Tradução comentada de três poemas de Shel Silverstein – Bruno Brandão Daniel

TRADUÇÃO COMENTADA DE TRÊS POEMAS DE SHEL SILVERSTEIN

 

Bruno Brandão Daniel*

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Shel Silverstein, além de autor de livros infantis, foi compositor, cartunista e roteirista. Nascido em Chicago, em 1930, filho de família judia, embarcou no mundo da poesia infantil estimulado por Ursula Nordstrom, editora da Harper & Row, vindo a desenvolver seu próprio estilo: uma linguagem bem próxima da oral, com a aplicação ocasional até de profanidade e gírias. Sua poesia remete muito à musicalidade das canções, o que inclusive o levou, posteriormente, a transformá-las em canções.

Para este trabalho foram traduzidos os poemas “The Loser” (O Perdedor), “The Invisible Boy” (O Menino Invisível) e “Eighteen Flavors” (Dezoito Sabores), que compõem a obra Where The Sidewalk Ends (2004) (Onde Termina a Calçada)Este livro de 1974 é uma coleção de poemas escritos e ilustrados pelo próprio autor, editado e publicado pela Harper and Row Publishers. Para este trabalho utilizamos a 40ª edição comemorativa como texto-fonte, de 2004, na qual mais doze poemas foram incluídos. Em 2007, uma pesquisa conduzida pela National Education Association (Associação Nacional de Educação, nos Estados Unidos) o incluiu no ranking dos 100 melhores livros para crianças1.

Até o momento da conclusão deste artigo era desconhecida qualquer tradução de Where the Sidewalk Ends publicada no Brasil, embora existam várias outras obras de Shel Silverstein já traduzidas para a língua portuguesa, como A Árvore Generosa  (traduzida por Fernando Sabino), Uma Girafa e Tanto (traduzida por Ivo Barroso), Leocádio – O leão que mandava bala (traduzida por Antonio Guimarães), Quem Quer Ser Este Rinoceronte, A parte que falta e sua sequência A parte que falta encontra o grande O, Fuja do Garambuja  (traduzidas por Alípio Correia de Franca Neto)todas publicadas pela editora Cosac Naify.

Em seu livro Descobrindo Crianças (1980), no qual faz um estudo sobre o crescimento infantil empregando métodos altamente originais e flexíveis, a autora Violet Oaklander menciona a obra ao comentar sobre o público da poesia infantil:

Poemas escritos por adultos para as crianças frequentemente atraem mais os próprios adultos do que as crianças. Não é fácil escrever coisas com as quais a criança possa estabelecer contato. Em certas ocasiões me deparo com um livro que aprecio muito, e tenho certeza que uma criança vai gostar dele tanto quanto eu, só que acabo descobrindo que estou enganada. Um livro que realmente atinge as crianças é Where the Sidewalk Ends (Onde Termina a Calçada), poemas e desenhos de Shel Silverstein. (OAKLANDER, 1980, p.123)

No caso dos desafios para o tradutor de poesia infantil, eles vão muito além das questões semânticas habituais. Primeiramente, a tradução de poesia já é um capítulo à parte, em razão de características bem particulares do texto, como uso de rimas, aliteração, associações e jogos de palavras, formato do texto fora do padrão, bem como sua função focada mais em entreter do que em informar ou persuadir. E, por sua vez, a literatura infantil envolve outros fatores tais como a adaptação ao contexto cultural, manipulação, características da oralidade e o público duplo, dado o fato de, além das crianças, os adultos também terem acesso ao texto.

Na obra A Tradução Vivida, Paulo Rónai (2012, p.21) ressalta o fato de as palavras não terem sentido de maneira isolada, sendo importante compreender o texto, ou seja, esse conjunto constrói o sentido da obra. Traduzir seria, então, trazer o sentido do enunciando da língua-fonte para a língua alvo. Sobre a particularidade da tradução de poesia, Mário Laranjeira, em Poética da Tradução (2003, p.11), fala da complexidade da tradução poética intimidar o tradutor, fazendo com que ele se afaste dela, temendo não estar à altura de tal responsabilidade.

Uma das maiores dificuldades na tradução poética é a preservação da rima. Em línguas tais como a inglesa (de partida) e a portuguesa (de chegada), é conhecido que várias estruturas e vocábulos de uma dificilmente encontram apenso na outra, tampouco relação de rimas. Por conta desta complexidade do texto-fonte, o tradutor pode ser levado a ter que fazer alterações em alguns elementos, vindo a ser difícil manter o significado da palavra e da rima.

Sendo assim, o tradutor pode realizar tanto reproduções dos poemas em prosa, numa tradução mais objetivada a fazer com que os leitores compreendam o texto propriamente dito, quanto adaptações ou recriações do texto-fonte, que buscam transmitir as ideias e/ou a sonoridade do texto, através de ritmo e/ou rima. Ao trabalhar com poesia, caberá ao tradutor fazer esta escolha, ou seja, se vai manter-se dentro das limitações do texto-fonte ou se, de certa forma, buscará recriar as estruturas no texto-alvo.

Paulo Henriques Britto, em A Tradução Literária, sugere a recriação do texto, já pelo fato de a tradução em si ser um trabalho criativo, não sendo verdade que as traduções ou bem são belas ou bem são fieis, sendo beleza e fidelidade compatíveis (BRITTO, 2012, p. 18). Neste ponto entra a questão da domesticação e da estrangeirização, conforme Venutti3, em razão de que, uma tradução que prioriza o público-alvo poderá trazer o apagamento de aspectos culturais presentes no texto-fonte que são relevantes para o autor e seu público em seu idioma de partida.

Este tipo de decisão do tradutor chega a se tornar um grande desafio e, ao nosso ver, vai depender do projeto de tradução. Em nossa concepção, o projeto de tradução é definido pelo tipo de texto-fonte e pelas orientações do editor, revisor ou solicitante da tradução, nas quais muitas vezes já há algumas limitações para a tradução, como a de fazer para um público leigo sobre o assunto ou então um texto que terá paratexto – figuras, ilustrações, gráficos, etc.

Sobre este desafio/decisão do tradutor, reproduzimos as palavras de Schleiermacher que resumem muito bem a situação:

Mas, agora, por que caminhos deve enveredar o verdadeiro tradutor que queira efetivamente aproximar estas duas pessoas tão separadas, seu escritor e seu leitor, e propiciar a este último, sem obrigá-lo a sair do círculo de sua língua materna, uma compreensão correta e completa e o gozo do primeiro? No meu juízo, há apenas dois. Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro. Ambos os caminhos são tão completamente diferentes que um deles tem que ser seguido com o maior rigor, pois, qualquer mistura produz necessariamente um resultado muito insatisfatório, e é de temer-se que o encontro do escritor e do leitor falhe inteiramente. A diferença entre ambos os métodos, onde reside a sua relação mútua, será mostrada a seguir. Porque, no primeiro caso, o tradutor se esforça por substituir com seu trabalho o conhecimento da língua original, do qual carece o leitor. A mesma imagem, a mesma impressão que ele, com seu conhecimento da língua original, alcançou da obra, agora busca comunicá-la aos leitores, movendo-os, por conseguinte, até o lugar que ele ocupa e que propriamente lhe é estranho. Mas, se a tradução quer fazer, por exemplo, que um autor latino fale como, se fosse alemão, haveria falado e escrito para alemães, então, não apenas o autor move-se até o lugar do tradutor, pois, tampouco para este o autor fala em alemão, senão latim; antes coloca-o diretamente no mundo dos leitores alemães e o faz semelhante a eles; e este é precisamente o outro caso. ”

(SCHLEIERMACHER 1813 in HEIDERMANN 2010 P.57-59)

Estas escolhas refletem-se nas traduções de acordo com seu tipo. Num texto científico, por exemplo, sobre Astronomia, não se faz necessário esclarecer vários termos e tentar até traduzi-los à língua-alvo, já que os leitores estão habituados com os mesmos. Uma tradução pode inclusive levar à uma estranheza que não é o objetivo daquele texto. Por outro lado, a tradução de uma notícia de sobre um acidente no balneário de Sharm el-Sheikh, demande que informemos ao público geral brasileiro que trata-se de uma famosa cidade turística no Egito, justamente por não conhecerem tão bem o local.

Por sua vez, na tradução de literatura infantil, existem características que devem ser levadas em conta na tradução. Conforme Cecilia Avstad, em seu artigo “Children’s Literature and Translation”(2010)questões como o contexto cultural e sua adaptação a ele, fatores relacionados à ideologia, moral, cultura, formação dos leitores, leitura por parte dos pais e mestres, que muitas vezes selecionam os livros para as crianças, as imagens e ilustrações, a leitura em voz alta, entre outros.

Os poemas de Shel Silverstein apresentam um aspecto muito forte da oralidade, pois muitas vezes as rimas não estão ligadas pela ortografia da palavra, estando puramente dependentes pela sonoridade. Além disso, a própria cadência dos versos transmite várias ideias, tais como a de movimento.

No primeiro poema traduzido para o português como “O Perdedor” (The Loser), buscou-se reproduzir tanto a sonoridade quanto a rede de significados do texto-fonte. Está estruturado em duas estrofes, tendo a primeira seis versos e a segunda onze versos, que contam a história de um menino cuja mãe lhe havia dito que um dia perderia a cabeça, o que de fato acaba acontecendo. Entretanto, na tentativa de procurá-la, este menino está impossibilitado de fazê-lo em razão de seus olhos, boca, ouvidos e até o cérebro estarem nela. Por fim, desiste de sua incursão e acaba sentando-se apoiado numa pedra, esta vindo a ser de fato sua cabeça. O que ainda ajuda o leitor a entender a história é a ilustração do próprio autor, que mostra o menino e a sina de sua cabeça.

 

THE LOSERMama said I’d lose my head

If it wasn’t fastened on.

Today I guess it wasn’t

‘Cause while playing with my cousin

It fell off and rolled away

And now it’s gone.

 

 

And I can’t look for it

‘Cause my eyes are in it,

And I can’t call to it

‘Cause my mouth is on it

(Couldn’t hear me anyway

‘Cause my ears are on it),

Can’t even think about it,

‘Cause my brain is in it.

So I guess I’ll sit down

On this rock

And rest for just a minute…

O PERDEDORMamãe disse que eu perderia minha cabeça
Se não estivesse presa em mim.
Hoje acho que não estava
Pois enquanto com meu primo eu brincava
Ela caiu e saiu rolando
E agora ela se foi… assim.

 

 

E não posso procurá-la
Pois meus olhos estão nela,
E não posso chamá-la,
Pois minha boca está nela,
(não iria ouvir-me de qualquer maneira
Pois meus ouvidos estão nela),
Não posso nem pensar nela,
Pois meu cérebro está nela.
Então acho que vou me sentar
Nesta pedra

E descansar só por um minuto…

 

Em sua primeira estrofe, contendo 6 versos, o segundo rima com o último e o terceiro verso rima com o quarto. A fim de transmitir essa estrutura para a língua portuguesa, foi feita a rima de mim (segundo verso), enfatizando onde a cabeça estava presa com assim (último verso), sendo esta última escolha para enfatizar o movimento da cabeça ter saído rolando.

Para o terceiro e o quarto versos, a rima foi feita utilizando-se os verbos estava (terceiro verso) e brincava (quarto verso). Neste caso, os elementos do verso foram invertidos para criar-se este jogo de palavras – possível de ser feito na  língua portuguesa e sem perder o sentido. A tradução literal do quarto verso seria “Pois enquanto eu brincava com meu primo” que foi transposta para “Pois enquanto com meu primo eu brincava”. Aqui optou-se por utilizar o pronome pessoal da primeira pessoa do singular “eu”,  já que a utilização única da palavra “brincava” poderia denotar também o pronome pessoal para terceira pessoa “ele”, que aqui levaria a uma referência indevida ao primo.

Na segunda e última estrofe, sete versos terminam utilizando o pronome “it”, que no contexto foi substituído por “nela”, já que referiam-se aos órgãos que estão presos na cabeça perdida, neste caso, os olhos, a boca, os ouvidos e o cérebro. Estas soluções foram mais pautadas na sonoridade das rimas do que na versificação, que para este trabalho descartamos, em virtude de nosso objetivo primaz de prezar a natureza lúdica do texto e sua forte característica oral.

O segundo poema, traduzido para o português como “O Menino Invisível” (The Invisible Boy), está estruturado em uma única estrofe de seis versos. Trata-se da história de um menino invisível e sua vida permeada de coisas tão invisíveis quanto ele: casa, um pedaço de queijo com o qual alimenta um rato também invisível, sendo que no final o autor exalta a beleza que esta cena deve ser, bem como convida o leitor a reproduzir, ou seja, desenhar esta cena ou a imagem que ela retrata.

 

INVISIBLE BOYAnd here we see the invisible boy

In his lovely invisible house,

Feeding a piece of invisible cheese

To a little invisible mouse.

Oh, what a beautiful picture to see!

Will you draw an invisible picture for me?MENINO INVISÍVELE aqui vemos o menino invisível

Em sua amável casa invisível,

Com um queijo invisível,

Alimenta um ratinho invisível.

Oh, que imagem linda de se ver!
Desenhe para mim uma imagem invisível?

 

A tentativa de reproduzir a sonoridade que o autor traz neste poema, sendo esta baseada principalmente nas rimas presentes no final de cada verso, constitui-se um dos maiores desafios para o tradutor, em razão de a tradução simplesmente direta dos versos para a língua portuguesa levar a termos a palavra “invisível” no final de cada um deles.

Entretanto, tal fato, apesar de parecer prejudicial a princípio, pode ser usado a favor do tradutor que, neste caso, pode optar – como foi feito neste trabalho – pela repetição da palavra “invisível” ao longo de cada verso do poema, de modo a usar isto como um artifício artístico a fim de cumprir um dos objetivos da poesia em si, ou seja, o de entreter o leitor.

Desta forma, podemos ver na tradução para a língua portuguesa que, apesar de ter havido o apagamento das rimas do texto-fonte, a característica “invisível” não só pertencente ao menino como personagem principal, como também a todos os outros elementos de seu universo, está em evidência no texto-alvo.

Com o objetivo de também de permitir que a palavra “invisível” fosse propositadamente colocada no final de cada verso, foi necessária uma alteração da ordem dos termos no terceiro e no quarto verso. A tradução literal do terceiro ficaria longa demais e o quarto sairia daquela formatação textual. Desta forma, sem abandonar o significado, o trecho Feeding a piece of invisible cheese/To a little invisible mouse transformou-se em: Com um queijo invisível/Alimenta um ratinho invisível. Como pode ser visto, não houve quaisquer mudanças ou desvios à letra e a forma permaneceu.

Quanto à ilustração, este poema traz somente uma caixa vazia, de modo a delimitar todo o contexto da cena. Mesmo diante desta simplicidade, é possível ao leitor inferir e até imaginar toda a descrição feita ao longo dos versos, o que pode ser feito ao preencher o espaço situado na parte superior do poema.

Já a tradução do terceiro poema, intitulado como “Dezoito Sabores” (Eighteen Flavors), apresenta ao tradutor um desafio ainda maior, principalmente em virtude de seu vocabulário. Constituído de uma única estrofe com 12 versos, enumera dezoito sabores de sorvete, ricamente dispostos numa casquinha que é considerada a mais alta da cidade, embora esta história tenha um triste fim, com todo o sorvete espalhado pelo chão, provavelmente por algum acontecimento que permanece oculto no poema.

 

EIGHTEEN FLAVORSEighteen luscious, scrumptious flavors –

Chocolate, lime and cherry,

Coffee, pumpkin, fudge-banana,

Caramel cream and boysenberry,

Rocky road and toasted almond,

Butterscotch, vanilla dip,

Butter-brickle, apple ripple,

Coconut and mocha chip,

Brandy peach and lemon custard,

Each scoop lovely, smooth and round,

Tallest ice-cream cone in town,

Lying there (sniff) on the ground.DEZOITO SABORES

Dezoito sabores deliciosos, gostosos –

Chocolate, limão e cereja,
Café, doce de banana, de abóbora,
Creme de caramelo e frambo-amora,
Chocolate com nozes, amêndoas tostadas,
Manteiga, calda de baunilha,
Bala toffee, maçãs flocadas,
Coco e café com chocolate,

Licor de pêssego e pudim de limão,
Cada bola linda, perfeita e redonda,
A casquinha mais alta da cidade,
Espalhada (sniff) pelo chão.

 

 

Podemos citar como exemplo o sabor rocky road, que trata-se de um sorvete à base de chocolate, com amêndoas, nozes e marshmallow. Realizar esta descrição num verso o alongaria em demasiado, inabilitando a forma poética encontrada nesta obra. Por isso, optamos por traduzir o sabor do sorvete como chocolate com nozes, principalmente em virtude de o próximo sabor ser toasted almond, que está no mesmo verso e foi traduzido como amêndoas tostadas. Tendo os dois sorvetes um ingrediente em comum, preferimos balanceá-los, mantendo-o no segundo sabor e ressaltando outra característica do primeiro.

Outro verso que apresenta problemas, neste caso, além da fronteira semântica, é o terceiro, onde lemos Coffee, pumpkin, fugdge-banana. Aqui o que mais causaria estranheza ao leitor brasileiro de língua portuguesa seria um sorvete sabor abóbora, em razão de não ser tão comum no país. Tal estranhamento não é proposital, pois nos Estados Unidos encontramos não só o sorvete de abóbora, como muitos produtos feitos com esse ingrediente. Para não abandonar a matriz semântica que neste caso é o sabor de sorvete, tema do próprio poema, a opção foi a de traduzir como doce de abóbora.  Já para o sabor fudge-banana, este é algo parecido também com um doce de banana ou bananada, sendo esta a opção a escolhida.

Desta forma, de modo a não alongar demais o verso, a escolha foi traduzi-lo como Café, doce de banana, de abóbora, incorporando os elementos similares entre o sabor de abóbora e de banana no enunciado. Além de não causar a mesma estranheza, esta escolha aproximou ainda mais os sabores, unindo-os pelo que têm em comum, tal como fizemos anteriormente para rocky road e toasted almond. No caso do sabor butter-brickle, preferimos a equivalência funcional através da tradução por bala toffee, um tipo de confeito bem conhecido, ao qual fizemos esta ligação pelo significado.

As rimas neste poema apresentam esquemas ainda mais difíceis para o tradutor do que nos exemplos anteriores. Mesmo não conseguindo reproduzir as mesmas escolhas do autor, foi possível criar uma ressonância em alguns versos, como, por exemplo,  deliciosos, gostosos no primeiro verso; abóbora e frambo-amora, respectivamente no terceiro e quarto versos; amêndoas tostadas maçãs flocadas, respectivamente no quinto e sétimo versos; limão e  chão, respectivamente no nono e décimo-segundo versos.

Apesar do distanciamento dos versos, tal como pode ser visto por estes exemplos, foi fator limitador da ressonância, embora acrescentem um ritmo à leitura em voz alta. A oralidade é uma das características da literatura infantil, já que grande parte dela é feita para ser lida pelos pais e parentes às crianças. O som, o ritmo, as rimas, o nonsense e jogo de palavras fazem parte das características mais comuns nas histórias para crianças, que forçam os tradutores a escolherem entre som e conteúdo (AVSTAD, 2010, p. 34). Os poemas de Silverstein, tanto os escolhidos para este artigo quanto os demais da obra Where The Sidewalk Ends, apresentam todas estas características, como por exemplo, no primeiro poema, onde vemos um menino sentado sobre sua cabeça, que não pode procura-la em virtude de seus órgãos estarem alocados nela. Esta questão do nonsense para o mundo infantil é algo que já pertence a ele, não necessitando de mais explicações.

Grande parte dos dezoito sabores apresentados no poema é desconhecida de grande parte do público-alvo, ou seja, os leitores brasileiros, embora sejam muito comuns nos Estados Unidos. Além disso, eles não possuem similares que permitissem, neste caso, a troca por um encontrado no Brasil, promovendo a fluidez da tradução. Desta forma, optou-se por descrever, mesmo que brevemente, os componentes principais de cada sabor, quando esta alternativa fosse possível, muito embora na literatura infantil seja comum vermos exemplos de trabalhos que seguiram por este rumo. Poderíamos utilizar os sabores napolitano, brigadeiro, flocos, tão comuns no Brasil, porém, como já esclarecemos anteriormente, nosso objetivo era, em virtude do fim científico deste texto, buscar manter as características do autor.

Estas traduções priorizaram a estrangeirização, ou seja, o encontro do leitor com o autor e seu universo, embora seja comum encontrarmos exemplos de textos domesticados, quer dizer, quando ele foi adaptado ao público-alvo. Citamos aqui um exemplo da obra O Pequeno Príncipe. Na 53ª edição da tradução de Dom Marcos Barbosa, publicada em 2015, vemos na página 13:

Se dizemos às pessoas grandes: “Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado…”, elas não conseguem, de modo algum, fazer uma ideia da casa. É preciso dizer-lhes: “Vi uma casa de seiscentos mil reais.” Então elas exclamam: “Que beleza!”

(SAINT-EXUPÉRY, 2015. p. 13 – grifo nosso)

Neste exemplo, o trecho destacado é a tradução de cent mil francs, ou cem mil francos. A reação ao valor da casa e até o próprio contexto denotam que se trata de um imóvel de alto valor. Outros tradutores – e está também é a nossa escolha – preferiram por traduzir simplesmente como “Vi uma casa que vale cem mil francos” (SAINT-EXUPERY, 2015, na tradução de Herculano Villas-Boas, p.32) e da mesma maneira na tradução alemã de Grete e Josef Leitgeb (SAINT-EXUPERY, 2014, p.18):  “Ich haben ein Haus gesehen, das hunderttausend Franken wert ist”. Mesmo atualmente sem a utilização do franco francês, a criança aqui pode, se desejar, procurar sobre a moeda, conversar com o pai ou professor ou ainda, simplesmente ignorar o nome da moeda, porém no contexto, inferir que se trata de dinheiro, já que denota o valor da casa e a própria reação seguinte mostra isso.

O que buscamos com a tradução dos poemas de Shel Silverstein, além de utilizá-los como exemplos embora breves, porém significativos, foi apresentar as prováveis soluções encontradas buscando não distanciarmos do contexto do texto-fonte. Como no exemplo do terceiro poema (Dezoito Sabores), apesar de alguns sabores terem sido explicitados, não abandonamos nem o contexto nem seus elementos.

A questão aqui é buscar apresentar uma equivalência funcional, uma similaridade na língua alvo quando não há um vocábulo direto, que também faça com que seja reproduzido um efeito bem próximo ao do texto-fonte, mesmo em uma audiência de língua diferente. Para explicar sobre esta equivalência, utilizamos as palavras de Umberto Eco, em sua obra Quase a mesma coisa:

Muitos autores, em vez de equivalência de significado, falam de equivalência funcional ou de skopos theory: uma tradução (sobretudo no caso de textos com finalidade estética) deve produzir o mesmo efeito que o original visava. Neste caso, fala-se de igualdade do valor de troca, que se torna uma entidade negociável (Kenny 1998:78) (ECO, 2014, p. 92 – grifos do autor).

Ao tradutor de poesia infantil caberá, a priori,definir as estratégias a serem utilizadas em seu trabalhoestando tanto atento às características deste tipo de literatura quanto aos caminhos e decisões tomadas por ele próprio, como a de reproduzir um texto mais voltado à realidade do público-alvo, ou tradução domesticadora. No terceiro poema de Shel Silverstein, poderíamos ter substituído os sabores dos sorvetes por outros dentro da realidade brasileira, que cumpririam a harmonia textual inicial de dezoito sabores espalhados pelo chão, embora houvesse, com esta decisão, a perda de ingredientes que fazem parte da cultura de partida, a cultura do autor, limitando uma das vantagens advindas da tradução, que é a de aproximar culturas, nem que seja por suas diferenças, mas pelo simples fato do acesso a elas.

 

NOTAS:

1. A lista completa pode ser encontrada no seguinte endereço eletrônico: http://www.nea.org/grants/teachers-top-100-books-for-children.html Acessado em 01/122015.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

AVSTAD, Cecilia. Translating Children’s Literature. IN: Gambier, Yves & Doorslaer, Luc Van. (Orgs.) Handbook of Translation Studies. Vol. I. Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., 2010.

BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Tradução de Eliana Aguiar. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

HEIDERMANN, Werner (ed.). Clássicos da Teoria da Tradução. Vol. 1: Alemão/Português. 2a. ed. revisada e ampliada. Florianópolis: UFSC, 2010.

LARANJEIRA, Mário. Poética da Tradução. 2.ed. São Paulo: Editora da USP, 2003.

OAKLANDER, Violet. Descobrindo Crianças. Abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. Tradução de George Schlesinger. 15.ed.  São Paulo: Summus Editoral, 1980.

RÓNAI, Paulo. A Tradução Vivida. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

SAINT-EXUPERY, Antoine de. Der Kleine Prinz. Originalübersetzung von Grete um Josef Leitgeb. Düsseldorf: Karl Rauch, 2014.

________________. O Pequeno Príncipe. Tradução de Dom Marcos Barbosa. 53ª ed. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2015.

________________. O Pequeno Príncipe. Tradução de Herculano Villas-Boas. São Paulo: Martin Claret, 2015.

SILVERSTEIN, Shel. Where The Sidewalk Ends. The poems and drawings of Shel Silverstein. 40th edition. New York: Harper and Row, 2004.

 

* Mestrando da Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC).