Elogio ao Bocejo – Ivan Conte

Elogio ao Bocejo

 

*Ivan Conte

 

Certa vez, fiz uma viagem, e como muitos de vocês que aguardam um avião, uma chalana ou mesmo uma charrete, e este meio de locomoção não chegara no horário previsto, e então passam dias acordados pois não encontram um lugar para dormir tranquilo, e de repente, embora tenham ideias borbulhantes, dormir se torna não mais trivial, mas o fundamental para a vida, mas por alguma preocupação não consegue mais o travesseiro atingir. Contudo após a tempestade, voltas a dormir feito um bebê urso, e na temporada esqueces a memória, que um dia lhe fora fundamental: “dormir”. Desvaloriza novamente dizendo “são assuntos do corpo, não do espírito” e volta a caluniar os verbos dormir, sonhar e descansar – e só os usa com ironia. Quantas vezes lemos “tal coisa me dera sono” num sentido de desvalorizar ou desprestigiar algo ou alguém, ou então “você está dormindo!” para chamar a atenção de alguém desatento, ou ainda, “desculpe, não poderei ir, precisarei descansar…” como se a culpa de não ir ao encontro não fosse do “eu”, mas da “necessidade de descansar” e o pobre verbo “descansar”, pensa que não sofres? Mas por que afinal o sono é por nós tão caluniado? Pensas que o sono não te ouve? Nossa passagem na Terra, é metade dormindo, metade despertos – e poderia sim utilizar a ironia, de que muitos despertos continuam a dormir, mas que realmente sabemos sobre dormir? Dormir não é estar no mundo a vegetar, aliás, pediria perdão aos vegetais por minha blasfêmia. Tens mesmo certeza que é na rua que mora a revolução? Havemos de respeitar mais os verbos sonhar e dormir, estamos realizando ações importantes quando em repouso, conhecemos apenas um aperitivo que os sonhos nos trazem – e quem lhe diz que não se movimentas, que livros não lê, e não interages com novos seres ao dormir, que não aprende novos idiomas, que não levita espiritualmente? O urso não por acaso hiberna por seis meses durante o Sol da Meia-Noite? E algumas formigas, não se escondem no inverno e colhem açúcar no verão? Teriam elas lido as parábolas dos dias de fartura, e os dias de vacas magras? Pensas que abelhas não tiram cochilos? Quem lhe dissera que tua vida desperto tem mais aventuras que teu eu dormindo? Pensas que o mundo da noite em que dormes é mero escravo de teu dia e os eventos de teu dia é que fazem os teus sonhos da noite? Será que não se cobre de certezas? E que o teu dormir é mero recarregar de pilhas? É assim com tanto desvalor que trata metade preciosa de teu ciclo? Dificilmente dormir te entrega em pedaços, mas muitas vezes o mundo em que vivemos acordados nos deixa caindo de sono. Já pensaste que a missão do teu dia é preparar o da noite? O que acontece nos universos da noite que voltas mais altivo? Este texto foi pensado como pílula natural para insônia, não uma apologia simplesmente ao que é muito condenado numa sociedade industrial, a “preguiça” – mas em emergência, à contravento, perceptivos de que estes verbos, tal qual seres à margem, clamam por maior consideração.

 

Elogio ao Yawn

 

Raro é despertar contusão por deitar em ninho quente e macio. Comum é brutos quebrarem pequeninos ossos por realizarem desafiadores movimentos que ferem a voz invisível do corpo. Ela que matreira e zelosa velhinha, bem avisara que iria engraçadamente valentão, vala beijar. Golias, hinea tal qual hiena, eis no colosso ávida derretida manteiga, por mera fagulha de dor. Mesmo imortais gregos heróis desmoronam, por simples delicados calcanhares. Diferente seria, evitássemos tornar dias de dormir, dias de correr.

(A estátua do discóbolo não nos conta, não só, o disco partirá)

Amar o esporte, sem esquecer a beleza atlética, de bocejar espontâneo. Aventureiros, inquietantes, ao ver esfera rolante com ócio no ar deslizar, sem rumo, aspirada pela chuva de folhas, sob as carícias do vento nos meses de outono, simplesmente formosa ela, bastou na terra pingar e na água emergir, logo espíritos humanos, nela intervir. Deixar esfera, rumo natural seguir, coisa impensada é, blasfêmia tornou, rotação de esferas, imã da inquietude.

(Creche visitei, bolhas de sabão ao ar, crianças em frenesi)

Talvez este querer, dar rumo as coisas, simplesmente alterar a direção, tocar, similar a felinos na infância, serelepes sem explicação, ratos mil veem em fio de tricô a balançar. Diriam, a vida é fazê-la rolar para cá e para lá, esfera é pontinho (penso, logo miau) e atrás desse pontinho a alma do humano, quando felinos e lobos comungam, (faz au-au) cada qual um pontinho também, todos brincam, atrás da não-vida do ponto. Será que haveria não-vida na Terra? Mas a teimosa esfera rolante não pensa? Se ela não pensa por que ela é tão perseguida? Com uma raquete, com a mão nua, na nuca, com a mão na luva, na cuca, com a luva na mão, sem cuca, sem mão e sem luva, com o cachimbo e com o que não é cachimbo, na arena repleta de circo e pão. Diriam que com qualquer coisa possível de tocar e malabares na esfera rolante teimosa causar…

(Aconteceu num jogo entre filósofos gregos e alemães)

Olímpicos jogos assistia, na teletela avistei pirata transmissão, um Circo Voador, jogos filosóficos contemplei, numa emoção sonâmbula oriental juiz soara antimusical apito. Verdadeira ação, após injusta excomunhão de Nietzsche: esfera rolante, destino ganhou, fez-se Eureca, bocejo brotou.

(Diriam as antigas escrituras de religiosidade industrial que “o trabalho dignifica o homem” quando na antiguidade o indignificava)

Ah despertador, tu despertas a dor, quero é ti espreguiçador, que ex-preguiça a dor e atrapalha(balha)-dor… O mundo inteiro, num infinito abraço, espreguiçante, (li)in-(qui)digni-(di)fica-dor: anarquia com amor.

Poético é o ato de bocejar, que como música nos contagia, no instante que alguém com sono boceja, encantados, magnéticos bocejamos também – fisgados por um sono restaurador, neste vaivém do “ai que preguiça!” da linguagem universal, silenciosa e terapêutica, e se quantos metros tem um bocejo, não sei, não contemos, mas saibamos, segredos mágicos contém.

(Do flerte, de sábio do sono, Zaratustra esquivou, mas para seus caminhos riso somou)

Três vezes nostálgico, na cama mudar de lado, encontrar ponto g, do dormir mais sossegante, esticar as canelas demoradamente, no limite do acaso, como de quem dormiu dúzia de horas, e ainda sonha bater todos os recordes, do descansar radical, adrenalina que repousa em nirvana surreal.

(Abre-te página, fecha-te olhos!)

Ovelhinhas conto, nova visita de Eureca, livro do sono, pílulas de hieróglifos como remédios soníferos… E me digas qual dos livros é chá de camomila, pois de café e absinto minhas estantes flamam. Invisíveis saltos com canetas tinteiros, da imaginação atletas escritores.

(Ah bocejar, se o mundo pudesse ser congelado num instante de bocejo de bebê, eternamente felizes seríamos)

 

 

escrito num dia de sono no inverno de 2015

(elogiando às margens do esporte

buscando o equilíbrio

dias após a escrita desta ousadia

um pressentir estranho

os deuses olímpicos desgostaram de algo

primeiro o brincar com o disco

depois o calcanhar delicado

não sei

não mais vi

mas senti contusão por deitar em ninho quente e macio

e mudar de lado

tornou-se uma odisseia)

 

* Hoje Ivan R. Conte dedica-se a dissertação Inacabada Obra, Inacabada Vida,  que envolverá um estudo sobre obras inacabadas em analogia com a vida, questionando o que nos dá a impressão de uma obra ser inacabada e o que é uma obra “acabada” ou conclusa; intercalando estas reflexões com o estudo sobre o desejo exótico de o autor atear fogo em sua própria criação. O projeto fora acolhido pelo professor e poeta Sérgio Medeiros que hoje o orienta. Em 2007 Ivan escrevera História com K.: narrativa sobre a obra e vida de Franz Kafka.

 

** Esta é uma 2ª  versão, o título mudara para Elogio ao Yawn, mas por motivos anagramáticos, voltara ao “bocejo”. A nota preliminar seria uma nota de rodapé, acabou engordando e fora adicionada ao início do texto. A palavra bocejo é um tanto estranha, seria mais interessante que utilizássemos “gol”, porque se olharmos para o desenho da boca, ao pronunciarmos “gol” o movimento mimetiza o bocejo, nisto a palavra inglesa “yawn” nos é superior. Também porque “gol” é uma palavra que pode ser prolongada tal qual o gesto bocejo, embora aspiremos em gol e inspiremos no bocejo, e para alguém apaixonado é quase um gesto automático (um grito involuntário, como bater palmas por impulsividade), a letra “o” é bastante sugestiva, a letra “l” representaria a boca fechada, o instante final do bocejo, mas para isto precisamos girá-la, já a letra “g”…? (não sei, será melhor deixar de lado meu eu concretista…)