Resistência da arte no mosaico Alegoria das Artes de Di Cavalcanti – Cilene Rohr

Resistência da arte no mosaico Alegoria das Artes de Di Cavalcanti

Cilene Rohr*

 

Di Cavalcanti

 

O que se segue é uma leitura do mosaico Alegoria das artes do pintor brasileiro Di Cavalcanti. Não se fará aqui uma análise minuciosa dessa obra que possui, sem dúvida, uma riqueza de detalhes que mereceriam uma investigação mais cautelosa. Pretende-se, no entanto, falar sobre o objetivo que levou à criação do painel atrelado ao propósito da construção do teatro Cultura Artística que tem como fachada de entrada exatamente o mosaico Alegoria das Artes que resistiu ao incêndio em 2008.

O artista Di Cavalcanti nasceu em 1897 no Rio de Janeiro e tornou-se um pintor conhecido por utilizar diversos suportes para compor seu trabalho artístico. Dentre eles destaca-se a parede como um grande painel de pintura realizada com diferentes materiais como o mosaico de pastilhas de vidro conhecido pelo nome de tessetelas que foram usadas para compor o mosaico Alegoria das Artes.

A pesquisadora Patrícia Grandini Serrando diz que explorar o universo pictórico de Di Cavalcanti é no mínimo um trabalho de resistência.

 

Resistência física devido às inúmeras obras realizadas durante os setenta e nove anos de sua existência, mas principalmente resistência visual, pois suas imagens revelam um mundo intenso de formas, cores, luzes e espaços os quais se lançam diretamente sobre o olhar do leitor que se obriga a verificar as vertentes significativas que brotam dos textos imagéticos.

O mosaico foi um projeto encomendado para compor a fachada do teatro Cultura Artística da cidade de São Paulo. O edifício foi uma das maiores realizações da Sociedade Cultura Artística criada em 1912 por artistas, intelectuais, jornalistas e empresários paulistanos que desejavam estimular a vida cultural da cidade.

O Teatro Cultura Artística em São Paulo foi construído entre 1947 e 1950 e projetado pelo arquiteto brasileiro Rino Levi. A inauguração realizada em duas noites, nos dias 08 e 09 de março de 1950, ficou a cargo dos dois maiores maestros e compositores brasileiros: Heitor Villa-Lobos e Camargo Guarneri.

Para contextualizar o trabalho do pintor com a época de sua formação, far-se-á, primeiramente, uma breve introdução sobre murais e mosaicos na arte, uma vez que se encontram alguns aspectos relevantes dessa técnica na arte do mosaico Alegoria das Artes. O mural está profundamente ligado com a arquitetura. Nesta técnica, o uso da cor, do desenho, e do tratamento do tema pode mudar, radicalmente, a percepção das proporções espaciais da construção.

Segundo o Dicionário Crítico da Pintura no Brasil (1988, p. 338), o mural é uma das grandes subdivisões da pintura e se opõe à pintura de cavalete, pois possui um caráter social. O mural se integra à superfície de uma parede com finalidade decorativa, ilustrativa ou possivelmente didática.

O mosaico é composto de elementos pequenos de cores versificadas, tais como pedra, vidro, cerâmica, entre outros, e produz uma imagem de aspecto brilhante. É uma técnica muito antiga que já existia há 3500 a.c, na Mesopotâmia e sua aplicação se expandiu na Grécia e Roma antigas. No início do século XX, houve uma reutilização eficaz dessa técnica, sobretudo, nas artes.

A mídia artística trata essa técnica como pintura de parede, referindo-se, principalmente à pintura mexicana, que promoveu uma obra pictórica de caráter monumental e realista. O uso de grandes murais se liga diretamente ao contexto social e político do país, marcado pela Revolução Mexicana de 1910-1920. O programa dos murais conta a história do país e elogia a paixão revolucionária do povo, que ocupa um lugar de destaque no projeto cultural e educativo. De acordo com Diego Rivera (1886-1957), um dos principais expoentes da arte mexicana, a pintura mural é como “uma arma”, um instrumento de luta revolucionária contra a opressão.

A bela fachada do teatro Cultura Artística mostra o maior Mosaico existente de Di Cavalcanti. A obra ocupa mais de 48 metros de largura e 08 metros de altura e é feito de um mosaico de vidro. A obra foi especialmente encomendada e inaugurada em 08 de Março de 1950. Ao incorporar o Mosaico e as esculturas em suas obras de arte, a arquitetura moderna brasileira ganhou visibilidade internacional.

O teatro foi construído com o objetivo de ultrapassar os limites da ideia de museu para um público específico e alcançar o povo em geral, transmitindo uma mensagem inovadora do teatro enquanto espaço para todos. O Mosaico Alegoria das Artes faz parte desse movimento inovador e é um dos maiores exemplos de resistência dessa tentativa.

Acidentalmente, no dia 17 de Agosto de 2008 ocorreu um incêndio que destruiu completamente a estrutura do teatro. Entretanto – e resistência é a palavra que melhor define esse acontecimento – o Mosaico de Di Cavalcanti permaneceu intacto. E de onde terá vindo essa resistência? Seria a imortalidade da Arte? Uma segunda chance? Proteção dos deuses da Arte? Ou sensibilidade e competência do corpo de bombeiros? De qualquer forma, o fato é que o Mosaico de Di Cavalcanti sobreviveu ao fogo, permanecendo como símbolo de um período de existência da instituição e ficando como expressão artística que eterniza objetivo inicial da construção do teatro.

O mosaico Alegoria das Artes de Di Cavalcanti é composto de dez musas, das quais nove fazem referência à mitologia grega, e que são as nove filhas de Zeus: Calíope (musa da poesia épica), Clio (a musa da história épica), Érato (a musa da poesia erótica), Euterpe (musa da poesia lírica e da música), Polímnia (musa das canções e hinos em honra aos deuses), Tália (musa das plantas, sementes e gado), Mnemósine (a musa da Música e da harmonia), Terpsícore (musa da dança e da voz) e Urânia (a musa da astronomia e geometria).

Há, contudo, no mosaico, uma décima musa complementando a composição de Di Cavalcanti e que levanta dúvidas sobre quem seria essa décima musa. De que cenário ou espaço ela vem? E o que ela representa?

Essa musa surge a partir do espaço pictórico próprio da arte de Di Cavalcanti. É uma musa que nasceu completamente livre de certos elementos do processo criativo do senso comum e o mesmo ocorre com as outras nove musas que, embora sejam originárias de um contexto mitológico grego, se apresentam no mosaico de um modo muito singular e original.

Todas as dez musas estão entrelaçadas ao assunto do teatro. O mosaico como fachada decorativa da instituição vincula-se à linguagem artística do teatro e representa a finalidade deste de promover a abertura da arte para o público em geral. Outra questão importante é a escolha da técnica de mosaico, porque o termo vem do latim “musa”, que também inclui os nomes música e museu. Observa-se que o pintor parte de uma tradição e do estudo de uma técnica muito antiga. Entretanto, o foco usado pelo pintor modernista é a mudança de paradigma. Os temas permanecem, mas o tipo de abordagem é outra.

Di Cavalcanti não representou, de fato, as musas tradicionais. O pintor incorporou nas suas personagens não apenas características das musas gregas, mas também elementos típicos da cultura brasileira, tais como: uma guitarra, um tambor, um pote de barro, etc. Além disso, observam-se linhas que revelam as curvas corporais das musas que, embora, sejam brancas, possuem algo da sensualidade da mulher brasileira. Pode-se dizer que não só uma musa é a invenção de Di Cavalcanti, mas que todas as dez mulheres representadas no mosaico refletem uma essência pictórica muito especial da cultura brasileira porque há um hibridismo de elementos da cultura tradicional e de diversas outras culturas com a cultura popular brasileira. E o objetivo disso liga-se ao propósito do edifício e ao objetivo dos modernistas, que era o de unir elementos da cultura popular brasileira aos da cultura tradicional, que em última instância, representa a cultura brasileira.

As musas de Di Cavalcanti são singulares, não só porque se mostram em diferentes configurações ou recursos, mas também porque representam um cenário luxuoso de desenho gráfico cromático. Essas mulheres são únicas no mosaico, apesar de se saber que todas elas têm um significado ou representam um determinado conteúdo de outros momentos na história da arte. Por exemplo, a representação de algumas musas usando máscaras é um recurso que Di Cavalcanti vai buscar no perfil dos egípcios e nas máscaras africanas. Isso garante uma plurissignificação dos personagens sob o disfarce da máscara, a transformação facial é também a transformação da arte e inovação do espaço teatral que se abre ao público. Essa ambiguidade dos personagens no mosaico está associada ao objetivo do teatro. Pelo palco do Cultura Artística sempre passaram personagens diferentes desde a sua inauguração, personagens que representam papéis e significados que nunca focam num único aspecto e nos dão a dimensão de outros sentidos e interpretações assim como o mosaico enquanto alegoria da arte.

BIBLIOGRAFIA:

LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil., RJ: Artlivre, 1988.

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. SP: Cia das Letras, 2001.

JULIEN, Nádia. Minidicionário compacto de mitologia; traduzido por Denise Radonovic Vieira, SP: Rideel, 2002.

GRANDINI, Serrano Eliane Patrícia. A cultura muralista na América Latina: os painéis de Di Cavalcanti e a técnica do Mosaico. São Paulo: UNESP, 2008.

 

* Doutoranda na UFSC