

O conceito de fronteira pode ser assimilado a partir de duas dimensões: uma de sentido metafórico e outra de sentido concreto, ambas teorizadas por Lotman. No início, volta da década de 1980, o semiólogo concebia o conceito de fronteira enquanto metáfora, uma abstração conceitual; já na fase tardia – como o contexto de seu livro Cultura e explosão – a acepção extrapolou a noção inicial e passou a abordar igualmente contextos reais de interação cultural (o exemplo de São Petersburgo, à época da ocidentalização da Rússia é recorrente em seus escritos). Para os efeitos desta análise, utilizo o conceito em seu sentido espacial concreto.

Nos casos em que a semiosfera inclui os limites territoriais reais, a fronteira torna-se literalmente espacial. Várias vezes foi observado o isomorfismo de todo tipo de povoações à estrutura cósmica: desde as povoações arcaicas até os projetos das cidades ideais renascentistas e iluministas.[51]

 

Se, como afirma Lotman, sem a interação dinâmica entre códigos distintos a existência da semiosfera é inconcebível, então somos levados a afirmar que todas as misturas fronteiriças promovidas por WB –  e aqui lembremos novamente sua metáfora do “Zoo de signos” –, tanto em Mar Paraguayo quanto em “Mascate”, são dignas de ilustrar seu conceito semiosfera: a semiosfera é um “zoo de signos”.

Vários tipos de hibridismos presentes nas narrativas, compreendidos como formas de interação de elementos de procedências distintas, contribuem para a formação do espaço semiótico. Na introdução que Umberto Eco escreveu para The universe of the mind, ele observa: “Ainda na década de 1960, Lotman entendeu claramente que a multiplicidade de códigos numa dada cultura manifesta-se por contrastes e hibridismos ou crioulizações.”[52]. Para Lotman, a semiosfera está em constante estado de hibridização, ela só se configura a partir existência de linguagens distintas em interação dialógica. Escreve ele:

O aumento da intensidade dos processos semióticos na faixa fronteiriça da semiosfera está relacionado ao fato de que justamente aqui ocorrem as constantes invasões vindas de fora. A fronteira, como já havíamos dito, é bilateral e um dos seus lados está sempre voltado para o exterior. Mais do que isso, a fronteira é uma área do bilinguismo constitucional. (LOTMAN, 2016)[53]

Segundo Eco, os processos semióticos mais “quentes” são aqueles gerados nas fronteiras da semiosfera, sem as quais o espaço semiótico não pode sobreviver. Escreve ele:

[…] os pontos mais “quentes” dos processos semióticos são as fronteiras da semiosfera. O conceito de fronteira é ambíguo. Por um lado, ela separa; por outro, une. Ela sempre é uma fronteira com algo mais e, por conseguinte, pertence a ambas as culturas fronteiriças, a ambas as semiosferas adjacentes. A fronteira é bilíngue e plurilíngue. A fronteira é um mecanismo de tradução dos textos da semiótica alheia para a “nossa” linguagem, o lugar de transformação do “exterior” em “interior”, é uma membrana filtrante que transforma os textos alheios a tal ponto que eles integram a semiótica interna da semiosfera permanecendo, no entanto, estranhos.[54]

Lidas nessa chave, teríamos duas novelas representando o papel de legítimas literaturas de fronteiras ou, se quisermos, escrituras de semiosfera. Em termos de nacionalidade, não estaríamos autorizados a dizer que as marafonas são mais paraguaias do que brasileiras, ou vice-versa, pois não sabemos ao certo a qual cultura pertencem, qual língua de fato elas falam, não há maneira de estabelecer essencializações, o que se tem é a supremacia da mistura, consta-se a processo e não resultado.

 

Lotman também coloca que a fronteira da semiosfera é bilíngue ou plurilíngue. À feição da noção de plurilinguismo, que Bakhtin identifica como estando na raiz do gênero romance, pois sem a interação entre línguas e linguagens ele não se pode concebê-lo[55], o autor de Cultura e explosão ainda vê na multiplicidade de línguas e linguagens, uma das características basilares do espaço semiótico. O plurilinguismo, como tivemos oportunidade de demonstrar, é o responsável pela geração de formas híbridas que ecoam em “Mascate” e em Mar Paraguayo.

Poderíamos indagar – uma vez mais com Lotman – que, se essas são formas híbridas aferíveis nas fronteiras, quais seriam então as que ocupam o centro da semiosfera? Logo, se estabelece uma visão binária – herança metodológica do Círculo Linguístico de Praga assumidos por Lotman – entre centro e periferia, um modelo operatório tão caro ao pensamento estrutural francês da década de 1960. Quando Lotman coloca em correlação centro x periferia, críticos de plantão apressados – e aí poderíamos incluir o próprio Bakhtin – assimilaram-na como retorno ao Estruturalismo clássico. Mas, a verdade é que Lotman não estava interessado especificamente em marcar oposições deste tipo, queria ele demonstrar que o centro é ocupado por sistemas mais organizados (o sistema das línguas naturais, por exemplo), ao passo que aqueles ainda em processo de estandardização estariam localizados na periferia.[56]

Pensado por este prisma,  a partir da existência de elementos em permanente trânsito entre partes, pode-se afirmar que o centro está na periferia como a periferia está no centro, não havendo então rígida oposição binária. É justamente no trânsito entre os polos – o foco está no entremeio (in-between) do percurso entre centro e periferia – que interessa a Lotman, ou seja, é a gradação verificada nos matizes que se apresentam no percurso de um extremo ao outro.

Essa perspectiva de entremeio, como vimos,  permite uma leitura particular das novelas de WB. Como ambas estão localizadas em fronteiras, na zona periférica da semiosfera, apresentam assimetrias de diversos tipos, porém a linguística e a cultural são as mais notáveis. Pensadas enquanto territorialidades, o português falado em Curitiba, na mesma medida que o espanhol falado em Assunção, apresentando mais unidade interna que aqueles falados nas regiões periféricas do país, como por exemplo em Guaratuba, locus de enunciação de Mar Paraguayo. Nos limites territoriais, a tendência sempre foi a hibridização[57]. Em suma, o fato de estarem ambientadas não no centro, mas na periferia, dão às novelas um caráter heterogêneo, e faz do poliglotismo e dos hibridismos romanesco e cultural um de seus traços distintivos.

Ainda me valendo de informações do ensaio “Sobre a semiosfera”, de Lotman, nos seus últimos parágrafos se lê:

Todos os grandes impérios que lidavam com nômades ou ‘bárbaros’ estabeleciam em suas fronteiras tribos formadas destes mesmos nômades ou ‘bárbaros’, os quais eram contratados para defender a fronteira. Essas colônias formavam uma zona de bilinguismo cultural que garantia os contatos semióticos entre os dois mundos. Essa mesma função de fronteira da semiosfera é desempenhada pelas regiões com diversas mesclas culturais: cidades, vias comerciais e também por domínios de formação de koiné e de estruturas semióticas crioulizadas.[58]

Se lidas pelo prisma conceitual de Lotman, as duas marafonas estariam na condição de “bárbaras”; como se sabe, esse é um termo pejorativo inventado pelos gregos antigos para qualificar todos aqueles que não falavam sua língua. Se assim o concebermos, parece haver então um contrassenso, pois no exemplo de Lotman, “bárbaro” é aquele que fala não somente a língua da metrópole, mas também a língua do outro, ou melhor, fala o híbrido da fronteira. Pois o fato de ser contratado para o serviço de mediador da fronteira só lhe é facultado pelo fato de seu poliglotismo, pela sua desterritorialidade, em suma: o diferencial de ser bárbaro é poder estar ao mesmo tempo dentro e fora de territórios estrangeiros, na colônia e na metrópole, no espanhol, no português e no guarani, ao mesmo tempo. Essa posição antifundacionista dá-lhe a autonomia necessária para integrar em seu discurso tudo quanto é forma de misturas, de hibridismos.

Tomemos o caso da novela “Mascate”, nela temos o caso ilustrativo do personagem árabe que vive em condição de nômade; pelo prisma de Lotman, seria ele um candidato ao serviço da fronteira, dado o fato de sua evidente desterritorialidade. Também temos – e agora pensando as duas novelas integralmente – o caso das marafonas protagonistas, suas falas-confissões são correspondentes às de um “agente de fronteira”, na medida em que nelas se percebe um continuum de elementos culturais e linguísticos pertencentes a mundos diferentes, em permanente tensão dialógica. Frisa-se que os agentes de fronteira de Lotman apresentam estreitas analogias com o termo hybris, etimologicamente a ancestral do termo “híbrido”, ouse já, serem que desconhecem limites, transgressoras.

As marafonas, pensadas a partir de Lotman, fazem as vezes de dispositivos que garantem a translatabilidade entre o externo e o interno, operam à maneira de filtros, nos quais se processa, de maneira centrada, o hibridismo. Talvez fosse importante lembrar nesse momento, ainda que brevemente, o que Lotman concebia por “persona semiótica”: “o conceito de fronteira é correlato ao de individualidade semiótica. Neste sentido, pode-se dizer que a semiosfera é uma ´persona semiótica´”[59]. Refere-se a uma operação metonímica, no sentido que a territorialidade geográfica da semiosfera e o plurilinguismo que a caracteriza se encarna na persona que participa da semiosfera; seria um movimento indutivo que procura ver no indivíduo as marcas maiores de um todo, no caso o do espaço semiótico a que pertencem. À noção de persona semiótica, poderíamos somar a pertinente observação da escritora Yoko Tawada:

Hoje, um sujeito humano é um lugar onde línguas distintas coexistem através da mútua transformação uma na outra, assim não faz sentido cancelar sua coabitação e suprimir a distorção resultante. Em vez disso, um autor deve perseguir o próprio sotaque e o que ele traz à tona pode começar a ser algo importante para a sua criação literária.”  (TAWADA, 2013) [60]

 

As declarações de Lotman e de Tawada nos fazem concluir, rapidamente, que as personagens de WB são elas mesmas a própria materialização da semiosfera, ou seja, são personas[61] semióticas, são personagens “onde” línguas e linguagens distintas coexistem através da mútua transformação uma na outra.

 

6. O terceiro espaço

Pensada enquanto espaço físico, a semiosfera é também análoga ao conceito de in-between (entre-lugar, entremeio, terceiro espaço), já esboçado anteriormente, um conceito da teoria pós-colonial, desenvolvido pelo teórico Homi K. Bhabha no ensaio “Signos tidos como milagres”, de O local da cultura. O constructo teórico que embasa a ambos – tanto a semiosfera quanto o entre-lugar – é, para usar uma expressão de Pampa Olga Arán, “a ideia de um espaço poliglota”[62]; espaço de convívio dos contrários, representa o momento em que línguas, culturas, etnias se encontram, entrechocam-se, produzindo zonas de indiscernibilidades.

No caso do pós-colonialismo de Bhabha, o conceito de entre-lugar constitui o espaço irônico que se instaura entre os discursos do colonizador e do colonizado, seja este último pertencente a uma casta local privilegiada, como é o caso do próprio Bhabha, ou a uma maioria correspondente à gente simples do povo. O entremeio de Bhabha é onde se processa por excelência a hibridização linguística e cultural.

Não é de se estranhar que na base da teoria semiótica de Lotman e da do hibridismo de Bhabha se encontre a influência maior de Bakhtin, sobremaneira a defesa deste do hegemônico princípio dialógico da linguagem[63], da sua doutrina das vozes, assim como a noção de que nenhum discurso está isento de ser coabitado pelo discurso de outrem.

Em seu ensaio “O entre-lugar das culturas”, Bhabha, pela primeira vez, reconheceu que sua noção de hibridismo recebeu particular influência do híbrido intencional bakhtiniano. Vejamos o que ele diz na citação:

Na verdade, Bakhtin enfatiza um espaço de enunciação, onde a negociação da duplicidade discursiva – por meio da qual não quero afirmar a dualidade ou o binarismo – engendra um novo ato de fala. No meu próprio trabalho, desenvolvi o conceito de hibridismo para descrever a construção da autoridade cultural em condições de antagonismo ou desigualdade política. As estratégias de hibridização revelam um movimento de estranhamento na inscrição “autoritária” e até mesmo autoritarista do signo cultural. No momento em que o preceito tenta se objetivar como um conhecimento generalizado ou uma prática normalizante e hegemônica, a estratégia ou o discurso híbrido inaugura um espaço de negociação, onde o poder é desigual, mas a sua articulação pode ser questionável.[64]

 

Bhabha quer dá ênfase ao local físico de onde surge o hibridismo, para ele o entre-lugar (in-between.) das trocas simbólicas e das disputas ideológicas. Sua retomada do hibridismo bakhtiniano envolve uma dimensão declaradamente política; Bhabha está particularmente interessado na capacidade do híbrido intencional enquanto potencial arma para promover o “desmascaramento”, de subversão da autoridade por meio do hibridismo. Lembremos o núcleo substancial da teoria do romance de Bakhtin que mais interessa a Bhabha: “O híbrido romanesco é um sistema artisticamente organizado de forma a pôr diferentes línguas/linguagens em contato, um sistema cujo propósito é a iluminação de uma língua por meio de outra, o delineamento de uma imagem viva de outra língua/linguagem.”[65]

Mais detalhadamente, Bhabha interpreta o procedimento típico do híbrido intencional de Bakhtin como um dispositivo apropriado para descrever a dinâmica das trocas que ocorrem no espaço colonial. A operação básica que Bhabha recupera de Bakhtin é a vigorosa capacidade do híbrido romanesco de promover, mesmo dentro de uma única fala, a coexistência de duas ou mais línguas/linguagens em uma espécie de jogo de espelhos que acaba por gerar uma espécie de iluminação mutua entre elas. Nesse bailado tenso, uma língua/linguagem denuncia a existência/presença da outra, seguem desmascarando-se mutuamente, criando contradições, ambiguidades, focos de ironias. Na síntese Young, esse jogo tem uma implicação política, segundo ele,

Para Bakhtin a anulação da autoridade na linguagem por meio da hibridação envolve sempre sua dimensão social concreta. Num gesto astuto, Homi K. Bhabha transferiu esta subversão da autoridade por meio da hibridação, para a situação dialógica do colonialismo […].[66]

 

Para Bhabha, dirá ainda Robert J.C. Young, “o hibridismo torna-se o momento em que o discurso da autoridade colonial perde o seu domínio unívoco de sentido e se encontra aberto ao traço da língua do outro, o que faculta ao crítico registrar movimentos complexos de alteridade apaziguadora no texto colonial.”[67]

Para encerrar, tento uma última correlação entre o hibridismo de Bhabha e a novela “Mascate” e Mar Paraguayo. A única marca que resta de um processo semelhante a esse descrito pelo teórico do pós-colonialismo corresponderia à presença do guarani em ambas as novelas. Aqui o idioma afere-se apenas como rastro, como um rizoma, cuja erupção à margem se mostra rara e esporádica. Português e espanhol, as línguas dos colonizadores, prevalecem e se elevaram à categoria de línguas nacionais, restando ao guarani uma posição, à primeira vista, “subalterna” – ao menos em presença – no quadro geral das narrativas. Talvez, matizando o discurso das suas personagens com elementos do léxico indígena, WB estaria apresentando uma imagem de resistência este idioma, ao mesmo tempo em que também denunciaria uma dominação incompleta por parte das línguas da metrópole, pois há sempre um elemento que reverbera, imprevisível e vigoroso, quebrando a hegemonia das línguas metropolitanas. Nesse sentido, particularmente, o discurso da Marafona de Mar Paraguayo, hibridizado ao extremo, tem qualquer coisa de vitorioso, pois ela faz questão de enfatizar que o idioma guarani tem papel fundamental em seu relato, ou seja, ele não se entregará facilmente.  Assim a língua guarani pode ser entendida como um elemento de resistência, uma força que desequilibra a fixação por definitivo da língua do colonizador.

 

Como todas as obras citadas estão referenciadas de forma completa nas notas de rodapé, não apresento aqui a costumeira bibliografia final.

  

[1] Professor do CEETEPS e professor convidado do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura Russa da USP.

[2] Entrevista de WB para o site do jornal Gazeta do Povo; disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/blog-do-caderno-g/o-inventa-lingua-wilson-bueno/ . Acesso em 07/0/2017.

[3] Doravante referenciado por WB.

[4] WB. “Fronteiras: nos entrecéus da linguagem”. Revista Humboldt (uma publicação do Goethe-Institut). Disponível em http://www.goethe.de/wis/bib/prj/hmb/the/das/pt3286146.htm. Acesso em 07/01/2017.

[5] Por ser uma novela ainda inédita, as referências à “Mascate” não contém maiores especificações. Em 2016, o primo de WB, o psicanalista Luiz Carlos Pinto Bueno, muito generosamente me enviou em formato “Word”, essa obra para fins puramente acadêmicos. Manifesto também aqui meu muito obrigado pela cessão.

[6] Aristóteles. Poética.3ed. Lisboa: Fundação Calouste Golbenkian, 2008, p. 87.

[7] CHKLÓVSKI, Victor. “A arte como procedimento”. In: TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura: textos dos formalistas russos. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 105.

 

[8] Sinônimo de narração.

[9] WB. “Fronteiras: nos entrecéus da linguagem”. Revista Humboldt (uma publicação do Goethe-Institut). Disponível em http://www.goethe.de/wis/bib/prj/hmb/the/das/pt3286146.htm. Acesso em 09/01/2017.

[10] WB. Mar Paraguayo. Bueno Aires: Tsé-tsé, 2005, p. 23.

[11] WB, 2005, p. 59

[12] ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[13] WB, “Mascate”.

[14] WB, “Mascate”.

[15] WB, “Mascate”.

[16] AGAMBEN, Giorgio. O estado de exceção. São Paulo: Ed. Boitempo, 2003, pp. 9-49.

[17] Traduzido do inglês: “In our enthusiasm for specification we have ignored questions of the interconnection and interdependence of various areas of culture; we have frequently forgotten that the boundaries of these areas are not absolute, that in various epochs they have been drawn in various ways; and we have not taken into account that the most intense and productive life of culture takes place on the boundaries of its individual areas and not in places where these areas have become enclosed in their own specificity.” (BAKHTIN, Mikhail. Speech Genres & other late essays. Austin (Texas): University of Texas Press, p. 02).

 

[18] “Faissal Mohamed el-Rachid”, “Don Faruk Mohamed”, “Abdo Munir Mohmed”, “Abdala Munir Faissal Mohamed el-Rachid”, “Saade Abdula Mohamed el-Rachid, “Don Chono Quincallero”, “Mohamed Munir”, “Abdul Abdulla El-Rachid”, “Faissal Mohamed Muhamar Bin el-Rachid”, “Mohamed Munir Abdala Zarif el-Rachid”, “Mohamed Bashir Faissal el-Rachid, “Mohamed Faissal Ahmed el-Rachid”, “Mohamed Munir Al-ahad Faissal el-Rachid”, “Mohamed Aharam Munir Saade Kaluf el-Rachid”.

[19] WB, “Mascate”.

[20] WB, “Mascate”.

[21] Para um estudo detalhado das ressonâncias da Bíblia Sagrada na literatura ver FRYE, Northrop. O código dos códigos: a bíblia e a literatura. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004. Veja principalmente o capítulo 6, “Metáforas II”, no qual o crítico canadense aborda a questão da prostituição, pp. 172-205.

[22] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Ed. Boitempo, 2007.

[23] AGAMBEN, Giorgio. Idem, p. 66.

[24] “Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue.” ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 20ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 39.

[25] WB, “Mascate”.

[26] YOUNG, Robert J.C. O desejo colonial: São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 7.

[27] Uso a expressão no sentido que lhe conferiu o historiador Eric J. Hobsbawm em A era dos impérios: 1875 – 1914, qual seja, o período que compreende a expansão imperialista de grandes potências europeias, particularmente Inglaterra e França, por territórios do terceiro mundo, sobretudo da África e da Ásia, durante o século XIX.

[28] PAZ, Octavio. O labirinto da solidão. São Paulo: Cosac & Naify, 2014, pp. 65-87.

[29] Jean-Léon Gérôme foi um pintor e escultor francês, cuja predileção por temas orientais o tornou mundialmente famoso. Não se pode dizer que o “orientalismo” tenha constituído uma escola de pintura, seria mais correto dizer que se trata de um tema bastante recorrente na iconografia ocidental, sobretudo no século XIX, época em que a pintura contendo temas orientais fez as vezes da propaganda do império (França, sobretudo), para incentivar campanhas rumo ao Oriente. Said, em Orientalismo, não dedica maiores comentários à iconografia de teor orientalista, prefere se deter particularmente na Literatura. Mesmo assim é possível encontrar informações esporádicas pelo livro. Veja-se, por exemplo, os comentários às páginas 172 e 173. SAID, Edward. Orientalismo. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[30] WB, “Mascate”.

[31] WB, “Mascate”.

[32] WB, “Mascate”.

[33] 30 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. 6ed. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 361. Grifos meus.

[34] BAKHTIN. Idem, 2010, p. 162.

[35] WB. “Mascate”.

[36] O termo “in-between” é um neologismo de Homi K. Bhabha, usado para descrever o espaço colonial, no qual a língua-cultura do colonizador se mescla com a do colonizado ou vice-versa. A expressão ganhou notável aceitação mundo afora, embora com ligeiras divergências em relação aos usos originais do termo pelo seu criador. Entre nós, possivelmente tenha sido Silviano Santiago o primeiro a utilizar o termo no âmbito da crítica literária para descrever a complexa interação cultural/linguística presente na literatura latino-americana. Na mesma esteira, são igualmente importantes os trabalhos de Marli Fantini, em especial o seu Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens; o livro pode ser compreendido como uma das possíveis aplicações deste e outros conceitos da crítica pós-colonial no contexto da Literatura Brasileira.

[37] SCHÜLER, Donald. “Do homem dicotômico ao homem híbrido.” In: BERND, Zilá e DE GRADIS, Rita (orgs.). Imprevisíveis Américas – questões de hibridação cultural nas Américas. Porto Alegre: Sagra – DC Luzzatto – ABECON. 1995, p.11.

[38] BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004; SAPIR, Edward. A linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1980. HUMBOLDT, Wilhelm von. On Language: On the Diversity of Human Language Construction and its Influence on the Mental Development of the Human Species. 2ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

[39] SPIVAK, Gayatri Chakravorsty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

[40] GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 14ed. Petrópolis (RJ):  Vozes, 2014.

[41] WALTER, Roland. “Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica.”. In: SEDYCIAS, João (org.). Repensando a teoria literária contemporânea. Recife: Ed. UFPE, 2015, p. 631.

[42] CHEVALIER, Jean e GREERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 17ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012, p. 592.

[43] WB, 2005, p. 73. Observa-se que ela resolve entregar os pontos na última frase da novela, quando se compara com o mar. Como quem respondesse à pergunta: “e quanto ao Mar Paraguayo, onde encontrá-lo em sua narrativa?, ao que a narradora emenda “Mi mar soy yo, Ĭyá”: meu mar sou eu, a “divindade aquática dos guaranis, duende da água.” A passagem, além de reafirmar a estatuto inventivo da narrativa, ainda parece ecoar Gustave Flaubert, que, quando interrogado por juízes franceses a respeito de quem teria sido o modelo no qual se baseou para compor Madame Bovary, teria respondido: “Madame Bovary sou eu.”.

[44] Diz a Marafona, à página 42: “Todavia aqui estoy, e acá es el mundo possible”.  O conceito de mundo possível é antigo nos debates da Teoria Literária. Ganhou destaque nas últimas décadas pelas mãos de Lubomir Dolezel, notadamente no livro Heterocosmica. Ficción y mundos Possibles. Madrid: Arco/Libros, S.L. 1999. Dolezel, que é herdeiro da tradição advinda do Círculo Linguístico de Praga, atualmente é professor emérito da Universidade de Toronto (CA); sua abordagem do conceito de “mundo possível” é genealógica, ele parte das primeiras formulações apresentadas na filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e segue até suas manifestações mais recentes na narrativa pós-moderna.

[45] DOLEZEL, Lubomir. Heterocosmica. Ficción y Mundos Possibles. Madrid: Arco/Libros, S.L, 1999. pp. 264-265.

[46] Na sua aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Collège de France, ocorrida em 7 de janeiro de 1977, Roland Barthes coloca: “A literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso.” (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, p. 18.)

[47] ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Veja-se particularmente o 4º capítulo denominado “Bosques Possíveis”, pp. 81-102.

[48] CHAMOISEAU, Patrick, CONFIANT, Raphaël. Lettres créoles. Paris: Gallimard, 1999, p. 71 (Mosaïque mouvante, no original)

[49] CHAMOISEAU, Patrick, CONFIANT, Raphaël. Idem, p. 64 (Fronteires vaporeuses, no original)

[50] LOTMAN, Iúri, 1990, p. 20 apud MACHADO, Irene (org.). Semiótica da Cultura e semiosfera. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007, p. 3.

[51] LOTMAN, Iúri. “O conceito de fronteira”. In: BORGES FILHO, Ozíris. O espaço literário – textos teóricos. Ribeirão Preto: Ribeirão, pp. 248.

[52] ECO, Umberto. “Preface”. In: LOTMAN, Iúri. Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990, p. XII.

[53] LOTMAN, Iúri. “O conceito de fronteira”. In: BORGES FILHO, Ozires (Org.). O espaço literário. Rio de Janeiro: Ed. Ribeirão, 2016, pp. 259-279.

[54] LOTMAN, Iúri. “O conceito de fronteira”. In: BORGES FILHO, Ozíris. O espaço literário – textos teóricos. Ribeirão Preto: Ed. Ribeirão, 2016, p. 255.

[55] FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2ed. São Paulo: Contexto, 2016.

[56] As línguas naturais como português, espanhol e guarani, para citar as mais recorrentes neste estudo, têm posição central na semiosfera, devido o fato de estarem presentes em quase todos os níveis da semiosfera e também pelo fato de um grande número de sistemas semióticos estarem alicerçados sobre elas (por exemplo, a literatura, o mito, o cinema, etc.). No princípio de sua teoria semiótica, Lotman operava com as noções de sistemas modelizantes primários e secundários; os primeiros seriam representados pelas línguas naturais, ao passo que os secundários eram concebidos como outros tipos de linguagens, como cinema, fotografia, moda etc. Acontece que Lotman, na medida em que desenvolvia sua teoria, foi deixando tal separação de lado, e o fato de dar a uma linguagem específica uma posição central em sua teoria parece não justificar o princípio interacionista da noção de semiosfera.

[57] BURKE, Peter.  Hibridismo Cultural. (4ª reimpressão). Porto Alegre: Unissinos, 2003, p. 72.

[58] LOTMAN, Iúri. La semiosfera I. Madrid: Ediciones Cátedra, 1996, p. 27.

[59] LOTMAN, Iúri. La semiosfera I. Madrid: Ediciones Cátedra, 1996, pp. 24-25. Na tradução espanhola: “el concepto de frontera es correlativo al de individualidade semiótica. En este sentido se puede decir que la semiosfera es una “persona semiótica””.

[60] TAWADA, Yoko apud PERLOFF, Marjorie. O gênio não original. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2016, p. 228.

[61] O plural latino de persona é personae, porém, no sentido de tornar esse termo mais palatável, resolvi pluralizá-lo seguindo o paradigma da Língua Portuguesa, então temos “personas”.

[62]ARAN, Pampa Olga. “O (im)possível diálogo Bakhtin-Lotman: para uma interpretação das culturas”. In: MACHADO, Irene (org.). Semiótica da cultura e semiosfera. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007, pp.145-155.

[63] TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtine: Le Principe Dialogique. Paris: Ed. Seuil, 1981.

[64] BHABHA, Homi K. O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2011, pp. 90-91. Grifos do autor.

[65] BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. 6ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010, p. 159.

[66] YOUNG, Robert J.C. O desejo colonial. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 27.

[67] YOUNG, idem, pp. 27-28.