Com Goethe no Naufrágio de Blumenberg – Gabriel Alonso Guimarães

 

Com Goethe no Naufrágio de Blumenberg

Gabriel Alonso Guimarães (UFF/ CNPq)1

Hans Blumenberg

Hans Blumenberg

Na ocasião do VI Colóquio Intermediações Culturais, em Paraty, entre os dias 25 e 28 de junho de 2016, tivemos a oportunidade de discutir a obra do filósofo alemão Hans Blumenberg, em especial o livro Naufrágio com espectador, publicado em 1979 e atualmente em tradução por um grupo de estudantes e professores da UFF. O resultado parcial do trabalho foi trazido a público, com a leitura de um capítulo e algumas exposições sobre a teoria metaforológica. O livro em questão é uma exploração histórica da metáfora do naufrágio assistido, modelarmente utilizada por Lucrécio no segundo livro de De rerum natura e entendida por Blumenberg como paradigma da existência humana [Dasein]. As suas múltiplas versões desfilam sob o olhar erudito e atento de Blumenberg, que, por um lado, leva adiante a intuição dos Paradigmas para uma metaforologia (1960) e, por outro, antecipa uma formulação de O riso da mulher da Trácia (1987): a de que, nas palavras de uma comparação ou anedota, está a maneira do ser humano entender o Lebenswelt.2 Seja como náufrago, seja como espectador – seja ainda como ambos ao mesmo tempo –, na posição escolhida, o homem se determina no mundo.

Na tentativa desse “mapeamento” metafórico, o autor faz percursos de viagem através dos seis capítulos: da fronteira do litoral (cap. 1) ao naufragante em alto mar (cap. 2), da posição fixa do espectador (cap. 3) à destituição de seu posto (cap. 5), da arte de sobreviver (cap. 4) à de reformar o barco em destroços (cap. 6). Interessa-nos, na presente reflexão, o capítulo 4 principalmente, que, na ambiguidade das afirmações de Goethe, encena a futura perda – em Schopenhauer, Nietzsche e Burckhardt (cap. 5) – de qualquer segurança na contemplação do naufrágio humano. O poeta, afinal de contas, é o Jano da literatura alemã: pré-romântico na juventude, clássico na velhice. Tentaremos, de forma breve, resenhar e expandir alguns posicionamentos blumenberguianos ao redor dessa figura máxima.

Blumenberg (1979, p. 47) começa sua exploração com a conversa, em 1807, entre Goethe, o historiador Heinrich Luden e o futuro tradutor de Lucrécio, Carl Ludwig von Knebel, no campo de batalha de Iena. Lá, onde um ano antes os prussianos haviam perdido para as tropas de Napoleão, Goethe confirma sua fama de impassível observador dos tempos modernos, ao recorrer à metáfora lucreciana: “Eu nada tenho a lamentar. Como um homem que, por exemplo, de um firme rochedo contempla o mar revolto e não consegue levar ajuda aos naufragantes, mas também não pode ser atingido pela tormenta” (apud Blumenberg, 1979, p. 48). O historiador, que relata essa conversa em suas memórias de 1847, ou seja, na véspera de outras grandes revoluções europeias, fica assustado diante da indiferença do contemplador pelo destino da própria pátria. Tudo é disposto, nesse texto estilizado pelo espírito anti-Goethe da Jovem Alemanha, “para o confronto entre o patriota engajado e o espectador olímpico, automodelado conforme os antigos” (Blumenberg, 1979, p. 50).3

A estilização vem da parte de Goethe também, ou melhor: dele vem uma mudança radical. Isso porque, em 1772, o autor de Werther (1774) escreve para a revista literária pré-romântica Frankfurter Gelehrte Anzeigen uma resenha dos Idílios (1756) do suíço Salomon Gessner, na qual recorre criticamente à metáfora do espectador. Nos poemas de Gessner, a tempestade – que nos remete ao nome da peça de Friedrich M. Klinger, Sturm und Drang (1776), ícone do movimento homônimo – seria intolerável, cenário e sentimento não se uniriam, lembrando, dessa forma, Voltaire, que “não poderia ter contemplado pelo espelho, de sua cama em Lausanne, a tempestade no Lago de Genebra mais calmamente do que as pessoas detalhariam vice versa o que veem no rochedo em torno ao qual intumesce o temporal” (apud Blumenberg, 1979, pp. 48-49). A ausência de entusiasmo, a pobreza em engajamento, é o que leva o pré-romântico Goethe a condenar a posição espectadora, que, como vimos, ele mesmo assumirá mais tarde.

Essa maturidade clássica, conquistada após a viagem à Itália, é a razão da diferença entre o espectador de Lucrécio e aquele de Goethe. Blumenberg (1979, p. 51) revela o ponto sutil de divergência: enquanto para Lucrécio o naufrágio é “resultado dos impulsos e paixões” humanas e, portanto, um “acontecimento natural”, para o poeta de Weimar a questão central é a “autodisciplina do espectador”, isto é, um esforço que nada tem a ver com a naturalidade do instinto, mas sim com uma “disciplina da forma clássica”, uma “artificialidade de alto nível”. Exercício de contemplação contida, “no sentido de reprimir a fantasia e os sentimentos”, como sublinha o próprio Goethe (1999: 143) no seu relato italiano. Trata-se, segundo Blumenberg (1979, p. 51), de uma tentativa do “observador do campo de batalha” de proteger a sua história contra a História.

O capítulo segue, assim, com a exploração da metáfora pela filosofia de Hegel. O professor da Universidade de Berlim faz recurso à imagem da contemplação para traduzir a posição humana diante da História. Esta se caracteriza como um espetáculo de declínios e sacrifícios, de maldades e ruínas, enfim, de naufrágios. Da tristeza lutuosa [Trauer] e do tédio que esse quadro provoca – não sem afinidades com o sublime pictórico –, escapamos ao “recuar para a postura egoísta [Selbstsucht], que permanece na costa tranquila e de lá aproveita, segura, a visão distante das ruínas em confusão” (apud Blumenberg, 1979, p. 53). Pelo caminho da reflexão, isto é, por ver nas vítimas oferecidas os meios do triunfo da Razão universal, alcança-se a posição segura do espectador, e, assim, aquilo que no real aparecia sem sentido e injusto torna-se compreensível racionalmente.

Uma tal conciliação filosófico-histórica não é objeto da simpatia de Goethe. Isso acontece não só pelo seu interesse em pensar a História em conformidade com as leis naturais – como ressalta Blumenberg (1979, p. 57) no último parágrafo do capítulo –, mas também por conta de um certo pessimismo com as recentes conquistas do Iluminismo. No décimo quinto livro de Poesia e Verdade (1811-1833), o poeta recorre a outra imagem marítima, a da ausência de rastros no mar, para se resignar frente ao “orgulho vão da história do século que passa, aquele da Aufklärung, confiante de que suas conquistas não serão perdidas, de que os caminhos uma vez encontrados permanecerão” (Blumenberg, 1979, p. 57). Assim como, após o navio apartar as águas, estas voltam a se fechar por trás, assim também os erros voltam a se juntar à história humana depois que gênios os puseram de lado. Ao fim e ao cabo, “progressos e declínios deixam para trás a mesma superfície intocada” (Blumenberg, 1979, p. 57).4

Uma posição distante é a desse velho espectador, e temporalmente intempestiva. “Enquanto histórias da filosofia brotavam do chão como cogumelos”, afirma Reinhart Koselleck (1993, p. 32), “Goethe agarrou-se, em total extemporaneidade, à sua autorreflexão histórica”, isto é, à sua “Fenomenologia do Espírito” que excluía a história mundial. Essa intuição da intempestividade goethiana, teve-a também o irônico Heinrich Heine, que, na mesma carta em que conceituou o fim do Kunstperiode, chamou o poeta tardio de “gênio que rejeitava seu tempo” (apud Koselleck 1993, p. 38).5 Contemporâneo da Jovem Alemanha – movimento que, no dizer de Blumenberg (1979, p. 50), combatia a “casca dura de Goethe”, sua posição de incontestável –, Heine ainda formula sua crítica – ambígua porque perpassada do amor invejoso do efebo pelo pai literário – em termos que não diferem muito do olhar anedótico de Tales, descrito por Blumenberg (1994) no Riso da mulher da Trácia. Para o autor da Escola Romântica (1833), publicada um ano após a morte de Goethe, este seria um “indiferentista” que, ao invés de se preocupar com os “mais elevados interesses da humanidade” – isto é, com sua libertação ideológico-política –, “ocupava-se com brincadeiras artísticas, anatomia, teoria das cores, botânica e observações das nuvens” (Heine, 2006, pp. 46-47, grifo nosso). O trecho, não citado por Hans Blumenberg nem no Riso nem no volume Goethe, por exemplo (1999), revela a alienação do poeta-teórico em relação aos terremotos do chão político de seu tempo.6

A exploração da metáfora em Goethe continua por algumas cartas: ao Chanceler von Müller, aquando da publicação da tradução de Lucrécio por Knebel (1821), a este, por ocasião do casamento com Christiane Vulpius (1806), e, finalmente, ao amigo Zelter, numa carta de consolação pelo suicídio de seu filho (1812). Se, na primeira, trata de acusar a filosofia de Lucrécio de inumanidade, uma vez que transforma a relação humana com a morte em falta de temor, nas duas outras Goethe menciona o naufrágio para caracterizar os momentos difíceis de sua vida: num caso, a batalha de Iena, que ameaça sua existência; no outro, algumas situações de perigoso taedium vitae, das quais o Werther seria a melhor testemunha.7

Um trecho da mesma carta a Zelter, de 3 de dezembro de 1812, dá a Blumenberg (1979, p. 55) a ocasião para um novo e último incurso. Goethe escreve sobre o náufrago: “Re-encontra-se a praia depois da tempestade noturna, aquele que está encharcado se seca, e na outra manhã, quando o magnífico sol aparece mais uma vez por sobre as ondas brilhantes, o mar já tem de novo apetite por figos”. Apesar de não notar o evidente elemento sublime dessa descrição – o qual é abordado en passant no início do capítulo seguinte –, Blumenberg (1979, p. 55) conecta essa paisagem com a de outro poema, originalmente composto em 1781, que tem como tema justamente o mesmo “mar que deseja figos”: Im Abendrot liegt See und Himmel still. A referência a essa imagem é rastreada, então, até aos Adagia de Erasmo de Roterdã, nos quais aparece, sob a fórmula de Siculus mare, a anedota de um mercador siciliano que, sobrevivente do naufrágio de um carregamento de figos, observa da praia como o mar o “convida” a arriscar nova empreitada: “Oid’ho theleis, syka theleis – Eu já sei o que queres: Queres figos!” (Blumenberg, 1979: 55). A moral serve para todos que ousam uma segunda e temerária experiência apesar do conhecimento de causa.

É na Sicília onde Goethe tem uma experiência real – não mais metafórica – do naufrágio. A famosa passagem, presente também na Viagem à Itália (1816-1829), é citada brevemente, sem muitas delongas, a partir da carta ao duque Karl August de 27-29 de maio de 1787. A volta de Messina a Nápoles permite ao poeta mais uma identificação com Odisseu, o náufrago homérico, uma vez que antes ele já enfrentara seu Polifemo, isto é, o governador da cidade siciliana (Goethe, 1999, p. 360), e depois ainda Cila e Caríbdis (Goethe, 1999, p. 368). Nesse caso, entretanto, não é nada monstruoso, nenhuma tempestade, que o coloca em perigo, mas uma – também mortífera – calmaria.

Ao contrário dos passageiros, porém, Goethe e seu amigo Christoph Heinrich Kniep permanecem longo tempo relaxados, “contemplando o mundo com olhos de pintor” e desfrutando “da vista mais magnífica que essa viagem nos proporcionou” (Goethe, 1999, p. 371). É somente quando percebem a desgraça iminente – a direção do barco rumo a algumas rochas – que ambos se mobilizam para ajudar, não sem deixar de (a)notar a conformação paisagística do todo: “o navio […] aproximava-se dos rochedos cada vez mais negros à nossa frente, enquanto uma tênue luz crepuscular esparramava-se ainda sobre o mar” (Goethe, 1999, p. 372).8 O protestante Goethe, então, pede às senhoras católicas para que rezem à Virgem, mas é, ao fim de alguns esforços vãos, uma brisa repentina que os salva. A conclusão da passagem, ao chegar ao firme chão da costa, reflete o tom leve do espectador seguro: “Kniep trazia seu porta-fólio embaixo do braço, de modo que teríamos salvado ao menos os desenhos, caso aqueles carregadores, se menos honestos do que os pobres-diabos napolitanos, tivessem nos levado o que as ondas haviam poupado” (Goethe, 1999, p. 376). Importante lição de Aristipo, anotada por Vitrúvio e citada por Blumenberg (1999, p. 14): somente levar bens que, junto consigo, possam ser salvos do naufrágio. Nesse caso, as paisagens.

Assim, nesse erudito percurso, Hans Blumenberg (1979) mapeia o frutífero uso da metáfora lucreciana em Goethe. Este, em seu ambíguo posicionamento, marca não só o meio do livro, mas também o momento da passagem histórica para um observador posto-em-questão. De Herder e Goethe fica claro “o quão difícil se tornou permanecer como espectador” (Blumenberg, 1979, p. 47); já com Schopenhauer, “decifra-se, em sua plenitude, a identidade do sujeito humano com ambas as posições, a do náufrago e a do contemplador” (Blumenberg, 1979, p. 58). Por enquanto, quem desejar embarcar nos estudos metaforológicos desse importante filósofo alemão – ainda bastante desconhecido no Brasil – deverá ser expectador. Poderá fazê-lo em breve, quando a tradução em andamento chegar a seu porto. Não garantimos, entretanto, que, diante de tão interessante e rica pesquisa, o leitor não naufraga. Que haja, portanto, uma tábua de salvação!

 

Bibliografia

Blumenberg, Hans. Schiffbruch mit Zuschauer. Paradigma einer Daseinsmetapher. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979.

__________. O riso da mulher da Trácia. Uma pré-história da teoria. Trad. Maria Adélia Silva e Melo e Sabine Urban. Lisboa: Difel, 1994.

__________. Goethe zum Beispiel. Org. Manfred Sommer e Hans Blumenberg-Archiv. Frankfurt am Main/ Leipzig: Insel, 1999.

Goethe, Johann Wolfgang von. Viagem à Itália: 1786-1788. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Heine, Heinrich. Die romantische Schule. Stuttgart: Reclam, 2006.

Koselleck, Reinhart. Goethes unzeitgemäβe Geschichte. In: Keller, Werner (org.). Goethe-Jahrbuch. Vol. 110. Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1993, pp. 27-39.

 

1 Mestrando em Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense, com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. Pesquisa a relação entre paisagem e memória na Viagem à Itália de Goethe, sob orientação da professora Susana Kampff Lages.

2 Ver Blumenberg (1994, p. 47): “Aquilo que a apóstrofe anónima às palavras injuriosas da serva trácia parece sempre evocar, são as relações de vizinhança e de lonjura – e aquilo que ao homem é próximo ou longínquo pode ser concebido como uma decisão que determina as épocas”.

3 Espectador olímpico lembra o epíteto heineano para Goethe: o pai dos deuses, Júpiter (Heine, 2006, p. 58).

4 Ver também, na Viagem a Itália, a afirmação de Goethe (1999, p. 389): “Com certeza, ele [Herder] terá [na terceira parte de suas Ideen] explicitado com primor o belo sonho da humanidade de, um dia, viver melhor. Devo, aliás, eu próprio acrescentar que acredito que a humanidade haverá afinal de vencer; temo apenas que, por essa época, o mundo se terá transformado num grande hospital, e cada um de nós no humano enfermeiro do outro”.

5 Carta a Karl August Varnhagen von Ense, de 28 de fevereiro de 1830. Disponível no Heinrich-Heine-Portal (http://www.hhp.uni-trier.de/Projekte/HHP), acesso em 29/06/2016.

6 Em Goethe zum Beispiel, há dois textos que mapeiam as relações de rivalidade entre o Heine romântico e o clássico Goethe: Heine in Konkurrenz mit Goethes Italienreise: der beschriebene Eidechs e Eine Korrektur der Schöpfungskorrekturlegende Alfons des Weisen. O primeiro revela também, a partir do quarto livro dos Reisebilder, a polêmica relação de Heine com Hegel, enquanto o segundo – um pequeno estudo metaforológico – explora dois outros dos Reisebilder, nos quais Heine ironiza com Goethe a partir de um comentário de Eckermann.

7 A posição do naufragante é assumida por Goethe também numa outra carta, bastante tardia (1830), citada em Blumenberg (1979, pp. 20-21). Nela, o poeta compara sua relação com a Teoria das cores (1810) – que não obtivera repercussão positiva no meio acadêmico – com a de um náufrago e sua tábua de salvação: “on se sauve tout seul” (Blumenberg, 1979, p. 21). A “evidente verdade” de sua Teoria beneficia a ele somente.

8 Não custa lembrar a aproximação entre perigo ameaçador e contemplação sublime tanto na Investigação filosófica (1757) de Edmund Burke quanto na Terceira Crítica (1790) de Immanuel Kant.