“Mais impossível que Brobdingnag”- “Três Vinténs”, de Bertolt Brecht – Maria Aparecida Barbosa

“Mais impossível que Brobdingnag”- “Três Vinténs”, de Bertolt Brecht

 Maria Aparecida Barbosa*

 

Direção de Bob Wilson, em cartaz no Teatro Berliner Ensemble.

Direção de Bob Wilson, em cartaz no Teatro Berliner Ensemble.

https://www.youtube.com/watch?v=nv2SiBcE9dM

Os espíritos mais veementes desdenhavam da força contestatória da “Ópera de Três Vinténs”. Será que ignoravam o poder da sátira em seu deslocamento, bem como o efeito de distanciamento que leva à atitude de transformação do status quo?

No artigo “Protesto contra a Ópera de Três Vinténs”, publicado no Jornal Weltbühne em 08/04/1930, Kurt Tucholsky lamentou que o público recebesse com vaias as encenações da peça em cartaz, o que ele atribuía ao desprezo reinante com relação a tudo que fosse novo, socialista, judeu, russo, pacifista e pela liberação do aborto. Mas o próprio jornalista Tucholsky não se deixava impactar: Brecht “…não faz mais que cozinhar [os problemas] em banho Maria enquanto se alastra o incêndio. Essa, no palco, não seria a Alemanha do ano 1930, mas pura estilização.

Por sua vez, outro crítico berlinense daquela época, Herbert Ihering considerou essa adaptação da peça do inglês John Gay “Beggar’s Opera” (de 1728), por Brecht e Weil, “entretenimento com cheiro de mofo, com a qual o teatro boulevard ganha impulso, na medida em que se acrescenta à diversão acirrada crítica social e muita agressividade por meio de chansons e operetas” (conforme informa Werner Hecht no livro Dreigroschenoper – Materialien, Frankfurt, 1985).

No entanto, em 1928, após a humilhação que a própria Alemanha experimentara depois da primeira guerra e no início dos anos 20, quando as famílias pranteavam seus filhos mortos e a absurda inflação elevava o preço do pão a 460 bilhões, o encontro de Bertolt Brecht e Kurt Weil em “A Ópera de Três Vinténs” selou com uma peça extraordinária o sentido daquele entretempo, os anos 20 da República de Weimar. Sim, entretempo, porque a crise financeira logo encheria as ruas novamente de desempregados – o número vai atingir o número de 6 milhões.

Brecht não pretendia fazer o teatro aristotélico que tivesse por fim a catarse e a purificação pelo terror e pela piedade. No Pequeno Organon do Teatro, ele coloca os objetivos de seu projeto em consonância com a época, a época científica – era um projeto de cunho naturalista. Para tanto, o teatro deveria se aproximar dos subúrbios, ser acessível a todos os homens. Se a realidade exige diversão, então o teatro não deve se furtar a isso. O modo de fazê-lo seria, contudo, diferente, não como um decalque do mundo, emocionando plateias mais do que o próprio mundo o faz. O libreto do teatro é adaptado ao cinema por Georg Wilhelm Pabst e estreia em feveiro de 1931. Alegando falsificação, Brecht e Weil processam os produtores da adaptação cinematográfica. Ganham o processo e embolsam uma indenização, além de readquirirem o direito a uma nova adaptação.

Suas críticas se dirigiam inclusive a peças naturalistas como “Os Tecelões”, de Gerhardt Hauptmann, que suscitam sensações fortes através da identificação com o millieu e o sentimento dos operários explorados que se revoltam, não era um efeito de um movimento social que ele pretendia. “Se movimentarmos as personagens em cena por meio de forças motrizes de caráter social, dificultaremos ao nosso espectador uma aclimatação emocional.”, esclarece no Pequeno Organon. Era a busca de um tipo de representação que ao mesmo tempo proporcionasse prazer e provocasse reação num espírito livre, disposto a agir.             Através de estudos sobre a arte chinesa, ou sobre teatro medieval que recorria às máscaras, Brecht constatou os efeitos de distanciamento, que impossibilitavam a empatia – identificação prevista no teatro aristotélico, com a finalidade catártica – porém, essas tradições logravam sugestões hipnóticas, bizarras – não correspondiam a suas aspirações. Porque quando recorre ao distanciamento para seu teatro, ele tem objetivos diversos: fazer com que nada se interponha à intervenção para a mudança. Assim como o lustre oscilante da Catedral de Pisa produziu o olhar de estranheza do cientista Galileu, que assombrado descobriu a lei do pêndulo, assim como na ciência, o teatro deve buscar igualmente o assombro com a técnica do estranhamento.

Brecht pressupunha processos de transformação sociais propulsados justamente pelas contradições intrínsecas da sociedade, era a dialética materialista. Díspar consigo mesmo era uma condição que favorecia o movimento.

Pensar sobre essa necessidade colocada por Brecht de levar à ação transformadora, leva a um reporte filosófico. Refletindo sobre a Condição Humana de uma vida moderna caracterizada pelo incessante labor e pela atividade, Hannah Arendt remonta à cisão observada na Idade Média entre os conceitos vita contemplativa e vita activa e afirma que a atitude contemplativa seria também chamada de teoria: “a experiência do eterno”.

Diferentemente das acepções contemplação e ação que formam uma oposição inequívoca, Aristóteles aproximava a theoria da poiesis (a meditação e a fabricação), e Hannah Arendt julga compulsiva tal aproximação, que se assemelha ao trabalho do artífice que deve ser guiado pela ideia. É nesse excurso, que ela aproxima theoria de thaumazein: a contemplação da verdade à qual o filósofo finalmente chega: é o assombro mudo.

Este artigo é un ensejo para refletir se seria legítimo comparar o efeito do assombro mudo do filósofo diante da verdade, thaumazein, com o efeito de distanciamento perseguido por Brecht no teatro. Pois, tanto na primeira condição, quanto na segunda, o espectador é estimulado a tomar uma atitude. Na “Ópera dos Três Vinténs”, seria de se perguntar se o efeito de distanciamento derivaria da presença de disparidades inerentes a certos elementos específicos da encenação, concernentes talvez às instalações do teatro, à música e, à linguagem, e em que medida essas disparidades poderiam proporcionar deslocamentos.

É importante notar que valer-se dos contrastes através da técnica de subversão é tanto um estímulo à atividade transformadora, como também a ótica da sátira.

Teatro da Rua Schiffbauerdamm

A peça que fora concebida para desmascarar a hipocrisia e a corrupção social é encenada no refinado prédio barroco, construído no auge da Alemanha imperialista, em 1892, hoje denominado Teatro do Berliner Ensemble. Forte contraste com o teatro proletário de Brecht! Uma das mais bem-sucedidas encenações teatrais alemãs do século XX, “A Ópera dos Três Vinténs” se baseia justamente no contraste, na provocação das disparidades.

Naquele ambiente luxuoso, o palco deveria ser econômico; ao invés de ilusão emocional, o teatro deveria proporcionar conhecimento e as sensações deveriam conduzir à tomada de consciência. Em “Observações sobre a peça Ascensão e Queda da Cidade de Mahagony“escritas em 1930, Brecht faz a distinção entre a forma épica e a forma dramática, comparadas numa tabela. Trata-se de pensar em modos diversos de se empregar a dialética artística com a perspectiva crítica e a histórica. Mas toda a sua concepção fora pouco a pouco se delineando. Já nos cartazes da peça “Tambores na Noite”, de 1922, a primeira peça de Brecht a ser encenada, ele dirigia o primeiro ataque ao arrebatamento da audiência: “Não encare tudo tão romântico!” Essa será a essência do efeito de estranhamento do seu teatro épico.

 

A Música

Brecht considerava importante destacar as interpretações musicais dentro das peças. Importava, para ele, sobretudo, que ao cantar o cantor mostrasse que apresenta algo, assim deve: se preparar, parar, se maquiar; os músicos deveriam estar à vista do público. O texto teatral deve conter expressões idiomáticas correntes, profanas, irreverentes do cotidiano, no mesmo diapasão do texto prosaico. Assim, não dá a impressão de ser o texto musical mais elevado que o texto da prosa, nem vice-versa. Para isso também o ator deve fruir a melodia e realçar essa fruição.

A concepção musical e a composição das canções da dupla Weil/Brecht resultou numa melodia fragmentada com texto cínico, insolente, uma música dissonante nos moldes dos trens rápidos, do cinema moderno, das experimentações em todos os segmentos da técnica e da arte urbana. A solenidade da música erudita dos festivais de Richard Wagner em Bayreuth era passé, a música de “Três Vinténs” se adequava melhor à atmosfera de Berlim, àquelas imagens originais da cidade do filme rodado em 1927 por Walther Ruttmann: “Berlin, Sinfonia de uma Metrópolis”, ou das imagens da “Metrópolis” apocalíptica da ficção de Fritz Lang em 1926.

Como o luxo do teatro contrastava com um projeto socialista, o sucesso comercial da empreitada também: a música foi bem-sucedida em matéria de faro mercadológico, em tempo recorde venderam 50 mil cópias dos textos das canções, traduções para dezoito idiomas e os direitos para teatro de marionetes e até para estampas de tapetes. É, estamos falando de dialética: o teatro épico o dramaturgo mais tarde passou a chamar de dialético.

 

A Linguagem de Mac Navalha

Apodítica, de maneira alguma sutil! Brecht confere uma linguagem apodítica a Mac Navalha, que se presta melhor a surtir o efeito de perplexidade. E a perplexidade, segundo Platão no diálogo Teeteto, seria a atitude do homem que ama a verdadeira sabedoria: “Não tem outra origem a filosofia”.

A linguagem dialética se formaria a partir da oposição modo sutil/modo apodítico.O romance homônimo, que o dramaturgo escreve em 1934 teve a primeira edição publicada em 1934 pela editora Allert de Lange de Amsterdan, e é editado atualmente pela editora alemã Suhrkamp. No livro, Brecht inseriu em letra cursiva o programa de Mac Navalha e trechos mais contundentes, que se destacam como uma série de ditos e sentenças. Uma dessas sentenças diz: “O mais importante é aprender a pensar de modo apodítico. O pensar abrupto, esse é o pensamento dos grandes.”

Brecht recorre à linguagem que resulta igualmente do pensamento apodítico, pois essa é a linguagem popular, que se fermenta lentamente ao longo dos anos, o que propicia à fala de Mac Navalha a potência de toda uma sociedade num interstício temporal e espacial bem amplo, explica Walter Benjamin numa resenha. O dramaturgo dialético Brecht, renunciando a sutilezas, põe o dedo exatamente na ferida para produzir o modo grosseiro de ver através de contrastes gritantes, o que justamente constitui o pensamento dialético, na medida que representa a passagem abrupta da teoria incidindo em cheio sobre a ação.

Um exemplo da fala de Mac Navalha no “Segundo Final de Três Vinténs. Pois de que vive o homem?” (Brecht/ tradução Wolfgang Bader e Marcos Roma Santa)

 

Mac –

Como viver sem crime e sem briga,

Nos dai, senhores, nobre ensinamento;

Porém, enchei-nos, antes, a barriga,

Depois falai, é este o seguimento.

Prezai a vossa pança e a nossa lida:

Porém, sabei a regra universal,

Torcei, virai, mas eis a lei da vida:

Primeiro o pão, mais tarde a moral.

Que a gente pobre aprenda a simples arte

De abocanhar do bolo a sua parte.

 

Voz atrás do palco –

Pois de que vive o homem?

 

Mac –

Pois de que o homem? Tão-somente

De maltratar, morder, matar como animal insano,

E tendo esquecido inteiramente

De que ele próprio é um ser humano.

 

Coro –

Não vos deixeis, senhores, iludir:

O homem vive só de destruir!

 

Essa é a fala de linguagem mordaz, que mais e mais se acerba: “O que é um assalto a um banco, diante da fundação de um banco?”

 

Mais impossível que Brobdingnag

Os deslocamentos e as reduções são técnicas dos inveterados satíricos que têm a pretensão idealista de transformar o mundo. São almas suprassensíveis, conhecem um modelo ideal e não se conformam com a realidade com a qual se confrontam.

O escritor de sátiras Jonathan Swift, como Brecht, quis também elevar o mundo a seu ideal. No seu livro mais célebre, a sátira As Viagens de Gulliver, o herói Lemuel Gulliver tem seu navio desviado da rota durante um temporal. Com o escaler, o jovem viajante pretende, então, desembarcar numa ilha, a fim de se prover d’ água fresca. Aí tem início a série de contrastes, paradoxos. Flagrado por gigantes, passa a morar em Brobdingnag. Durante essa estada, em seus frequentes encontros e conversas com o rei, “homem de muito espírito”, recebe a ordem real de fazer um exato relato sobre a Inglaterra, terra natal de Gulliver, e sobre as relações daquela nação com as nações vizinhas. Sempre deveria algo das experiências estrangeiras para se aprender, justificava o rei. Gulliver expressa o desejo de apresentar “modo sublime” sua terra natal. Não obstante o empenho nesse sentido, o rei, após ouvir as preleções em cinco audiências cada qual com um grande número de horas, somente manifesta duras e sensatas críticas ao povo inglês. Nada resta a Gulliver senão degradar, reduzir as qualidades evidentes daquele rei e daquele povo sagaz do reino Brobdingnag, a fim de salvaguardar a reputação de sua amada Inglaterra.

O deslocamento e redução são modos que configuram a sátira.

Mais impossível que o reino Brobdingnag são o comportamento e as atitudes humanas na ficção que Brecht imagina (Benjamin, III, 441).

No lugar inventado por Brecht, na sátira “Ópera de Três Vinténs” as contradições mais disfarçadas e inimagináveis da hipocrisia social se evidenciam, sim, em toda a clareza. E o homem surge nu. Infelizmente desumanizado. Mas a tarefa do satírico acaba por aqui: se restringe a despir o humano. Se uma vez ou outra lhe veste de gato Murr, como o escritor E. T. A. Hoffmann, de cachorro Berganza, como Cervantes, cavalo huyhnhnm, como Swift, é porque tem prazer em dispor e expor o homem nu entre suas diversas máscaras.

Para conseguir o efeito de Thaumazein (assombro/perplexidade), com o qual espera então obter o “distanciamento”, Brecht insiste na imagem do homem nu diante do espelho. O reflexo especular desse homem nu entre suas máscaras, ele apresenta à plateia.

 

“Sem Vinténs” no Brasil atual com as qualidades universais defendidas por Brecht.

https://www.facebook.com/semvintens?fref=nf

 

* Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.